sexta-feira, 12 de junho de 2015

Sexta no Cinema

Alguns diriam que é a imaturidade, mas eu destaco como a principal coisa que não mudou em mim desde a infância o fato de ter as sextas-feiras como dia preferido. Sei que não estou sozinho nesta preferência, como qualquer olhada desatenta pelas timelines das redes sociais pode comprovar. Mas duvido que a maioria dos que postam coisas como aquele meme simpático da foca dentro de uma cesta (conselhando concentrar-se no sexto dia), tenha essa predileção antiga como a minha. Por volta de 1984, 1985, 1986, o pequeno Leandro ansiava pela sexta da mesma forma que o hoje faz o quase quarentão. Já naquela época, eu preferia a expectativa (a sexta) à consumação (fim de semana).

Menos conscientemente que hoje, temia a frustração consequente ou, as projeções otimistas se cumprindo, que o sábado e o domingo passassem muito rápido – como  em geral passam. As sextas, porém, contêm encantos para além da função de antessala. Hoje, tem a cerveja do fim do dia, o cinema, o jantar com a namorada, o começo de uma viagem ou, simplesmente, o prazer da descompressão. Na época, os prazeres eram outros, ainda mais singelos e menos variados: para mim, menino de classe média baixa, provinham da TV. Eram tempos pré cabo, pré Netflix, pré Now, então o cardápio não chegava à metade da primeira página. Era só Globo, Bandeirantes, Record, Cultura, Manchete, Gazeta e SBT.

E era na sexta que a emissora do Seu Sílvio servia meus pratos preferidos: uma sessão dupla, iniciada com um episódio da incrível série de ação “Esquadrão Classe A” (com B.A/Mr. T, um dos maiores ícones daquela década), que precedia adequadamente o prato principal: sangue. Faixa dedicada basicamente a filmes de terror, “Sexta no Cinema” sempre era garantia de sono perdido para mim e meu irmão. A abertura -- um plágio descarado da vinheta da 20th Century Fox -- encontrava a mim e meu irmão sentados diante da TV cobertos com uma manta à espera dos (já então) clássicos filmes da produtora inglesa Hammer, cultuada pelos fãs do gênero, como vim saber apenas anos depois.

Meu irmão, mais velho e mais medroso, levava a manta aos olhos a cada cena mais sanguinolenta. Já eu me deliciava, quase tanto quanto Drácula parecia ao morder os belos pescoços das donzelas vitorianas. Graças àquele Drácula, me tornei fã do personagem, que passei a ler em histórias em quadrinhos e sobre quem com frequência escrevia, aproveitando o pretexto de redações escolares. Qualquer tema “Dia das Mães” bastava para eu meter lá o elegante sanguessuga, que se alternava com outros colegas de Hammer e de “Sexta no Cinema”, como a Múmia, Frankenstein ou o Lobisomem. 

Ontem, quando me disseram que morrera o ator que interpretara Saruman, o mago “do mal” d’”O Senhor dos Anéis”, eu lamentei. Gosto da trilogia baseada nos livros de Tolkien. Mas fiquei triste mesmo ao me dar conta de que o alterego do Saruman era também o do meu antigo conhecido de infância.


Ia escrever algo ontem mesmo, mas quis a falta de tempo (alguns chamam de destino) que minha pequena homenagem ficasse para hoje, uma sexta. Christopher Lee morreu, mas, como até uma criança sabe (eu sabia), Drácula é imortal.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

O futebol em tempos de Playstation

O uniforme de um time de futebol é, como se sabe, muito mais do que uma simples camisa. As cores da estampa e o brasão bordado no lado esquerdo do peito – não à toa, onde o imaginário popular diz habitar o coração – contam histórias de conquistas, de derrotas, de dedicação, de perseverança, de nobreza. O manto sagrado do clube do coração é depositário também de histórias menores, particulares, mas nem por isso menos importantes. Conta a mágica primeira partida que você viu no estádio, ao lado do avó. Conta também, por meio de pequenos pontos queimados, a vez em que você foi atingido, de leve, pelas faíscas dos fogos da sua própria torcida – nesse caso, não foi você, fui eu mesmo. 

As cores do seu time contam mais. Todos, sem exceção, enfrentam períodos de vacas magras, em que seus torcedores se tornam alvo da tiração de sarro dos concorrentes – uma das maiores (des)graças de se torcer. Sua capacidade de manter a esportiva diante das piadas e a fé nas agremiações, ignorando a falta de sorte, de jogadores decentes e de títulos, diz muito a seu respeito. Trata-se de uma declaração de princípios. Não quero dizer, com isso, que não haja muito mal caráter entre torcedores inabaláveis; apenas que, em ao menos uma pequena parte desse mal caráter, habitam sentimentos louváveis. Manter-se fiel a um clube desclassificado ou rebaixado é como não dar as costas a um amigo que está doente ou que foi à falência. Em última análise, manter-se fiel a um time é manter-se fiel a si mesmo, aos próprios princípios, mostrar que os tem. É dizer que todos os sentimentos evocados pelo seu distintivo, todas as histórias contadas por ele –- da primeira ida ao estádio com o avô ao “fogo amigo”–- valem muito mais do que uma mariola. Ou uma taça de Champions League, cuja cotação, para mim, é mais ou menos a mesma. 

Calma, não sou louco. Sei que a Champions é o maior torneio de clubes do mundo, disputado pelas equipes mais famosas, constituídas pelos esquadrões mais caros do planeta, cujos astros são os mais bem remunerados do universo. Mas tudo isso pouco me importa. Por acaso, algum desses times é o meu? Por acaso, algum desses times é o seu? Se você respondeu “sim, é”, suponho que seja europeu. Mas, se você respondeu afirmativamente e é brasileiro, me desculpe: não tenho muito respeito por você. 

No último sábado, acompanhado de minha namorada e um grupo de amigos, fui a um bar na Vila Madalena assistir à final do torneio: o Juventus enfrentaria o favoritíssimo Barcelona. Apesar do time espanhol ser defendido por um dos maiores ídolos da história do meu Santos, optei por torcer pela também alvinegra Juve, com paradoxais votos para que o Neymar jogasse bem e marcasse. Aí está a grande vantagem de não ter envolvimento emocional com uma partida: você pode simplesmente curtir o jogo, tomar umas cervejas e rir, sem se importar muito com quem vença. Era o que queríamos fazer. O problema é que escolhemos o lugar errado para isso. Ao chegar lá, dei de cara com uma faixa enorme anunciando o lugar como o ponto de encontro da torcida barcelonense. (Como era escrita em catalão e eu não entendo lhufas do idioma, a tradução ficou subentendida.) Pelas mesas, invariáveis camisas azul-grená e animada cantoria (em espanhol e catalão) de hinos e gritos de guerra. As feições denunciavam a origem de grande parte dos presentes – afinal, gringo tem cara de gringo –, mas muitas das camisas e cachecóis adornavam corpos e pescoços brasileiros. “Cara, como eles aprenderam a cantar esses hinos?”, perguntamos uns aos outros. 

Nenhum problema, claro, em usar a camisa de um time que não seja o seu de coração: eu mesmo envergava as listras pretas e brancas do Central, simpático time da cidade pernambucana de onde vem minha família, não tão coincidentemente, bastante parecida com a da Juventus. Mas, na mesa atrás da mim, ouvi gritos histéricos a cada investida do Barcelona, contrapostos a vaias a cada contra-ataque rival. Pareciam vir de barcelonenses nativos, mas, ao me virar para conferir, vi que vinham de barcelonenses de ocasião. Eram manifestações esgoeladas, desproporcionais, injustificadas, causadoras da mais profunda vergonha alheia. Há quantos 5 anos que aquele pessoal de 20 “torcia” para o Barcelona? Que história aquele brasão e aquelas cores contavam para eles? 

Outro dia, vi na TV uma matéria que mostrava um menino com uma camisa do Santos em meio à torcida do Barcelona, no Camp Nou. O garoto se esforçava para chamar a atenção de Neymar, mas só conseguiu mesmo atrair a reportagem da ESPN Brasil, que lhe perguntou: 

— Você torce para o Santos?
— Não, só vim com a camisa para chamar a atenção do Neymar.
— E para que time você torce no Brasil?
— Para nenhum. Os times daqui (Europa) vem e levam todos os nossos craques...

O menino tem razão, nossos principais jogadores não estão aqui. E é isso que importa para sua geração, que tem no vídeo game (Playstation, Xbox) o principal contato com o futebol. Torcem para jogadores individualmente, para o time que estiver melhor. No momento é o Barcelona, antes era o Real Madrid, antes o Bayern de Munique – todos eles, não por acaso, empregadores de craques de primeira grandeza. Aquele papo de “jogue o que jogar” ou “para o que der e vier”, bastante comum nos hinos dos clubes mais tradicionais do Brasil, não faz o menor sentido para eles. “Jogue o que jogar”, pensam, “desde que jogue bem”. Vou além. Talvez não de forma tão elaborada, a garotada ache que, se o Neymar, mais que um ídolo um modelo de sucesso, deixou para trás seu país e seu “time do coração”, o que há de errado neles fazerem o mesmo? 

Voltando ao bar, no caminho para o banheiro, alguém tocou meu ombro. Ao me virar, ao contrário de um possível conhecido, encontrei um sujeito aparentando ser um pouco mais velho do que eu. Vestia o uniforme quase onipresente do Barça e fez cara feia para minha camisa listrada em preto e branco. “Só pode ser espanhol”, pensei. Por isso, ao invés de responder verbalmente, apenas apontei para o distintivo do Central, como quem diz: “Não é o Juventus, pô. E se fosse, qual o problema?” Após usar o banheiro, na volta para a mesa, passei novamente pelo “espanhol”. Falava para outro, em português perfeito: “Saudade do David Villa, hein?” Conclui que não é só a Geração Playstation que tem problemas com fidelidade futebolística. No caso do meu contemporâneo, a coisa é mais grave. O comportamento “Barcelona desde criancinha” do sujeito fazia dele não só um vira-casaca –- já que, sem dúvida, seu envolvimento prévio com o futebol, ao contrário do dos garotos, ia muito além das partidas de FIFA 2015. Sua repreensão ao meu uniforme alvinegro aludiu a outro momento vivido por mim há cerca de um mês, que, além da intolerância, teve em comum com aquele uma camiseta. 

Corria no parque quando ouvi um senhor por quem passei gritar: “Corrupto!” Achei aquilo pateticamente engraçado. Continuei a corrida imaginando que o xingamento tivesse a ver com a inevitável relação que muitos fazem entre o PT e o vermelho (cor da minha camiseta) e dos dois à corrupção. Depois, acabado meu treino, me dei conta de que, além de vermelha, minha camiseta tinha motivos russos, sendo aquele país o tema de uma prova de que participei. Enquanto escrevia sobre o ocorrido – um pecado dos tempos modernos do qual me declaro culpado – passou por mim novamente o mesmo senhor. “Isso! Fórum da corregedoria, para prender CORRUPTO!”, disse, a mão fechada ao lado do ouvido simulando um telefone. Perguntei se estava falando comigo, e ele retrucou que não, estava “no telefone”. Mais do que a provável maluquice do idoso, o episódio atestava a insanidade do nosso tempo. A mesma intolerância que comprovei semanas depois na final da Champions League, que todos comprovamos esses dias com a bizarra reação ao comercial d’O Boticário (o que mostra gente se abraçando, sabe?). Não importa a camisa que se use ou a causa que se defenda: “se não for a minha, não é a certa”.

Este texto começou a ser escrito já durante o jogo, antes do último gol, o do Neymar — pelo qual, lembremos do paradoxo, eu torcia. Muitas das ideias aqui expostas foram expressas pela primeira vez com a voz enrolada e a indignação típica dos bêbados, que só aumentava na medida em que as ilegítimas comemorações se intensificavam. Minutos depois, quando boa parte dos “catalães” já se amontoava na fila para pagar, quando ninguém mais prestava atenção à televisão, pedi para o garçom mudar de canal. Para o jogo do ex-time do artilheiro da Champions, aquele que sempre será o meu, que disputa o Campeonato Brasileiro, mesmo. Mais um desempenho medonho, mais um empate cedido de forma displicente, mais pontos perdidos dentro de casa e a queda de várias posições na tabela de classificação. Ao contrário da maioria dos presentes, eu não tinha muito o que comemorar. 

PS: A foto que ilustra este texto é da época em que eu torcia para o time em que o Neymar jogava. Já o resultado (4x0), seu desempenho individual na partida e a confirmação de que ele já estava negociado com o Barcelona indicam que ele, não.