quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Cure for Pain


Nunca bebia ou fumava só, só na companhia dela. E só bebia e fumava porque ela exigia. Todas as noites, em horários em que a maioria das pessoas estaria dormindo. Ela não se importava, o sono não lhe fazia falta. Ao contrário: quanto menos sono, maior a sua disposição. Sabendo que ele, sim, precisava dormir, ela só lhe concedia as poucas horas de inconsciência mediante às garrafas esvaziadas e aos cinzeiros lotados. Nicotina e álcool eram os únicos argumentos aceitos nas negociações de trégua que, diariamente, ele travava com a Dor.

Quando a Dor era nova, havia tanto tempo que ele nem se lembrava de quanto tempo era, veio com desespero e urgência, e o desafiou a dar-lhe um fim imediato. Mas foi só ele pôr a cabeça fora da janela do apartamento e ver-se estatelado na rua para recuar. Nas noites que passou em claro, tentou maconha, tentou calmantes, tentou antidepressivos. Nenhuma tentativa passou disso. A Dor não se acalmava com drogas. As ilegais tinham efeito inverso, serviam como anabolizantes; as vendidas com prescrição médica eram simplesmente ignoradas.

Cada notificação de despejo era recebida pela Dor como um convite para sentir-se em casa, e ela foi se alojando. De tão à vontade, não viu problema em abrir a geladeira e uma cerveja, tirada dela. Para acompanhar, acendeu um cigarro, fumado na sala mesmo, sem cerimônia. Bebeu, fumou, bebeu, fumou, bebeu, fumou. Até que, cansada de beber e fumar, a Dor enfim dormiu. Só aí ele também pôde. No sono, a Dor mostrou que, mesmo então, permanecia acordada. O breve intervalo até o despertador tocar foi tumultuado, povoado de pesadelos. Uma prévia de como seria dividir a cama com ela.

Após fazê-lo perder alguns dias de trabalho, a Dor concordou em deixá-lo ir ao escritório. Sempre o acompanhava, mas sabia se comportar. Como uma filha que vai ao emprego do pai e fica desenhando quietinha, durante o expediente, ele quase não notava sua presença. Sabia, porém, que à noite ela não falharia. Abandonaria a inocência infantil e dividiria com ele todas as cervejas e cigarros, na happy hour que não podia ser chamada assim. 

Não tardou à Dor parecer sempre ter estado com ele. Já tinha esquecido de onde ela surgira, quem os apresentara, de como era a vida sem ela. Conhecia tão bem os gostos dela, que passaram a também ser os seus. Entre as afinidades, além da predileção por Serra Malte e Marlboro, a aversão a sair de casa e a receber visitas. Os dois se bastavam. Nesse casamento, e ele e a dor estavam destinados a serem infelizes para sempre.

Ou até aquela capa da revista semanal. Na banca, a chamada gritava sobre um revolucionário tratamento contra a dor, que acabara de chegar ao país. Os detalhes da reportagem tratavam da controvérsia acerca da cirurgia, mas também falavam dos seus altos índices de sucesso, reforçados por gráficos e estatísticas. Não sem se sentir um traidor, ele ignorou os apelos da Dor e foi ao hospital, candidatar-se ao tratamento.  

Após passar por uma triagem e esperar por horas, foi atendido por um médico.

“Então, a dor que você sente é no coração.”
“Isso.”
“E você já procurou um cardiologista?”
“Sim, mas ele só me disse pra parar de fumar e beber... bom, só que eu fumo e bebo por causa da Dor.”
“Então, não é uma dor de natureza cardíaca...”, tomou notas num bloquinho. “Me diga uma coisa: você já se apaixonou?”
“Como?”, respondeu, pego de surpresa. Que espécie de pergunta era aquela?
“Por favor, responda. É importante para o tratamento.”
“Não, nunca me apaixonei. Eu acho...”
“Nunca mesmo?”
“Bom, teve uma vez...”

Colocou a mão no peito e, os olhos apertados numa expressão de agonia, baixou a cabeça. À menção do que a havia originado, a Dor se manifestou, tão forte quanto no começo. Depois de tomar mais algumas notas, o médico prosseguiu, calmamente.

“Deixa eu explicar como funciona o nosso tratamento. Vou te encaminhar para alguns exames, que vão apontar exatamente a localização e o tamanho da sua dor. Com o resultado, eu vou ter a dimensão da dor e a gente vai marcar a cirurgia. Na cirurgia, eu e minha equipe abrimos o seu peito e extraímos a dor...”
“Como se fosse um tumor?”, completou, lembrando a analogia lida na revista.
“Sim, como se fosse um tumor. Inclusive, tem uma outra semelhança entre a dor e o câncer... Se a dor tiver se espalhado muito...”
Ele arregalou os olhos e apertou o peito, com ainda mais força.
“Se tiver se espalhado muito, o quê?”
“Bom, se a dor tiver se espalhado muito, pode ter comprometido o coração e, nesse caso, o melhor é retirá-lo também.”
“Quê? Retirar meu coração? É brincadeira, né, doutor?”, riu, entre irônico e nervoso.
“Se não retirarmos seu coração, a dor vai se espalhar pelo seu corpo inteiro. Sua vida vai ficar insuportável. Você nem vai conseguir sair da cama. Aliás, dificilmente você vai viver muito...”
“Mas, se você tirar meu coração, eu morro na hora!”
“Não, não morre. O coração é superestimado. Muitas pessoas vivem sem, sabia?”
“Ha, ha, ha, ha! Claro, claro... Meu chefe, por exemplo, não tem coração!”

O médico não acompanhou as gargalhadas do paciente. Falava sério.

Feita a cirurgia, retirado o coração – de fato, os exames constataram que o órgão tinha sido completamente tomado pela dor –, a recuperação demorou meses, mas foi plena. Como prometido, a Dor, realmente, o deixou. Levou com ela a bebida e os cigarros – não faziam mais parte das suas noites, novamente bem dormidas. Mas ele sentia falta daquilo. Das Serra Malte, dos Marlboro e mesmo da companhia da Dor. Ou pelo menos sentiria, se ainda sentisse alguma coisa.