segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

45 reais (ou O custo da empatia)


Empatia não é das palavras mais difíceis do nosso idioma. Ainda assim, a maioria não parece saber o que é. Menos pela dificuldade de definir o termo do que pela incapacidade de colocá-lo em prática.

Alguns exemplos cotidianos, “inocentes”, servem para ilustrar meu ponto. Quem fura a fila. Quem estaciona na vaga de deficiente. Quem embolsa o troco a mais. Quem destrata o garçom. Nenhum desses tipos, tão comuns na fauna das metrópoles, parece se importar com as consequências de seus atos para o outro. O único limite para suas ações é uma provável sanção – se não houver possibilidade de multa ou cadeia, que se foda. Outra coisa que incomoda alguns desses sujeitos é o julgamento alheio: esses só fazem coisa feia se não houver gente por perto para recriminar. Para outras pessoas, a punição por atos pouco louváveis também pode vir de instâncias superiores – do céu, mesmo. Se, por um acaso, cedem o lugar para uma velhinha no ônibus, não é porque se colocam no lugar da idosa, de pernas e coluna comprometidas pelo peso das décadas. É porque "Deus está vendo".

E quem não liga muito para esse inferno representado pelos outros? E quem não crê na Suprema Câmera de Segurança Onipresente? Em que esse cara baseia sua conduta quando não há autoridades mundanas por perto? Se esse cara for eu, a resposta é: na empatia.

Era mais ou menos por aí a conversa que estava tendo outro domingo de manhã. Teve de ser interrompida pela chegada da hora do almoço. Minha família me esperava em São Caetano, então, chamei um Uber. Saindo do Ipiranga, o aplicativo calculou: a corrida não duraria nem 15 minutos e não custaria sequer a mesma quantidade de reais.

Chegou o carro, e o motorista, um simpático sujeito de 50 e tantos anos, logo advertiu: "O Waze tá dizendo aqui para irmos pela Avenida Almirante Delamare, mas vou fazer outro caminho, tudo bem?" Concordei. Conheço bem a tal avenida – no caminho para minha cidade natal, atravessa uma favela. Sei de sua má reputação como ponto de assaltos. Já tive pessoas próximas feitas vítimas e já presenciei crimes no local, na TV e in loco. O motorista estava mais do que certo em não querer passar por ali.

Quando nos desviamos da rota indicada pelo Waze, ficou claro: o cara não conhecia nenhum caminho alternativo. Como a maioria dos "uberistas", só sabia se orientar pelo aplicativo que substituiu os antigos guias "4 Rodas". (Para ser sincero, também sou desses, com a diferença de que não ganho a vida no trânsito.) O motorista ia se enrolando e nós nos distanciando mais e mais. A quilometragem e o relógio avançavam, a minha impaciência ia junto. O cara só podia estar de sacanagem. Todos os xingamentos possíveis me subiam pela garganta, mas consegui freiá-los na ponta da língua. Ou melhor, amenizá-los, transformá-los em reclamações não dirigidas a ele, mas à situação: "o problema é que vou chegar lá e todo mundo já vai ter almoçado" ou "a corrida vai sair bem mais cara". Não fui além disso por pensar no sujeito lá, trabalhando num domingo, no Uber, porque, de certo, as vagas para pessoas de mais de 50 anos são raríssimas no mercado de trabalho. Mesmo pelo menos 15 anos mais novo, poderia estar no lugar dele, como o Rogério, amigo da minha idade, morador de Florianópolis, que, sem conseguir emprego, optou por transformar o carro num Uber. Foi por esse amigo, aliás, que soube da péssima remuneração desse pessoal. Ficar ouvindo grosserias de passageiros, embora faça parte do "job discription", só deixa esse dinheirinho ainda mais suado. Que o meu motorista ouvisse de outros, não de mim. Ao invés de xingar, abri o editor de textos do celular e descarreguei tudo lá. Ele nunca vai saber o quanto o elogiei.

Por fim, uns 45 minutos depois, chegamos. Constrangido, ele se virou para mim e me disse, entregando um cartão: "Aqui tem o meu e-mail. Você me passa os dados da sua conta, que eu transfiro a diferença". Ele se referia aos 45 reais além dos 15 previstos. É, a corrida deu 60 paus.

Não lhe mandei nenhum e-mail com meus dados bancários, nem pretendo. Mesmo que só por simbolismo, ao se oferecer para me reembolsar, o "uberista" se colocou no meu lugar: imaginou o quão puto ficaria se isso acontecesse com ele e que o mínimo a se esperar seria um ressarcimento financeiro. Como eu ao conter minha raiva, ele exerceu a empatia, repetindo algumas outras pessoas ao longo da minha vida profissional. Nesses anos todos, por vezes eu me atrapalhei, fiz burradas compreendidas por chefes e pares. Me ajudaram a repará-las, admitindo, sem precisar dizer, que eles próprios poderiam ter cometido aqueles erros.

Pensando bem, talvez ainda mande um e-mail para o motorista daquele domingo. Em vez do número da minha conta, é provável que mande este texto. No lugar dele, eu gostaria de ler isto.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Ben, Daniel & Mick


Aos 70 anos, Ben Whitaker é viúvo e muito bem aposentado. Após viajar o mundo inteiro, agora, para ocupar o tempo vago, inscreve-se em um estágio para a terceira idade oferecido por uma start-up. Trabalhando diretamente com a fundadora da empresa, que tem metade de sua idade, o experiente Ben lhe ensina muito sobre a vida.

Um pouco mais jovem, Daniel Blake também é viúvo, mas está longe de se aposentar, embora sua cardiologista lhe diga que seria o melhor a fazer. Uma perita da previdência tem outra opinião e lhe nega o seguro por invalidez. A partir daí, começa o calvário de Daniel pelos labirintos burocráticos, a fim de receber o benefício que lhe possibilitaria um pouco de dignidade no fim da vida.

Ben e Daniel são personagens de ficção. O primeiro é protagonista de “Um Senhor Estagiário”, comédia hollywoodiana bonitinha. O outro dá nome a “Eu, Daniel Blake”, mais recente realização de Ken Loach, cronista das desventuras da classe operária britânica. Sim, a história de Daniel é ficcional, mas se inspira numa realidade bem mais comum que a de Ben.   

Não dá para assistir ao filme inglês sem pensar no presente de tantos idosos e no futuro das próximas gerações, aqui mesmo, no Brasil. Com as mudanças na previdência, a maioria de nós será obrigada a fazer o possível para estender a vida útil, contrariando as impossibilidades físicas e o mercado de trabalho, que prefere jovens para ocupar um número cada vez menor de vagas.

Mas sempre haverá um ou outro Ben Whitaker, ainda na ativa por pura diversão. Sem contar o Mick Jagger. Passado dos 70, o cantor trabalha feliz, sem se cansar, sem nunca reclamar da crise ou da previdência. 

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

O que eu aprendi com a São Silvestre

Sempre corro de fone. Sempre. Então, fiz uma playlist para ouvir durante a São Silvestre, que mandei para um grupo de WhatsApp com amigos também prestes a correr a prova. Só rock fácil, divertido e, às vezes, motivacional -- para aqueles momentos em que você precisa ouvir um "vai, tigre!", mas não quer ouvir isso de fato.
O Paulo logo respondeu dizendo que não ouviria, pois preferia a voz do povo (nada a ver com a de Deus). A Rita disse que ia na do Paulo. Ok. Lá fui eu para a minha primeira São Silvestre, a corrida de rua mais famosa e emblemática do calendário de provas do Brasil.
Chegando à Paulista, vi o lugar previsivelmente abarrotado, repleto das esperadas figuras. Gente fantasiada de super-heróis, de personagens do Star Wars e até do Bozo. Pus meus fones e, depois da também esperada demora da largada, comecei a correr, naquele ritmo de festa, sem pretensão nenhuma além de chegar ao fim da corrida. (Tendo bebido como o fiz nos últimos dias, nem poderia querer outra coisa.) Mas, logo que entrei pelo túnel da Paulista com a Dr. Arnaldo, ouvi um grito coletivo, uma manifestação mista dos corredores e do público, como nunca tinha ouvido. Lembrei do Paulo e da Rita e decidi seguir seu exemplo. A partir daí, a corrida virou uma experiência inteiramente diferente.
A São Silvestre, aliás, é uma outro tipo de corrida. Dela, não participam apenas os "chatos da corrida" -- categoria na qual, apesar de não gostar, me encaixo. Vem todo tipo de gente, de todos os lugares do Brasil, levados com orgulho em faixas, camisetas e gritos. É uma prova em que há um acordo tácito: "sempre que aparecer uma câmera (especialmente de TV), eu vou fazer de tudo para aparecer e, se não gostar, problema seu". Eu, em geral tão chato, entendi de pronto essa dinâmica e nem me incomodei com gente pulando na minha frente a cada possibilidade de registro. Assim como não me preocupei ao constatar que o meu ritmo médio estava (como se confirmaria) o pior de todas as provas de que já participei. Aquilo, para mim, era um treino longo e relaxado, o último de 2016, uma aula de antropologia e, mais que tudo, uma lição de convivência.
Tanto que, a corrida já encerrada, nas calçadas da Paulista tentando ir ao bar onde tinha combinado de encontrar os amigos, aceitei numa boa a impossibilidade de avançar a mais de 200 metros por hora. Estava mais preocupado em olhar ao redor, ver as pessoas e suas reações. Aproveitar o lindo dia de sol, que, passada a prova, já não me massacrava da mesma forma. Sabia que, em breve, me sentaria à mesa com um chope a frente, trocando experiências com os amigos corredores. E assim foi.
Minha primeira São Silvestre me ensinou, mais do que tudo, a conviver. (O dia a dia sempre ensina, mas a corrida serviu de professora de reforço.) Quero levar para 2017 o que aprendi hoje. Escutar, enxergar e tentar entender o outro. Afinal, como a São Silvestre, a vida é coletiva e atrapalhada, e, sem certo esforço, ninguém chega bem ao fim de ambas.


Outra coisa que aprendi foi: bigode, por que não?

(Texto escrito no dia 31 de dezembro)