sexta-feira, 28 de setembro de 2007

A Maldição das Crianças Feias


Precisa perder peso? Coma comigo. Eu como, mas você, provavelmente, não. Se comer, vai ser bem pouco, rapidinho perde o apetite. Tenho uma técnica infalível para induzir a isso – nada a ver com intervenções cirúrgicas ou ingestão de remédios. Não, meu amigo, também não é hipnose. Para falar a verdade, não é bem uma técnica. Técnicas implicam em métodos e, para fazer as pessoas empurrarem seus pratos de lado, eu não preciso fazer nada. Se é um dom? A capacidade de atrair crianças feias por onde quer que se vá está mais para maldição.

Não sei como ou por que acontece, mas acontece. E toda vez é um novo susto. Ou era, até eu me acostumar a ver por toda a parte o que Sérgio Mallandro chama de “capeta em forma de guri”. De uns anos para cá, notei que, esteja onde estiver, comigo também estará um garoto medonho ou uma menina horrorosa, surgido do nada. Como naqueles filmes de terror japoneses, sabe? A diferença é que não é apenas um: trata-se de uma rede internacional de moleques dispostos a poluir o meu campo de visão. Antes eles tinham o objetivo de me matar do coração, mas, percebendo que o Santos tem mais chances, resolveram contentar-se em deixar o meu dia mais feio. E fazem isso em Florianópolis, em Barcelona, em Londres ou mesmo em Diadema, que já seria suficientemente feia mesmo sem a ajuda da petizada.

Os amigos mais próximos conhecem a minha sina. Se ainda andam comigo, jamais me chamariam para ser padrinho dos seus filhos. No meu colo, certamente a linda criancinha se transformaria num sósia do Bebê de Rosemary. Se o padre tivesse coragem de derramar água benta por sobre sua testa, ela queimaria. Pela mesma razão, a idéia de ter filhos me dá arrepios. Se resisti a todos os ataques de feiúra infantil a que fui submetido, saber que o Filho do Demo é, na verdade, meu, já seria demais.

Já que a maldição vai acabar me deixando sem amigos (uma hora eles se cansam de se assustar) e vai me impedir de ter filhos (se, para ter filhos é preciso responsabilidade, no meu caso é o oposto), que pelo menos que me dê algum dinheiro. Como uma indenização por danos morais está fora de questão – nunca soube de maldição que pagasse –, eu pensei em outro jeito de ser ressarcido.

Vou oferecer um serviço para pessoas com excesso de peso, como explicava no começo. Consiste simplesmente em acompanhar o cliente ao restaurante, e deixar as aberrações infantis fazerem sua parte, tirando-lhe o apetite. Mas desde já aviso: o tratamento não é recomendado para sensibilidades fracas.

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Sonhos de Penha de França


Ao descer comigo as velhas escadas de madeira do pequeno prédio, o Fábio proclamou: “você vai levar uma vida de escritor”. A frase de impacto, previsão do que seriam os próximos meses, deve ter-se baseado na relativamente charmosa decadência do lugar para onde acabara de me mudar, parente distante do hotel onde vivia Arturo Bandini, romancista em começo de carreira, nos romances do John Fante. Coincidentemente localizada num morro (o que, em se tratando de Lisboa, não é tanta coincidência), a Penha de França não era nenhuma Bunker Hill, mas demonstrava ser promissora: se havia inspirado a bela frase ao meu visitante, com quantas não me haveria de presentear?

Encarei a declaração do Fabião como uma promessa feita em meu nome, e, mesmo sem ter-lhe dado nenhuma procuração para falar por mim (mesmo que fosse para mim mesmo), não me incomodei em assumir o compromisso. Estava decidido “a levar uma vida de escritor” enquanto estivesse sozinho em Lisboa. Tão logo recebesse meu primeiro ordenado, iria à Fnac comprar um notebook e escreveria, escreveria, escreveria. Uma teoria diz que, batendo à máquina por tempo indefinido, existe a possibilidade de um chimpanzé transcrever as obras completas de Shakespeare. Eu, com menos pêlo e um pouco adiante na escala evolutiva, deveria ter alguma chance de escrever algo decente. E as minhas pretensões eram bem mais modestas que as do macaco.

Comecei a trabalhar, me pagaram. Gastei com o aluguel, gastei com comida. Bandini era um exemplo, mas até certo ponto: não pretendia viver a fugir da senhoria e a alimentar-me apenas de laranjas como ele. Não sobrou para o notebook; nem meu salário integral chegaria. Recebi de novo e, mesmo juntando os rendimentos, o notebook continuava caro. Parecia que, para comprar a máquina, só se aderisse às táticas de fuga e à dieta riquíssima em Vitamina C do alter ego de Fante. Meus joelhos não são mais os mesmos, meu gosto por frutas cítricas não chega a tanto, desisti. Do computador, não de um notebook: adquiri um Moleskine, caderninho metido à besta que traz, na capa de couro, um aviso dizendo ter sido o preferido de gente como Picasso e Hemmingway. Intimidado, até hoje não tive coragem de tirar o plástico da caderneta. Marketing sádico esse. Um aspirante (a escritor ou a qualquer coisa) já é suficientemente inseguro sem saber que as páginas onde pretende rabiscar descendem daquelas em que foi escrito “O Velho E O Mar”.

Mesmo não tendo comprado um notebook nem tocado o outro, escrevi algumas coisas, como atestam este blog e o Morfina, o outro site onde colaboro. A quantidade de material repetido nos dois endereços mostra que não produzi o quanto gostaria: pretendia ter uns sessenta textos até a volta ao Brasil, e não cheguei a um terço. Querendo atingir o objetivo, tenho pouco mais de quinze dias. O diabo é que, se terei mais tempo livre por não trabalhar nesse período, não terei um computador à mão pelo mesmo motivo. Cumprindo a meta ou não, minha “vida de escritor” acaba antes da estadia em Portugal. Daqui a uma semana, deixo o quarto na Penha de França e volto a incomodar meus amigos até a data do vôo.

Sentirei falta do lugar, apesar das baratas – que, aliás, ajudam a compor a atmosfera. Mas, principalmente, vou sentir saudade de chegar lá, sentar ao computador e escrever até a manhã do dia seguinte. Só faltou isso para a Penha de França se tornar Bunker Hill.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

O casal que não fala


Num bar. Num restaurante. Numa mesa ao lado da sua. Pode reparar: em meio às conversas e gargalhadas gerais, sempre há um casal que permanece calado. Não é aquele silêncio próprio da cumplicidade, facilmente identificado pelos olhares trocados, por si só verborrágicos. Esses dois estão quietos de outro jeito, constrangedor. Como eles, seus olhares nada têm a dizer e, por isso, evitam encontrar-se. Preferem a beleza imprecisa da bolacha de chope puída sobre a mesa ou o ineditismo do acústico do Capital Inicial na TV do estabelecimento.

Sempre que via uma dessas miseráveis duplas, me perguntava: por que ainda são um casal, se nada têm em comum? E, se insistem em permanecer juntos, por que expor sua condição lastimável ao público? Se é para não se divertir, poderiam ter ficado em casa – além do dinheiro, poupariam os outros clientes da triste visão. Mas descobri o que se passa com esses casais. Sim, eles se falam, e muito. Tanto é que, quando vão aos restaurantes e bares, já estão sem assunto.

Onde conversam? No cinema. No teatro. Nem precisa reparar: em meio ao silêncio que deve imperar nesses locais, você vai ouvir um casal de imbecis que não calam a boca, geralmente sentado bem perto de você. Você, nesse caso, sou eu mesmo, um imã para essas matracas. Só Deus e a minha namorada sabem quantas vezes me contive para não sair na mão no meio de um filme. Não poderiam esperar até o fim da sessão, até o jantar? Claro que não. Comentários do gênero “todo mundo nesse filme (‘300’) tomou bomba” são brilhantes demais para serem contidos por tanto tempo. A genialidade não tem hora, e cabe aos menos dotados não atrapalhá-la.

Além disso, durante o jantar depois do cinema, eles estarão muito ocupados admirando a velha bolacha de chope ou o acústico do Djavan. (O DVD do Capital deve ter sido quebrado por algum cliente revoltado.)

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Fumador ou não fumador?


Lisboa é uma grande balada. Não que haja por aqui um sem-número de opções de lazer noturno, nada disso. Digo que a segunda mais importante capital da Península Ibérica (só fica atrás de Madrid) é uma enorme night por outra razão. Qual danceterias, bares e outros lugares aonde as mulheres vão apenas para dançar (mesmo que não haja música), é impossível andar pelas ruas lisboetas sem voltar para casa fedendo a cigarro.

Se o cigarro fosse freqüente apenas nas ruas, eu e todos moradores não fumantes (que devem ser uns cinco, nenhum deles português) ainda estaríamos no lucro. Qualquer lugar é lugar para pretejar os pulmões, e imagino que os ambientes fechados inspirem nos locais ainda mais vontade de fazê-lo. Tenho a impressão de que o número de fumadores (mais uma das palavras subtilmente diferentes das brasileiras) nos shoppings e afins é significativamente maior que em lugares a céu aberto. Nos restaurantes existem, sim, os ambientes para os que não fumam por vontade própria, mas, diferente do que acontece na primitiva ex-colônia, são bem menores do que àqueles destinados a quem paga para fumar. Provavelmente porque o segundo grupo dá mais lucro aos restaurantes, que também vendem Marlboros e afins.

Nos locais de trabalho, também como onde gorjeia o sabiá, o fumo é permitido apenas em áreas restritas, mas só na teoria: talvez por não conhecer a palavra fumódromo, o pessoal também ignore o conceito. Vira e mexe, sem que eu perceba mas meus pulmões sim, chega à minha mesa um colega empunhando um cigarro. E, depois de certa hora, todos fazem o mesmo, sem o menor constrangimento. Impressionante, com tanta fumaça, os detectores não serem acionados. Devem ser regulados no modo mais tolerante possível, por uma questão de bom senso: fossem eles mais sensíveis, os equipamentos de informática e documentos estariam perdidos. Como também estarão na eventualidade de um incêndio causado por uma eventual bituca. Mas é só uma eventualidade.

Eu nunca fumei – exceto um ou outro cigarro filado (e babado) no auge da bebedeira. Também nunca considerei isso um mérito. É bem ao contrário: deve-se à minha incompetência. Como qualquer moleque da minha geração, negligenciei os então recentes avisos do Ministério da Saúde e só não me viciei porque não aprendi a tragar. Quando digo que não fumo, obviamente omito essa parte, do contrário a inveja (“sorte sua”) daria lugar à comiseração (“coitado”). Enfim, o que interessa é que nunca fumei e, aos 30, pensei que nunca começaria. Passei a reconsiderar depois que soube que o fumo passivo é mais prejudicial que o ativo. Com a quantidade de cigarros acesos ao meu redor, fumar não é exatamente uma opção para mim. Se o fumo de segunda mão, como tudo que é de segunda, é pior que o de primeira, melhor eu também acender o meu cigarrito.

Assim, pelo menos vou poder ter o Zippo que sempre quis, mas nunca comprei por achar muita grana para se gastar num acendedor de fogão. Vou poder ser cool como o Humphrey Bogart ou como o John Constantine, que, de tão cool, conseguiu livrar-se de um câncer passando a perna no diabo. Aliás, junto com meu primeiro maço de cigarros, vou comprar também uma reedição de “Hellblazer”. Estudarei atentamente a proeza do personagem porque, ao que tudo indica, precisarei reproduzi-la.