sábado, 30 de dezembro de 2017

Cat Person*


O que faz de alguém uma Pessoa Gato ou uma Pessoa Cachorro? Preferir um dos dois bichos ou se identificar mais com um do que com outro? Qual seja o critério, sempre me coloquei no Time Cachorro. Vira-latas, Freeway e Frida foram meus companheiros de infância e adolescência, e, sempre que pensei num animal para ocupar esse posto, felinos não eram uma opção. Nunca vi sentido num animal de estimação que não fosse bobo, desastrado, carente e barulhento como eu. Que graça tem um mascote que não atende quando você chama, que é tão discreto e na sua que você até se esquece dele? Peixes são exatamente assim e dão menos trabalho. Precisei de 40 anos para mudar de opinião. E de time.

Neste fim de ano, meu irmão viajou com a família, eu não. Vizinhos, ele me pediu para, de vez em quando, ir à casa dele colocar água e comida para a Chiclete -- que, bem ao estilo felino, se permitiu adotar por eles. Ontem, fui pela primeira vez. Nem sinal da gata. A  ração e a água deixadas, intocadas. Comecei a procurar. "Chiclete, Chica, Chiclete". Cada cômodo verificado, todas as portas de guarda-roupas abertas. Nada. Mesmo confiando na independência felina, fui embora preocupado. A bichinha, afinal, já estava domesticada. Na rua, o que comeria? Como entraria em casa se todas as portas estavam trancadas? Pensei nisso o dia inteiro. Voltei outras vezes, na esperança de encontrar Chica aguardando à porta da sala, e me frustrei novamente. Se ela dormisse na rua, eu não conseguiria dormir.

Já era tarde quando peguei minha escova de dentes e fui à casa do meu irmão pela última vez, disposto a passar a noite lá, à espera de Chiclete. Mal sentei no sofá, ouvi um miado. "Chiclete, Chica, Chiclete". Nada na porta dos fundos, nada na porta da entrada, nada na garagem. Abri todos os quartos, até ela sair de um, daqueles que antes eu havia revirado. Saiu em silêncio, como se nada tivesse acontecido. Canino, pulei, lati, comemorei, feliz como não imaginei que um gato me deixaria. Felina, ela se manteve blasé, mas não totalmente. Em seguida, veio se esfregar em mim, retribuindo a preocupação.

Passada a breve interação, fomos dormir, cada um no seu canto. Agora de manhã, enquanto escrevo, ela está deitada aos meus pés, mas só porque eu a trouxe. O máximo que ela fez foi se permitir ficar. Se Chiclete me converteu, ao menos na preferência, numa Pessoa Gato, ela mesma continua a ser o que sempre foi.

*(Nada a ver com o polêmico conto homônimo publicado esses dias pela Mês Yorker. A escolha do título foi puro oportunismo.)

terça-feira, 21 de novembro de 2017

Escritores, redatores

Numa entrevista, o Marcelo Motorola dizia que era injusto, os redatores de propaganda ganharem fortunas escrevendo apenas frases, enquanto os escritores, trabalhando muito mais, mal terem como se manter. 

Nem sei se a declaração era assim mesmo, mas o espírito era esse. Tem anos que li. Na época, eu mesmo começava a trabalhar justamente como redator de propaganda. Apesar de ele atacar o meu ofício -- ou talvez por isso mesmo --, simpatizei na hora com o Mirisola. Mesmo assim, nunca cheguei a ler um de seus livros, apenas trechos publicados em revistas.

Dia dessesum post patrocinado me informou do lançamento do seu último livro, hoje à noite. Resolvi ir. Na hora do autógrafo, eu disse que também escrevia. Pensando agora, me arrependo por não ter falado que, além de escritor, sou redator de propaganda. Teria sido engraçado. 

sábado, 18 de novembro de 2017

O Pai, a Filha e o Homem Vermelho

Entre mim e a minha casa, uma estação de metrô. Decido andar e, mesmo sem decidir, observar. Pouco mais de meio-dia, vejo um sujeito de vermelho sentado à mesa do bar posta na calçada. A mesa tem a cor de sua camisa, do São Paulo, do boné do mesmo time largado sobre ela e de suas bochechas, inchadas. Ao lado do boné, um copo de Coca-Cola, diluído demais para ser só refrigerante. O Homem Vermelho vira de lado e cospe, cuspe viscoso, batizado, demorado, um cuspe que não quer abandoná-lo. Passos adiante, um pai dá um sermão na filha. Entediada, ela olha para a frente. Seu olhar perdido encontra o cuspe inacabável do Homem Vermelho, retido nele pelo tempo da bronca do pai, também sem fim. Já em casa, tenho certeza, os três ainda estão lá: o Pai, a Filha e o Homem Vermelho.

sexta-feira, 29 de setembro de 2017

O que é religião, Leandro?


Essa história da aprovação do ensino religioso como foi feita pelo STF faz lembrar uma que aconteceu comigo. Final dos anos 1980, comecinho dos 1990, não tenho certeza. Certo é que eu estudava no Colégio Nossa Senhora de Fátima — como dá para imaginar, uma instituição de ensino cristã —, em Caruaru (PE). Fui lá matriculado porque meus pais, além de católicos, eram pobres. Sabiam que, ali, eu teria a melhor educação formal acessível — por ser conveniada com a prefeitura da cidade, a escola, se cobrava mensalidade, cobrava um valor irrisório.

     Em casa, sempre tivemos, eu e meu irmão, orientação religiosa. Éramos indicados a rezar antes de dormir e a pedir a bênção aos mais velhos — costume que já seguíamos na primeira parte da infância, em São Caetano (SP), reforçado com a mudança para a terra natal de meu pai. Fizemos a primeira comunhão e, já em Caruaru, a crisma, acompanhando o costume dos garotos da cidade, extremamente religiosa como qualquer uma da região. Quando se falava de religião, aliás, era implícito se tratar do catolicismo. Qualquer outra expressão era ridicularizada. "Crentes", "macumbeiros", "espiritas" — aspas para reforçar o desdém. Ateus eram os próprios anticristos.

     No entanto, meus pais nunca nos restringiram a curiosidade. Ao contrário, a alimentavam com todos os livros, revistas e gibis que quiséssemos ler e que eles pudessem comprar. Esse conteúdo não tinha lá grande censura, exceto uma ou outra revista de mulher pelada clandestina, "lida" às escondidas.

     Daí que, mesmo me sabendo católico, eu compreendia as explicações para a existência oferecidas pela minha religião como apenas umas das muitas existentes, e os códigos de costumes ritualísticos, um dos muitos possíveis. Tão bons como quaisquer outros, mas que eu, nascido católico, seguia. Claro, meu entendimento na época não se formulava de maneira tão elaborada, mas era este. A resposta que dei numa inesquecível prova de Ensino Religioso acompanhava esse raciocínio.

     — O que é religião? —, o papel perguntava ao pequeno Leandro.
     — São jeitos que o homem encontrou para explicar o mundo —, foi mais ou menos o que o pequeno Leandro respondeu.

     Na semana seguinte, o professor entregou à classe as provas corrigidas, com as devidas notas. A minha era zero. Preocupado — afinal, a nota de Ensino Religioso podia interferir na média geral e reprovar —, fui perguntar a ele o que tinha de tão errado na minha prova.

     — Essa sua resposta aqui! Onde já se viu? Religião é Deus, meu filho! É Nosso Senhor Jesus Cristo, é Nossa Senhora!

     Eu sabia, com 12 ou 13 anos, que o conceito de religião estava mais para a minha resposta do que para a dele. Mas, ciente da minha desvantagem, deixei por aquilo mesmo. Entendi que, naquele contexto, a resposta correta era a do professor. Era aquilo o que a escola defendia e, por conseguinte, ele ensinava. Errado estava eu, em questionar. Religião se baseia em dogmas, tipo de coisa que se aceita e ponto. Tendo entendido isso, aquele zero não foi o suficiente para me reprovar em Ensino Religioso: a partir dele, só tirei notas boas na matéria. Aprendi a reservar meus questionamentos para outras aulas; de preferência, para outra escola.

     Seria o Colégio Exatus, para onde me mudaria ao acabar o primeiro grau, quando meus pais estavam em condições de pagar por uma escola particular. Uma cooperativa de professores vindos de Recife, que hoje seriam chamados de petralhas ou comunistas. De fato, eram mais ou menos isso, mas eram, antes de tudo, excelentes. Estimulavam o questionamento, não sufocavam pontos de vista divergentes. No Exatus, no lugar do Ensino Religioso, havia o Biu, um professor de história que, para espanto e indignação da classe 100% católica, declarava não ter batizado o filho. 

     — Se fosse para batizar, que fosse numa religião afro, já que somos negros. Ele, se quiser seguir uma religião, que escolha a que achar melhor — explicou com serenidade.


     A escola, como eu a entendo, é lugar de questionamento, não de dogma. Mas esteja à vontade para discordar. 

segunda-feira, 21 de agosto de 2017

40

Estava na cara que eu vinha. Na sua cara. Eu me anunciei primeiro com discrição, da qual fui abrindo mão na medida em que os fios brancos se avolumavam no cabelo que perdia o volume. Nas rugas tímidas mas contundentes em torno dos seus olhos e nos próprios, que voltaram a ser míopes anos depois de operados. Tudo o que você viu, aliás, também era um prenúncio da minha chegada. Tanta gente, tanta história, tantos lugares, tantas coisas inimagináveis. Como, se não com os anos, para se acumular essa experiência? 

Esse, aliás, outro nome que se dá à idade. Gosto de ser chamada assim, mas não quando é como eufemismo. Eufemismo é para coisas que não se assumem, e eu, ao menos em você, gosto de ser o que sou. Você também, mais e mais, tem se apreciado. Tem buscado se aproximar da sua essência, abraçar sua estranheza. Isso tem a ver comigo. Aprofundar-se em si mesmo, mas sem se isolar. Procurar entender o outro, mesmo quando não parece haver o que entender. Conceder o benefício da dúvida, eu lhe ensinei, pode ser mais benéfico a você do que a quem o recebe. 

Conforme me aproximei, os impactos se suavizaram, mesmo os maiores se diluíram. Você aprendeu que, dentre esses, não há nenhum capaz de decretar o fim. Quando vier o derradeiro, vai ser inédito e inevitável, isso você também aprendeu. E, por ter aprendido, deixou de temer. Mas você não quer esse fim para tão logo. Eu também não. 


Nossa relação há de se intensificar. Quero me fazer sentir em você, no cinismo, na ironia, nas limitações físicas que lhe empurram mais e mais para o abismo. Porque o abismo é tão profundo e interessante quanto você for. E é essa a expedição que você deve empreender até o último fôlego.

Leveza

Meu pai sempre foi uma pessoa leve. Talvez seja sua principal característica, que se reflete em todas as outras. Leve no sorriso, leve no humor, no otimismo, no jeito como viveu e ainda hoje vive. Já o vi preocupado muitas vezes. Coisas graves lhe tiravam o sono, mas nunca a leveza. 

Mal interpretada, essa leveza pode dar a impressão errada a respeito dele. Meu pai não é bobo, tampouco inocente. Se sorri para quem quer seja, é por escolha, por julgar ser isso o melhor que tem a oferecer. Assim, ele desarma oponentes, os faz mudar de lado. Quem conhece meu pai melhor sabe de sua sabedoria. Não aquela sabedoria entre aspas, vazio disfarçado por uma pretensa erudição. Homem de pouca instrução e muita vivência, ensina antes pelo exemplo do que com palestras, mas não nega conselhos. 

Esses dias, ele me deu alguns. Nessa conversa, falou justamente da importância da leveza. De não guardar rancores, mágoas. De saber entender e perdoar. Atribuiu a essa conduta sua boa saúde aos 75 anos e disse que é por meio dela que chegará aos 120. (Meu pai, que nunca buscou a riqueza, nisso é bem ambicioso.) Me aconselhou a deixar ressentimentos do passado por lá mesmo e a não alimentar os do presente. 

Quando lhe contei sobre alguns casos em que havia agido dessa forma, ele se mostrou orgulhoso: "Está vendo, meu filho? Amadurecer é isso." Pois é, pai. É assim que pretendo passar os próximos 40 anos. Leve como você.

Meu pai, eu e minha mãe, em 1980.

quarta-feira, 26 de julho de 2017

Fantasia

Ao passar em frente a uma tradicional loja de fantasias na região do Paraíso, vi outro negócio ocupando o antigo endereço daquele. Agora fica ao lado, num imóvel bem menor. Andando mais um pouco, presenciei a guarda civil desalojando moradores de rua instalados numa praça. A fantasia, de fato, tem cada vez menos espaço.

terça-feira, 25 de julho de 2017

Dívida

Obra do artista que eu gostaria de ser: Raymond Pettibon
Este mês, meu blog, Anotações Mentais, completa uma década. Quando me dei conta da aproximação do aniversário, planejei escrever a respeito. A intenção era publicar alguma coisa nos dez anos do meu primeiro post – 13/07 –, mas a data passou. (Honestamente, só soube que o dia era aquele quando lembrei de procurar, ontem.) Antes que também julho acabe, resolvi que de hoje não passaria.

Só pouco antes de começar o texto é que lembrei: hoje, dia 25, é o Dia do Escritor. Na verdade, não fui bem eu que lembrei. O serviço foi feito pelas "memórias" do Facebook, que recuperaram mensagens mandadas por leitores em anos anteriores, me parabenizando. Se a data (não muito) comemorada hoje resgata meu objetivo ao começar este blog, essas mensagens indicam que ele foi alcançado. Em 2007, eu queria ser escritor. Em 2017, eu sou.

Claro, antes de inaugurar este espaço, eu já escrevia –  em outros blogs compartilhados com amigos e lidos por poucos e, ainda antes, em cadernos não compartilhados e não lidos por ninguém. Com o Anotações, no entanto, eu me propunha a fazer isso com mais regularidade e, consequente e esperançosamente, melhor.

Naqueles tempos, eu havia acabado de me mudar para Portugal, aceitando o convite de um grande amigo para tentar a sorte no mercado publicitário do país, onde ele (Fábio) já morava. Recém-chegado a Lisboa, ainda sem emprego, aproveitei o tempo entre as entrevistas e as caminhadas pela cidade para registrar minhas primeiras impressões sobre... bem, o primeiro post foi exatamente sobre nada. Os próximos tratavam do meu contato inicial com a capital portuguesa e de coisas que passavam pela minha cabeça enquanto andava por suas ruas de paralelepípedos.

Eu me forçava a escrever diariamente, ainda que não soubesse muito bem a respeito de quê. Sem muito objetivo, como fazem os corredores amadores que, sem uma prova no horizonte, correm apenas para se manter correndo. A prática, que deixa esses atletas mais magros e mais rápidos, fez o mesmo com meus textos. Passando pelas crônicas, contos e resenhas postados ao longo desses anos, percebo que deixei pelo caminho muitos dos excessos e maneirismos – mas ainda não consegui me livrar das metáforas, como a deste parágrafo. Mas isso, acho, é o que chamam de estilo.

Me propus a, até o fim da minha passagem por Portugal, ter textos em número suficiente para oferecer a alguma editora na forma coletânea. Para me manter motivado a correr, estabeleci que essa seria minha prova.

 Meu segundo endereço em Lisboa prometia ser um cenário inspirador para essa produção. Ao me ajudar com a mudança da sua casa para o quarto no velho apartamento em Penha de França, o Fábio sentenciou: “Mano, você vai levar uma vida de escritor”. O que de fato aconteceu, mas apenas em parte. Na prática, tive apenas a parte ruim do life style: pouca grana e pouco conforto. No período em que morei ali, escrevi quase nada. Antes usando o computador do Fábio, agora tinha um apenas na agência em que freelava, e lá não me sobrava muito tempo.

Acabei desistindo da coletânea de crônicas. Me pareceu um tanto improvável que alguém se interessasse por lançar os maiores sucessos de uma banda sem um disco sequer.  Mas continuei correndo – já abandonei a metáfora da banda e voltei à da corrida –, mesmo sem nenhuma prova em vista, só pelo prazer do exercício. Entre essas corridas diárias, já de volta ao Brasil, finalmente encontrei a tal prova.

Motivado pelo fim do meu namoro, escrevi o conto “Quem Vai Ficar Com Morrissey?”. Os elogios de quem leu me deram a ideia de dar mais páginas à história e, alguns anos depois, uma editora resolveu lançar este, que seria o meu primeiro disco – como o livro trata de música, achei justo retomar a metáfora da banda. Com minha estreia literária, conquistei alguns leitores e o direito de me dizer escritor sem me julgar pretensioso demais. Só um pouco.

Apesar de a atividade no Anotações Mentais ter-se reduzido bastante nos anos em que trabalhei no meu romance, mantive o blog, mesmo que de forma bissexta e com qualidade oscilante. O que continuei fazendo quando, pouco antes de publicar “QVFCM?”, comecei a escrever “Olho Roxo”. Agora mesmo, enquanto escrevo meu terceiro livro – iniciado mesmo sem eu ter conseguido editora para o segundo – não desisto do blog.  
 Tenho uma dívida de gratidão com o Anotações Mentais. E, se você é um dos leitores de “QVFCM?”, sinto lhe informar, esta dívida também é sua.

quinta-feira, 29 de junho de 2017

Dois ou três momentos

 
Não lembro qual foi a última vez que li dois livros de um mesmo autor em seguida, mas também não me recordo de quando gostei assim de um escritor. "Primeiro o amor, depois o desencanto (e todo o resto de nossas vidas)" me impressionou tanto, que, ao terminar, tinha de ler mais do Douglas Coupland. E não podia esperar.

A escolha óbvia foi sua obra mais famosa: "Geração X", título com o qual Coupland batizou todos os nascidos entre os finais dos anos 1950 e 1970. Procurando mais sobre o livro, soube que Kurt Vonegut não poupou elogios a ele, comparado à sua obra. Lendo-o, entendi o porquê -- dos elogios e das comparações. 

"Geração X" traz como protagonistas os amigos Dag, Claire e Andy, o narrador. Beirando os 30 na virada dos anos 1980 para os 1990, os três abandonam as carreiras em grandes cidades para, na contramão do Sonho Americano perseguido pelos pais, se dedicar a não querer nada. O adequado cenário de suas ambições é Palm Springs, cidade-oásis localizada no meio do deserto habitada quase unicamente por aposentados, onde se conhecem. Ganhando o suficiente para o sustento sem luxo, ocupam-se em subempregos aquém de suas capacidades ("macjobs") e, principalmente, em contar histórias uns para os demais.

Esses contos insólitos têm como temas, entre outros, o fim do mundo e a busca pelo sentido da vida, e se baseiam em experiências pessoais e medos. A partir do trio e de suas observações, o livro mostra o que é a tal "Geração X", com todos os seus subgrupos. Repleta das histórias contadas pelos amigos, a narrativa é pontuada por verbetes de um vocabulário próprio -- além do já mencionado "macjobs", "brazilification" define o abismo entre ricos e pobres em uma sociedade desprovida de classe média, enquanto "lessness" dá nome à filosofia de acordo com a qual os objetivos de vida se redimensionam à incapacidade do sujeito.

Numa história contada por Dag, uma ex-colega de trabalho lhe diz: "A vida tem apenas dois ou três momentos genuinamente interessantes, o resto serve apenas para preencher. A maioria de nós vai ter sorte se alguns desses momentos se conectarem e formarem uma história vagamente interessante." Se for isso mesmo, embora fale tanto sobre a vida, "Geração X" é bem diferente dela. 




sexta-feira, 23 de junho de 2017

Vozes de galinhas não-nascidas ecoam há 20 anos


Na primeira metade dos anos 1990, quando morava no interior de Pernambuco, MTV só era possível nas ocasionais visitas à família de minha mãe. Nessas férias em São Paulo, eu acampava diante da televisão, na tentativa de recuperar o tempo perdido.

No Disk MTV, via as mais pedidas pela garotada da minha idade: “November Rain” (ou qualquer uma dos dois “Use Your Illusion”, do Guns), “Give It Away” (ou outro dos inúmeros sucessos do “Blood Sugar Sex Magic”, do Red Hot) e... quem era aquele  feioso com um cabelo que parecia ter sido cortado pela ação comunitária? E que música era aquela, ao mesmo tempo melódica, bonita, mas raivosa no refrão em que ele batia na guitarra, como se autoflagelando por ser o verme desprezível de que falava na letra? Os caracteres no canto esquerdo inferior da tela respondiam: a banda era o Radiohead, a música, “Creep”, e o disco, “Pablo Honey”. Virei fã de cara.

Meses depois, de volta a Caruaru, tive autorização da diretoria da escola para cuidar da música que tocava nas caixas de som na hora do recreio. Eu tinha conseguido emprestado um CD promocional com o single “Creep” de alguém que trabalhava numa rádio local. Nem pensei antes de gravar a música na fita que tocaria na minha estreia na “rádio” do colégio. Mas o melhor seria ter pensado. Imagine como aquele som, que para mim já era estranho, soou aos ouvidos dos colegas, mais acostumados a ritmos como axé e forro. “Eles não gostam porque não conhecem”, eu dizia para mim mesmo. Mas não. Eles simplesmente não gostavam. Minha arrogante tentativa de doutriná-los se encerrou junto com minha experiência na rádio do colégio: ambas duraram apenas o horário daquele intervalo, depois do qual a diretoria ouviu um monte de reclamações.

Nos anos seguintes, continuei acompanhando a banda. O próximo álbum, "The Bends", trazia uma evolução do apresentado na estreia – belas baladas agridoces com guitarras –, mas, embora o vocal de Thom Yorke tivesse passado a ser mais falseteado (influência de Jeff Buckley, dizem), "Planet Telex", "Iron Lung", "High And Dry" e "Fake Plastic Trees" eram "só" excelentes, não revolucionárias. Isto estava guardado para o futuro.

Em 1997, ano em que completaria 20, eu estava no terceiro ano da faculdade e, novamente, morando em São Paulo. Nessa época, como fazia anos antes com a MTV durante as férias, eu me esforçava ao máximo para estar por dentro de tudo relacionado à música, mas agora em tempo integral. Para tanto, com a internet para mim tão inacessível quanto a MTV no passado e ainda muito longe de ser o que se tornaria, eu recorria a jornais e revistas. Os títulos mais relevantes desses meios – em especial os cadernos de cultura da Folha e do Estadão – decretavam, antes mesmo do ano acabar: "Ok Computer", a volta do Radiohead, era o melhor disco de 1997. Foi o que bastou para o impressionável universitário e estagiário juntar alguns reais do seu miserável salário e adquirir o CD. Mas, mais difícil do que angariar os fundos para comprar, só entender aquele álbum e suas vozes de galinhas não-nascidas.

Antes mesmo de saber bem o que "Ok Computer" era, eu já sabia o que ele representava. Era uma ruptura, não apenas com o que a banda havia feito antes, mas com toda a sonoridade da época. Com ele, o Radiohead abria mão da perfeição para buscar beleza no estranho, abraçando uma característica já perceptível, mesmo que tímida, desde "Creep". A banda aproveitou o passe livre, que – diriam em entrevista anos depois – a gravadora lhe concedera depois daquele primeiro sucesso, e experimentou. Comprou equipamentos em geral usados por bandas eletrônicas, começou a mexer com programação de computadores. Mesmo com os instrumentos mais tradicionais os músicos ousaram, tiraram sons inusitados de guitarras e percussão. O resultado são as texturas e climas que permeiam todo o álbum e que definiram a identidade sonora da banda dali por diante.

Obra de virada de milênio temática, "Ok Computer" é futurista, da estética (sonora e gráfica, do encarte) às referências sci-fi – “Subterranean Homesick Alien” fala de abdução, enquanto o título de “Paranoid Android” (a música das "vozes de galinhas não-nascidas") vem do livro “Guia do Mochileiro das Galáxias”. Mas, ao contrário dos antigos filmes desse gênero, em que humanos usavam roupas metálicas e capacetes no formato de aquários, nada aqui é datado. Crônica de seu tempo, o disco trata do desencantamento de vidas absolutamente irrelevantes, trituradas pelas engrenagens da padronização. Tome “No Surprises”, tome “Let Down”, tome "Lucky", que – não se engane pelo título – nada tem de otimista. Aqui não há espaço para essas bobagens. "É isso que você ganha mexendo com a gente", avisam na hoje clássica "Karma Police".

Nos anos seguintes ao lançamento de "Ok Computer", disco após disco, o Radiohead reafirmou seu status cult, afastando-se cada vez mais do convencional e, por contraditório, conquistando mais fãs. É verdade, também, que nem todos se curvam à banda, preferindo distância de suas experimentações.

Mas eu, vinte anos depois de ter ouvido "Paranoid Android" pela primeira vez, ainda não consigo me livrar das vozes de galinhas não-nascidas ecoando na minha cabeça.

sexta-feira, 9 de junho de 2017

Mais uma vítima do atentado


É um sentimento adolescente, mas que, como as espinhas, acompanha muitos para além dos anos prensados entre a infância e a idade adulta. Aquilo que sentimos quando, de repente, todos passam a gostar de algo que antes (parecia que) só você gostava. Sei que falei, numa crônica recente, sobre o direito que todos têm de gostar da banda que bem entenderem – inclusive da sua –, mas aquele texto foi escrito pelo meu lado adulto.
O Leandro adolescente de 40 anos, além de eventuais espinhas, carrega o mesmo egoísmo com relação aos seus artistas preferidos. Lembro, há mais de 20 anos, de como fiquei irritado quando o Kurt Cobain começou a aparecer nas capas de todas as revistas, até naquelas voltadas às meninas, com a Capricho. De repente, o Nirvana tinha deixado de ser uma banda suja e barulhenta para se tornar uma banda suja e barulhenta de que gente que nunca tinha gostado de bandas sujas e barulhentas gostava. Ou dizia que gostava.
Isso tudo me ocorreu esses dias, depois do atentado ocorrido em Manchester, durante o show da cantora Ariana Grande – até então, uma ilustre desconhecida para mim. Seu público é formado pelo que, na minha época, seriam as tais leitoras da Capricho. No concerto, além nas meninas, estavam seus pais e familiares. Com a explosão da bomba, houve várias mortes e um número maior de feridos. Atribuído a terroristas islâmicos, o atentado causou comoção geral, para além dos limites da cidade e do país. Numa coincidência sem significado, a tragédia aconteceu no mesmo dia do aniversário de um dos maiores ídolos nascidos ali, Morrissey. Se quisesse estabelecer alguma relação entre os fatos, para efeito do texto, poderia dizer que Ariana representa tudo aquilo que o ex-líder dos Smiths abomina artisticamente: música descartável produzida por um artista idem, vendida em escala mundial, consumida por milhões de forma absolutamente irrefletida. Mas nem Morrissey, em suas declarações mais controversas, diria que isso é o suficiente para tornar artistas e fãs merecedores da tragédia. O pronunciamento de Moz sobre o assunto gerou, sim, reações indignadas, mas por seu tom xenofóbico.
Aconteceu durante uma vigília de luto pelas vítimas. Foi captado por uma câmera – onde não há uma hoje em dia? –, postado nos principais sites e replicado nas redes sociais. Em meio à multidão sorumbática, ouve-se uma voz, solitária, porém confiante: “Don’t look back in anger, I heard you say…” Naquele momento, naquela voz, o antigo sucesso do Oasis assumia um novo significado. Era como se quem o cantasse tentasse consolar os conterrâneos e aconselhá-los a não odiar os terroristas. A mensagem deve ter sido entendida exatamente assim pelos outros presentes, que imediatamente passaram a engrossar o coro. Outras vozes se uniram àquelas ao longo dos dias, em outras cidades do país e do mundo. Logo, “Don’t Look Back In Anger” voltou aos primeiros lugares das paradas. Quase como há mais de 20 antos, quando, no auge do Britpop, eu e tantos jovens compramos “What’s The Story (Morning Glory)”, álbum que trazia a faixa.
Então, como antes com o Nirvana, gente que nunca tinha gostado do Oasis passou a amar a música. Menos pelo passou a representar do que pelo espírito gregário, que leva ao comportamento quase instintivo: se todos estão fazendo, por que não? O Courteeners, mais uma das tantas bandas surgidas em Manchester, durante um show na cidade agendado antes do atentado, aproveitou a oportunidade para tocar o hino. Foram acompanhados por toda a plateia, emocionada. Depois, num concerto organizado em prol das famílias das vítimas, o Coldplay – no mesmo show que teve participação especial do ex-Oasis Liam Gallagher – fez uma versão da canção. No palco, ao lado do vocalista Chris Martin, Ariana Grande arriscou um verso ou outro da canção – que, como a imensa maioria dos presentes da plateia, não fazia parte nem do seu repertório nem dos seus gostos particulares. Uma cena que me inspirou o comentário maldoso: “‘Don’t Look Back In Anger’ foi mais uma das vítimas do atentado de Manchester”.
Noel, o compositor do hit – e quem primeiro o cantou –, não participou do evento. Foi duramente criticado pelo irmão Liam, cujas palavras e palavrões foram minimizados pelo líder do Coldplay, que agradeceu ao Gallagher mais velho por ter lhes cedido suas músicas. (Como é bonzinho esse Chris Martin.) A desculpa de Noel para sua ausência foi estar fora do país em viagem com a família, programada antes do atentado e, consequentemente, do concerto.
Quem ainda criticava Noel talvez tenha mudado de ideia ao saber que, sem alardear, ele, detentor dos direitos autorais de “Don’t Look Back In Anger”, os cedeu em favor das famílias das vítimas. Concordou que assassinarem sua música, só não quis estar por perto para ver. É compreensível.

terça-feira, 30 de maio de 2017

Produtividade

A maioria dos meus textos é escrita no celular, a caminho do trabalho ou na volta para casa. No ônibus ou no uber/pop/táxi, aproveito que sou passageiro para agilizar a produção de crônicas, textos, resenhas e até de rascunhos literários. Desde que abandonei o carro, minha produtividade nas letras aumentou um bocado. Acontece também, quando não escrevo, de aproveitar a viagem para consumir textos alheios. É então que leio livros, revistas, notícias e, confesso, textões de Facebook – que também produzo, claro.

Hoje seria dia de leitura: pretendia começar "Geração X", do Douglas Coupland - autor do qual já falei aqui. Um texto fácil, fluido, mas que, por ser no original em inglês, requer um pouco mais de atenção. Estava curioso pelo livro, então achei que esse interesse bastaria para garantir a concentração. 

Eis que chega atrás de mim, no ônibus, um sujeito careca e barbudo, mas aquela barba bem aparada, com cara de eficiente, desses que "não tenho tempo a perder". Como existem pessoas assim nos ônibus que pego. A caminho de algum escritório da Vila Olímpia ou no Itaim, como eu, usam a viagem para adiantar o dia. O problema é que, em muitos casos, isso não é feito em silêncio, com a leitura de notícias, e-mails ou mesmo feeds de redes sociais. Implica em fazer ligações – aproveitando todos os minutos ilimitados oferecidos pela operadora de celular – ou gravando mensagens de áudio.

Obviamente, não passa pela cabeça dessa gente atarefada que possam estar atrapalhando os companheiros de viagem. Invasão de espaço sonoro não parece ser interpretada por eles como invasão. Será que eles não ligam para a portaria para reclamar do barulho de furadeira no apartamento vizinho? Pois é. Barulho no ouvido dos outros é refresco. 

O careca produtivo falou, falou e falou. Fez, pelas minhas contas, umas três ligações e gravou um áudio – olhei para ele para conferir. Agora, está descendo do ônibus, com a vida agilizada. Eu desço em dois pontos. Li três páginas.