terça-feira, 6 de agosto de 2013

Detalhes


Simone acendeu o cigarro diário na varanda e ficou, como era seu costume, acompanhando o pouco movimento da rua onde morava. Gostava da observação desatenta que a imutável rotina da rua lhe permitia. Não precisaria nem olhar para saber que, àquela hora, a velhinha japonesa metida em roupas de ginástica passaria fazendo movimentos circulares com os braços, num duvidoso e desnecessário aquecimento para o tai chi chuan a ser praticado no parque em frente. Também era infalível a passagem do austero senhor com ares de general de reserva levando pela coleira um contrastante lulu da pomerânia, indício de um provável amolecimento do coração do velho.

Olhos repousando no cotidiano suburbano, sua cabeça ocupava-se de quase nada; não lembrava do passado, das escolhas e de suas conseqüências, vividas no presente. Os minutos de nicotina na varanda eram os únicos no dia em que Simone não se esforçava para convencer-se de ter tomado a melhor decisão, em que não lutava por sua defesa no tribunal da consciência, alegando uma felicidade insuspeita. Qualquer uma das amigas, em quem despertava inveja declarada, podia testemunhar a seu favor. Casadas ou solteiras, eram todas lembretes de como é difícil conseguir um marido como o seu: executivo bem sucedido, culto, bonitão – com cabelo e sem barriga, tão diferente da média aos 45 anos – e ainda por cima apaixonado. O apartamento em que viviam, enorme e impecavelmente decorado por ela mesma, só não era mais elogiado que o lindo casal de filhos, garotos de comportamento e notas exemplares, destinados a repetir o sucesso dos pais. O precoce caçula Antonio, aliás, dizia querer ser escritor como a mãe, mas voltado para o público adulto “para não concorrer com você”. Na sessão infantil, seria mesmo difícil competir: além de acumular prêmios, os livros de Simone sempre figuravam entre os mais vendidos do gênero. Mas não era apenas com as crianças que ela fazia sucesso. Lourice realçada no salão de beleza, corpo mantido com aulas tênis e na academia, ainda era capaz de causar alvoroço ao passar em frente a obras ou nos fins de semana no Litoral Norte, onde desfilava com a família de comercial de margarina. De fato, ninguém tinha dúvida de que Simone era feliz. Ninguém, a não ser ela mesma.

A dúvida de Simone tinha cabelos pretos, lisos e compridos, usava camiseta do Sonic Youth, bermuda abaixo do joelho, tênis Mad Rats de cano alto e uma camisa de flanela xadrez amarrada na cintura. A imagem era um pouco mais velha que Luísa, sua primeira filha, mas a dúvida existia desde bem antes dela nascer. A dúvida chamava-se Eduardo, mas para Simone era só Du. Quando se conheceram, quando ele se mudou para o colégio dela, no começo dos anos 1990, a sílaba que tinha como apelido era a única semelhança entre o garoto e qualquer dúvida. Com certeza, era o mais descolado da escola. Com certeza, o mais bonito. Com certeza, o que melhor cantava – ele tinha uma banda! E, com toda certeza, o melhor skatista: esmerilhava nas pistas e nas ruas. Entre tantas certezas, a da inevitável paixão que fulminou Simone – além de todas as outras meninas da escola. Mas quantas eram bonitas como Alicia Silverstone, do clipe de “Crazy”, do Aerosmith? Alguns diziam que Simone era até mais. Du era dessa opinião, que fez questão de emitir mal os dois foram apresentados. Ela corou como se nunca tivesse ouvido aquilo. Tirando a primeira cantada, tudo mais nele era inédito e imprevisível. Com Du, conheceu uma infinidade de bandas, de livros, de filmes. Conheceu também a maconha, os cigarros e os primeiros porres. Conheceu, principalmente, um sentimento que jamais sentiria da mesma forma, com tamanha intensidade. Disso, ela nunca duvidou.

Du tornou-se dúvida na medida em que Simone crescia e ele, não. No último ano do colégio, quando a preparação para o vestibular alterou a rotina até dos piores alunos, ele vivia como sempre, mais preocupado com novas manobras na pista de skate e com os ensaios da banda. Enquanto todos, influenciados pelos discursos de pais e mestres, projetavam para si carreiras bem sucedidas respaldadas por um diploma, Du via seu futuro nos palcos e nos half pipes, aos quais pretendia se dedicar profissionalmente. Contaminada pelo entusiasmo coletivo, a namorada estudava o quanto podia para entrar pela porta da frente no mundo adulto – no qual, suspeitava, ele seria barrado. Nos primeiros anos da faculdade de arquitetura, Simone dividia-se entre estudos e estágios; Du fazia o de sempre, sem o êxito esperado. Foi nessa época que as evidências fizeram o que as palavras dos pais tentavam havia anos. Ela decidiu pôr fim ao relacionamento, no qual via tão pouco futuro quanto em Eduardo. Nem a inesperada gravidez a fez mudar de idéia. Eduardo nunca soube, da gestação ou da sua interrupção.

Na última conversa, os olhos marejados, ele apelou para uma citação estranha ao seu repertório:
“Se um outro cabeludo... Bom, você já sabe.”
“Sei do quê?”
“A música, caramba.”
“Que música, Eduardo?”
“A do Roberto Carlos, cacete.”
“Hein?”
“Se um outro cabeludo aparecer na sua rua, e isso lhe trouxer saudades minhas... a culpa é sua...”, declamou por fim, contrariado e envergonhado.

A cada dia que se seguia na vida de Simone, a dúvida a acompanhava. Teria feito a escolha certa? Não teria, com o bebê e o relacionamento, abortado suas chances de ser realmente feliz? Os meses solitários que vieram lhe balançavam a cabeça, afirmativamente. As tentativas de conhecer outros caras, em baladas duvidosas, também a desanimavam. Até quando surgiu Heitor, o homem dos sonhos de qualquer uma, a dúvida se manteve. Mesmo o “sim” não representou seu fim. A dúvida sobreviveu aos filhos, à prosperidade, sobreviveu a tudo, dando sinais de inabalável saúde a cada matéria de skate que por acaso Simone lesse ou visse na TV. Torcia para encontrar sinal de Eduardo em alguma delas, mas, sem saber como reagiria, acabava achando melhor nunca tê-lo visto.

Com a ajuda de Heitor – e de seu salário –, Simone pôde largar a arquitetura e dedicar-se aos livros infantis. Mas o suporte do marido, infelizmente, funcionaria apenas para ela dedicar-se a paixões, não para esquecê-las. Isso só acontecia durante aqueles poucos minutos diários na varanda, ironicamente com o único vestígio evidente da passagem de Eduardo por sua vida, o único remanescente dos muitos cigarros que aprendera a fumar com ele. Combinados, a nicotina e a inalterável paisagem semi-bucólica do Alto da Lapa tinham o efeito de anestesiar Simone. Via apenas a velha japonesa, o general aposentado e seu cachorro e poucas babás passeando com crianças. Naquela tarde, porém, viu algo que escapava ao script.

Viu descendo a rua, com calma, um skatista. Na medida em que a figura se aproximava, detalhes iam se adicionando ao que começou como vulto disforme. A bermuda pelos joelhos, a camisa de flanela amarrada na cintura, os longos cabelos soltos. Não fosse a cor deles, completamente brancos, ainda que a certa distância, ela poderia jurar que era Eduardo. Mas mesmo isso não impedia que fosse ele. Afinal, Simone recordava, já antes da separação, os primeiros brancos surgiam na cabeça do ex. Os mais de quinze anos sem se verem poderiam perfeitamente tê-los multiplicado, dando a ele os ares de um J. Mascis cover. Fã de Dinosaur Jr, Du devia ficar orgulhoso sempre que agora apontavam a semelhança.

Du se aproximava, e Simone se aproximava de um ataque cardíaco. Mas antes que o coração lhe saísse pela boca, ela é que sairia. Desceria às escadas do prédio de quatro andares apressada, passaria pela porta do condomínio de luxo correndo, numa trajetória irrefreável rumo ao encontro do grande amor da sua vida. Que se danassem as empregadas, o porteiro, os vizinhos, a velha japonesa, o general aposentado e seu cachorro. Seriam testemunhas de uma cena emocionante como a monotonia vespertina nunca havia presenciado.

Antes de descer, Simone apagou o cigarro na mureta da varanda e deu a última olhada em Eduardo, já quase em frente ao seu condomínio. Decepcionou-se, então, ao ver que não era ele, nem nenhum ele. Era uma menina, loira como ela já fora, com a mesma idade que ela já tivera. Com toda a vida pela frente, para, como ela, fazer escolhas erradas e se arrepender. 

(Detalhes é o primeiro de uma série de contos inspirados por músicas a serem publicados aqui.)