terça-feira, 30 de maio de 2017

Produtividade

A maioria dos meus textos é escrita no celular, a caminho do trabalho ou na volta para casa. No ônibus ou no uber/pop/táxi, aproveito que sou passageiro para agilizar a produção de crônicas, textos, resenhas e até de rascunhos literários. Desde que abandonei o carro, minha produtividade nas letras aumentou um bocado. Acontece também, quando não escrevo, de aproveitar a viagem para consumir textos alheios. É então que leio livros, revistas, notícias e, confesso, textões de Facebook – que também produzo, claro.

Hoje seria dia de leitura: pretendia começar "Geração X", do Douglas Coupland - autor do qual já falei aqui. Um texto fácil, fluido, mas que, por ser no original em inglês, requer um pouco mais de atenção. Estava curioso pelo livro, então achei que esse interesse bastaria para garantir a concentração. 

Eis que chega atrás de mim, no ônibus, um sujeito careca e barbudo, mas aquela barba bem aparada, com cara de eficiente, desses que "não tenho tempo a perder". Como existem pessoas assim nos ônibus que pego. A caminho de algum escritório da Vila Olímpia ou no Itaim, como eu, usam a viagem para adiantar o dia. O problema é que, em muitos casos, isso não é feito em silêncio, com a leitura de notícias, e-mails ou mesmo feeds de redes sociais. Implica em fazer ligações – aproveitando todos os minutos ilimitados oferecidos pela operadora de celular – ou gravando mensagens de áudio.

Obviamente, não passa pela cabeça dessa gente atarefada que possam estar atrapalhando os companheiros de viagem. Invasão de espaço sonoro não parece ser interpretada por eles como invasão. Será que eles não ligam para a portaria para reclamar do barulho de furadeira no apartamento vizinho? Pois é. Barulho no ouvido dos outros é refresco. 

O careca produtivo falou, falou e falou. Fez, pelas minhas contas, umas três ligações e gravou um áudio – olhei para ele para conferir. Agora, está descendo do ônibus, com a vida agilizada. Eu desço em dois pontos. Li três páginas. 



sexta-feira, 26 de maio de 2017

Gosto de U2. Mas juro que sou legal


Já tem uns anos, David Cameron, então primeiro-ministro da Inglaterra, declarou publicamente seu amor pelos Smiths. Motivo de orgulho? Não para os antigos líderes da banda. O primeiro a se manifestar foi Johnny Marr, que mandou o recado: “Não, eu te proíbo de gostar”, disse ele, lembrando um certo livro em que o protagonista quer impedir a ex-namorada de continuar a ouvir as músicas da sua banda preferida – coincidentemente, os Smiths. Não demorou a Morrissey, antigo parceiro musical de Marr, também expressar sua desaprovação. Cameron, afinal, era o extremo oposto do que sempre defenderam os compositores de “The Queen Is Dead” – um “tory”, que, traduzido para a realidade local, seria um “reaça”. Os Smiths vieram das classes operárias, e era para elas que compunham e tocavam.

Vai dizer que nunca aconteceu com você? Não alguma autoridade de quem você não vai muito com a cara ter dito que gostava da sua banda – não que não possa ter acontecido, mas me refiro a algo mais comum a todos, mortais da plateia. Aquela hora em que alguém que você abomina diz ser fã da sua banda preferida. Um babaca escroto como aquele não pode ter os mesmos ídolos que você, sujeito sagaz e gente boa. Um imbecil que estaciona ocupando duas vagas não pode ter se sensibilizado com as mesmas letras que te fizeram companhia nos momentos mais importantes da vida. Mas aí, por acaso, vocês se encontram no show do Malkmus no Beco – aquele de 2013 –, e você se dá conta de que, putz, realmente vocês têm isso em comum. A partir de então, não tem jeito, inicia-se um processo de desencanto com Malkmus. É uma pena, mas não dá para compartilhar nada com aquele cuzão.

Acontece também de forma diferente. Certas bandas pertencem à prateleira de gostos dos otários, e é só saber que uma pessoa que ainda estava em período de avaliação gosta de uma delas para você chamá-la no seu departamento pessoal particular e avisar: "Infelizmente, seu contrato não será prorrogado." Como respeitar plenamente alguém que goste de, sei lá, Coldplay? Foo Fighters? Nem a pau. Pearl Jam? Pffff. U2? Tá de brincadeira. Tudo banda de coxa, de playboy, de mauricinho. Gente para quem "top" é como vírgula.

Só que, às vezes, a equação não é assim, tão precisa. Pode ser que alguém que você respeita e tem como referência – inclusive musical – se diga fã de uma dessas bandas. Erro no sistema. O cara conhece tudo do Radiohead, do Lou Reed, adora o Nick Cave e o Bob Dylan. Como pode essa mesma pessoa também curtir o U2? "Banda de quem faz amorzinho", definiu meu primo. Quatorze anos mais novo, o Renato sempre me admirou. Mas isso não o impediu de tirar um sarrinho da minha cara ao ler um post meu no Facebook manifestando o desejo de ir ao show em que os irlandeses vão tocar "The Joshua Tree" na íntegra. Além de este ser um dos meus álbuns preferidos da vida, o show de abertura vai ser do Noel Gallagher – ex-líder do Oasis, outra banda para a qual muita gente cool torce o nariz.

Respondi ao comentário do meu primo de forma leve e superficial. Disse que gostar de Bono & Cia. é a diferença entre ser hipster (caso dele) e "indie velho" (meu caso). Uma bobagem, claro. Muitos dos meus pares detestam U2, assim como, imagino, alguns dos dele devam gostar. Mas essa história fez lembrar da minha própria história com essa banda, que me ensinou um pouco sobre estereótipos.

Aos 15 anos, eu não apenas era fã dos Smiths: era um torcedor. Olhava para as outras bandas que, como eles, também eram apontadas como “uma das mais importantes dos anos 1980” e as encarava como rivais na conquista por um troféu de campeonato. O maior adversário, pelo que eu lia na imprensa especializada, era o time que tinha Bono como capitão. Então, apesar de mal conhecer o U2 – pouca coisa além de "Sunday, Bloody Sunday" –, eu não gostava e fazia questão de permanecer na ignorância. Me aprofundar na obra deles seria o mesmo que ir parar no meio da torcida inimiga, onde haveria vários boyzinhos, todos eles populares e muito bem inseridos na escola e na sociedade. Eu era – ou ao menos gostava de me ver como – um "outsider". Se eles gostavam, não podia ser coisa boa.

Só que, naquele mesmo ano, me deram uma fita cassete gravada com "Achtung, Baby". Então lançado há pouco, o disco era muito bem falado pelas revistas que eu lia e por amigos mais velhos. Foi um deles – o Mauro, se não engano – quem me deu a fita. Resolvi, finalmente, dar uma chance à banda. Afinal, o Mauro e a namorada Patrícia eram fãs do U2, mas nada tinham em comum com a imagem que eu fazia dessas pessoas: eram descolados, cultos e divertidos. Se eles gostavam de U2, bom, não custava nada descobrir porque. O fim da história é fácil adivinhar. Passados 25 anos, “Achtung, Baby” está na lista dos meus discos favoritos ao lado do “Joshua Tree”, mencionado parágrafos atrás.

O U2 é uma muito banda popular. Popularíssima. Há décadas, enche estádios como poucas bandas foram ou são capazes. Na época em que ainda se vendiam discos, os deles estavam sempre nos topos das paradas, mesmo lugar ocupado pelos seus singles e clipes. Mas sua maior proeza era aliar o sucesso comercial à qualidade artística. Afinal, outros artistas alcançam as mesmas cifras produzindo coisas acessíveis, mas sem nenhum mérito. (Em outras palavras, fazendo música ruim.) Bandas assim, tão abrangentes, têm fãs de todos os tipos. Há, sim, muitos babacas entre eles, mas, também, muita gente boa. Porém, como na vida em geral, entre os fãs de bandas como o U2, os imbecis são maioria.

Mas você ou o meu primo Renato pode, simplesmente, não gostar de U2. Achar a emoção com que Bono canta exagerada e, ainda assim, ensaiada; seu ativismo, conversa para boi dormir; seu messianismo, risível. Eu entendo e, em parte, concordo. Não vou usar aquele argumento "você pode não gostar, mas tem que admitir que...".

Você não tem que admitir nada, a não ser o fato de que existem cretinos que amam as mesmas bandas que você, assim como pessoas legais podem gostar de bandas para você repugnantes. Por falar nisso, além do U2, eu também gosto do Pearl Jam, viu?

PS: Ah, o tal livro de que falo no começo do texto é o meu, Quem Vai Ficar Com Morrissey?. Ficou curioso? Você pode comprar aqui.)

(Texto publicado originalmente no site Bem Rock.)

quinta-feira, 18 de maio de 2017

Meu livro preferido

Se perguntassem agora, diria: meu livro preferido é "Primeiro, o amor, depois o desencanto (e o resto de nossas vidas)", do Douglas Coupland. E diria isto antes mesmo de terminar a leitura das pouco mais de 200 páginas de contos curtos compostos por parágrafos igualmente resumidos, entremeados por singelas ilustrações. Se ainda não cheguei ao fim deste pequeno livro, é menos pela falta de tempo do que pela vontade de continuar lendo ao máximo possível.

Escritor, escultor e filósofo, Coupland é responsável pela expressão Geração X, título do livro que fez sua fama e nomeou os nascidos pós baby boom, entre o começo dos anos 1960 e o final dos 1970. Neste que leio, publicado em 1994 e batizado originalmente como "Life After God" (talvez escolhido pelo apelo sentimental, o título da edição nacional é um trecho de um dos contos), Coupland faz a dita autoficção, em que os limites entre autor e personagem não são claros. Baseia-se em memórias e constatações, numa prosa de muito lirismo e nenhuma firula, para falar de amor, amizade, morte, medo e desilusão -- às vezes, de tudo isso junto. Não são poucas as epifanias e os momentos que centenas de leitores devem ter destacado com marcador de texto.

Sim, dizer que é o melhor que já li é um reconhecido exagero de momento, mas é, desde já, um livro com o qual tenho uma relação íntima. Não me bastou ler a cópia que me foi emprestada, tive que comprar uma para mim -- num sebo virtual, usada; não há edição atual. É um livro para se ter.

segunda-feira, 15 de maio de 2017

Simpatia na padaria 2


Outro dia, incomodado com o excesso de simpatia dos novos atendentes da padaria ao lado da minha casa, senti saudade do antigo dono, um português grosseiro. Escrevi um textão sobre isso, talvez você tenha lido. Dizia que, como na época do tuga mala, continuaria não indo à padoca.
Ontem, porém, com a consciência um pouco pesada, resolvi dar uma segunda chance. De novo, fui atendido com sorriso escancarado, em especial por um balconista gordinho. Menos ranzinza, deixei por menos. Tanto que hoje fui lá novamente. Desta vez, além de sorriso, de "amigão", teve também aperto de mão e "estava dando uma corridinha no parque?". Teve também uma epifania.

Em "Corpo fechado", o personagem do Samuel L. Jackson, um sujeito cujos ossos se quebram com incrível facilidade, tem uma teoria: se ele é assim, deve haver um extremo oposto seu, um cara indestrutível. Essa nêmesi de fato existe, e é interpretada pelo Bruce Willis.
Se é assim no filme do Shyamalan, por que não na vida real? E se esse balconista gordinho simpaticão for a nêmesi do português carrancudo? Faz sentido, não faz? Ah, talvez não faça.
Seja como for, se alguém faz esforço para ser legal, agradável, me parece injusto tratar essa pessoa da mesma forma que alguém que não faz nenhuma questão de te atender. Esta foi a verdadeira epifania.
Além do mais, o pão de lá é ótimo.
(Também publicado originalmente na minha página pessoal do Facebook)

Simpatia na padaria 1

Numa esquina perto da minha casa, um ponto ótimo, reinava absoluta, no raio de um quilômetro, uma padaria. Monarca arrogante, a Abelha Rainha tinha certeza de que não seria destronada.
O dono, um velho português mal humorado, não fazia a menor questão de ser cordial e também não exigia isso dos funcionários. A qualidade dos produtos não era muito melhor que a do tratamento dispensado aos clientes. Para completar, o ambiente, de móveis velhos e azulejos lascados, era tão acolhedor quanto. Some-se isso tudo e o resultado é o número de vezes que estive na padaria nestes nove anos em que moro no bairro: seis, no máximo.
Eu e meu irmão, também morador da vizinhança, sempre falávamos:
- Se alguém comprasse essa padaria e transformasse num lugar razoável, ficaria rico.
Eis que esse dia chegou. Passando em frente, vi, além das obras para uma rampa de acesso, uma faixa que avisava: agora pertencente a uma rede, a padaria estava sob nova direção. Em princípio, fiz cara feia. Por mal encarados que fossem o português e seu estabelecimento, torço para os pequenos comerciantes. Torcia para uma fada, como uma fizera com o Pinóquio, transformar aquele português numa pessoa de verdade. Não que o dono dessa tal rede de padarias seja o Abílio Diniz: é apenas um pequeno empresário mais bem sucedido e, sem dúvida, mais cuidadoso -- com tudo.
Pensando nisso, resolvi dar um voto de confiança para a "nova" padaria da esquina. Domingo passado, voltando da corrida, passei por lá para comprar pão. Fui atendido por um balconista sorridente. Em excesso.
- Bom dia, meu amigão - disse o sujeito que eu nunca tinha visto antes.
- Prontinho, meu queridão - foram as palavras do colega ao me entregar os pãezinhos.
- Bom domingo, vai com Deus - acenaram quando fui embora.
Hoje, cinco dias depois, também ao terminar uma corrida, cogitei tomar café na tal padaria, mas bastou lembrar da simpatia forçada dos atendentes para desistir. Tive saudade do português e a certeza: continuarei indo à sua antiga padoca com a mesma frequência.
(Originalmente publicado na minha página no Facebook)