domingo, 11 de março de 2012

“You’ll never walk alone”



À certa altura, no meio de “Speedway”, as luzes do palco se apagam e a banda fica muda. Mais uma vez, a sensacional – porém esperada – pausa dramática que acompanha a canção? Ouvimos, então, a voz de Morrissey entoando versos que não são de “Speedway”, nem ao menos de sua autoria. “When you walk through a storm, Hold your head up high, And don't be afraid of the dark.” Era “You’ll Never Walk Alone”, conhecida na voz de Elvis Presley e na da torcida do Liverpool, que a adotou como hino. Assim, o cantor endossava as palavras do meu texto sobre sua apresentação no Rio; sobre suas apresentações, de modo geral. Elas não se confundem.

Alguns elementos, é verdade, estavam novamente ali, como as críticas à família real inglesa, pegando carona na estada de Harry em nosso país – e não é que o moleque perseguiu o Moz até São Paulo? – e as camisas “Assad is shit”, também usadas pela banda em Belo Horizonte. O setlist também permaneceu inalterado desde o começo da turnê brasileira. Mostrando-se, ao contrário do que se alardeia, sensível às críticas, depois da recepção fria em Buenos Aires, Morrissey optou por um repertório mais amigável. Amigável também manteve-se ele. Começou com uma saudação à “Sampa” – que é como se refere a São Paulo, numa tentativa de intimidade, apenas quem não é daqui –, depois agradeceu a um “presente” (é, em português), um LP do New York Dolls dado por um fã, e, ao longo do show, fez graça com a platéia. Sempre irônico, claro, para não deixar dúvidas de que a Inglaterra é sua e continua a lhe dever uma vida. Não azedou sequer quando uma das caixas de som estourou, já no fim do show, em plena execução da hipnotizante “How Soon Is Now?”. Ignorou o problema técnico e continuou cantando. (Ah, se fosse o João Gilberto...)

Vi o show da famigerada pista VIP, mas a uma distância semelhante de onde assisti ao concerto carioca – as dimensões da Fundição Progresso são menores que as do Espaço das Américas, lugar, diga-se, muito bacana, limpo, organizado, mas que carece de um ar condicionado decente. Aqui, cabe um comentário sobre essa aberração da organização moderna de espetáculos. Os melhores lugares deveriam, sempre, pertencer àquelas figuras que aparecem no Jornal Nacional acampadas nas filas, dias antes dos shows, e não a quem, como eu, paga mais – ou quem, como conhecidos, ganhou a vantagem com o ingresso. Mas, enfim, minhas convicções sobre isso não me impediriam de comparecer ao show, nem de dispor de mais grana para me posicionar melhor. Embora entenda a postura de um amigo que, diante da divulgação de que até no show do politizado cantor haveria o tal espaço, resolveu não ir. Afinal, se o cara tem o poder de vetar a comercialização de derivados de carne nos seus concertos, também poderia opor-se à área VIP, não? Mancada, concordo, mas não me penitenciaria por isso.

Mas o que fez deste meu sexto show do Morrissey realmente especial – e aqui você vai ter que me desculpar a cafonice – foi a presença de pessoas que para mim também o são. Estavam lá meu irmão, alguns dos meus grandes amigos e a minha namorada. E, mesmo sem o Rogério e muitos dos camaradas presentes por perto – a Débora, sim, não saiu do meu lado –, só o fato de saber que eles estavam lá, compartilhando comigo um momento tão único, me emocionou tanto quanto ouvir ao vivo as minhas músicas favoritas. (OK, não me emocionou tanto assim.) Mantenho-me carnívoro, mas dos ensinamentos do bardo de Manchester sigo à risca o “hold on to your friends”. Enquanto eu os tiver, nunca andarei sozinho. E, quando eles não estiverem por perto, sempre haverá um iPod com algumas centenas de músicas de um certo senhor charmoso.

sábado, 10 de março de 2012

“The pleasure and the privilege is mine”



A visita do príncipe Harry ao Rio de Janeiro coincidiu com a passagem da verdadeira realeza britânica pela cidade. Mais do que uma piada fácil – que provavelmente já deve ter sido feita por alguém da crônica musical – a frase que escolhi para começar o breve relato do quinto show de Morrissey a que tive o prazer e o privilégio de assistir dá a real dimensão da relevância dos dois ingleses. Enquanto o jovem farrista é o representante menos representativo de uma monarquia cujo maior poder é o de atrair turistas para Londres, o cantor prestou tamanhos serviços à cultura pop que só não foi declarado Sir porque, bem, dificilmente a tal rainha sem poder daria esse reconhecimento a alguém que gostaria de vê-la morta. Talvez o filho da Diana não soubesse da presença de um de seus súditos mais ilustres na cidade, mas esse súdito, nada orgulhoso, fez questão de mencioná-lo. E as palavras usadas, claro, foram pouco elogiosas.

Talvez Harry não gostasse de tê-lo ouvido ontem, mas Morrissey levou a platéia da Fundição Progresso, formada por centenas de pessoas sem sangue azul, à loucura – principalmente, claro, nas músicas dos Smiths. Quando Moz e sua banda tocaram “There Is A Light That Never Goes Out”, “Please, Please, Please..” e “How Soon Is Now?” o que se via poderia perfeitamente ilustrar o verbete “catarse” de qualquer enciclopédia. Por todos os lados, pessoas de olhos fechados e mãos levantadas lembravam os fieis de cultos evangélicos e faziam jus à experiência, verdadeiramente religiosa. Mas só nessas músicas. No resto do show, o que se viu – e, pior, se ouviu – foi o completo desrespeito típico das platéias brasileiras, seja de shows ou de cinema. A escumalha não cala a boca. Parece que estão tratando de assuntos como, sei lá, a liberação de um novo pacote de auxilio financeiro à Grécia ou uma intervenção militar na Síria. Só isso explicaria a impossibilidade de adiar o falatório. Em “I Know It’s Over”, Morrissey afirma que é fácil amar e odiar, mas é preciso força para ser gentil e amável. Foi justamente com a música ao fundo que eu lhe dei razão. Cansado do incessante blá-blá-blá, me virei para os boquirrotos e gritei para deixarem o papo para outra hora. A Grécia ou a Síria poderia esperar o fim do show.

Adaptando o repertório para uma platéia pouco acostumada a vê-lo, numa generosidade incomum em astros da sua envergadura, Morrissey substituiu novas (e excelentes) canções, como “Action Is My Middle Name” e “People Are The Same Everywhere”, por mais músicas dos Smiths. E quem, como eu, não foi lá só para ouvir os hits da banda extinta (não duvido que boa parte dos presentes só a tenha conhecido com o filme “500 Dias Com Ela”), além do inconveniente palavrório dos imbecis, não teve do que se queixar. Mesmo com a ênfase maior nos álbuns mais recentes, não faltaram clássicos como “Alma Matters” e “Everyday Is Like Sunday”. E de “Vauxhal And I” (1994), veio “Speedway”, em execução arrebatadora como pede a música. Por mais de um minuto, cantor e banda se silenciam, as luzes do palco se apagam, e só quem tem alguma familiaridade com o tema entende o que está acontecendo. Passada a pausa, ao som de uma motosserra, a música recomeça, e os pelos se arrepiam.

Na letra da mesma “Speedway”, o mancuniano declara sempre ter se mantido fiel a alguém. Quando ele canta, “Speedway” e todas as outras, percebemos que esse alguém é ele mesmo. Ao vê-lo interpretar sua obra, mesmo a parte mais antiga dela, o verbo distancia-se das artes cênicas. A emoção trazida em sua voz nos faz sentir o tal medo que se apossou dele no momento em que faria o pedido, mesmo depois de mais de 25 anos da composição de “There Is A Light...”. E, com a bagagem que os cinco shows me deram, garanto: Morrissey pode repetir o setlist – não que costume –, mas nunca se repete.

Cada apresentação sua é única, e em cada uma ele nos reserva uma surpresa. Algumas bizarras e hilárias, caso da banda de cuecas – exceção feita ao rotundo guitarrista e co-compositor Boz Boorer, para o qual o chefe escolheu figurino composto de peruca e vestido, esse sim repetido. Outras polêmicas, como as declarações recentes sobre as Falklands (que ele fez questão de, como os argentinos, chamar de Malvinas) e as mais antigas, referindo-se aos chineses como sub-raça. O tipo de contundência possível graças à manutenção do status “indie” – que aqui refere-se mais à independência do que ao estilo –, impensável para bandas como o contemporâneo U2, hoje convertido em trilha sonora de jogging de classe média, de espetáculos grandiosos, pirotécnicos e mecânicos.

Por isso, é com um sorriso no rosto que me lembro: amanhã vou reencontrar Morrissey mais uma vez. Vai ser a sexta, e vai ser bem diferente das outras. Mais um puta show que o pobre príncipe Harry não vai ver.