terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Pouco mais de 20 anos



Faz pouco mais de 20 anos. Em 1991, moleque de catorze anos incompletos, escutei Morrissey pela primeira vez. Claro, antes disso, lembro de já ter ouvido sua voz, nas músicas dos Smiths que eventualmente as rádios tocavam. Mas só no comecinho da década de 1990 escutei mesmo, prestei de fato atenção no que e em como ele cantava. Junto com “Bona Drag”, seu segundo álbum solo e o primeiro da minha coleção, foi lançado também o meu real interesse por música.

Gêmeos univitelinos, meu recém inaugurado gosto musical era quase – afinal, ainda ouvia Guns n’ Roses, Faith no More e afins – indistinguível do disco, que à época me aproximou das melancólicas bandas inglesas da década anterior. E que, anos depois, me levaria a comprar discos e ingressos para shows de descendentes – diretos e indiretos – como The National e PJ Harvey. Para além das fronteiras da música – ou dentro delas, já que, na minha vida, tais fronteiras ultrapassam os limites sensatos –, não é exagero dizer que o contato com a obra de Morrissey mudou tudo. Se não me tornei vegetariano ou celibatário como muitos dos seus seguidores, atribuo parte significativa do meu bom humor, otimismo e simpatia à sua influência. Não se ouvem aos catorze anos versos que conclamam o apocalipse impunemente.

Faz pouco mais de 20 anos. Mas não posso dizer que minha espera por Morrissey no Brasil, encerrada com o anúncio de suas apresentações em março, tem a mesma idade. Primeiro, porque ele já esteve por aqui – em 2000, em momento bem menos prestigiado de sua carreira, cantou para um Olympia lotado, onde ainda hoje me arrependo de não ter estado. Segundo, porque, em 1991, eu sequer sonhava com isso: para o pirralho de expectativas tão baixas, esse show era mais improvável que um mísero olhar da menina mais bonita da classe. Depois de muitas especulações e frustrantes e infalíveis negativas – como em 2004, quando foi à Argentina e nos ignorou solenemente –, conclui que talvez aquele moleque pessimista não estivesse completamente errado. Sim, ele havia estado aqui em 2000, mas, contrariando as inscrições sagradas, não haveria uma segunda vinda.

Fazia justamente 20 anos quando, ano passado, numa comemoração involuntária da efeméride, fui a Dublin para, finalmente, ver Morrissey pela primeira vez – de forma decente. Antes, já o tinha visto no Coachella 2009, mas não valeu: ele tinha tocado para uma platéia impaciente e desrespeitosa, como são as de todas atrações que antecedem a principal em grandes festivais. Bem diferente dos poucos mais de mil reunidos àquelas noites de fim de julho no pequeníssimo Vicar Street. Imbuídos de um fanatismo que os empurrava brutalmente contra a grade em frente ao palco, não foram poucos os irlandeses que tentaram ocupar os lugares onde eu o meu amigo Rodrigo estávamos, preservados com igual fanatismo e (sabe-se lá como) maior força física. Além de alguns hematomas, a loucura nos rendeu uma visão do palco que só os seguranças, se pudessem se virar, teriam. E, para mim, a chance de segurar na mão de Deus – que não me importei de dividir com outros retardados que se atiraram para pegá-la, quando ele a estendeu. Repetido o arrojo no dia seguinte, na mesma casa dublinense, decidimos encerrar a turnê de forma mais pacata uma semana depois, em Londres. Na legendária Brixton Academy, presenciamos o milagre a uma distância segura, mas, ainda assim, algumas vezes, tivemos de suspender a folga dos músculos para evitar o atropelamento.

Agora, Morrissey vem tocar aqui, há poucos quilômetros da minha casa. Na próxima Barra Funda, no vizinho Rio de Janeiro, na encostada Porto Alegre – comparada à distância de Londres, até a da capital gaúcha é pequena. E eu vou, claro. Vou a quantos desses shows conseguir ir. Vou aproveitar. Até porque, segundo um pivete pessimista que eu conheço, acho que, depois dessa, ele não volta.

PS: A peregrinação temática do ano passado – além dos shows, a viagem incluiu uma passagem por Manchester, com direito a um tour por lugares históricos para Morrissey e os Smiths – tornou-se ainda mais marcante porque, durante ela, na noite anterior ao show de Londres, terminei de escrever “Quem vai ficar com Morrissey?”. Espero publicar este ano. E espero que você compre.

domingo, 1 de janeiro de 2012

Como pretendo viver o último ano da minha vida

Li pouco o Daniel Piza. Esse pouco se manteve assim porque não foi o suficiente para me tornar admirador do seu trabalho. Noticiada ontem, a morte do jornalista me chocou como chocam todas as precoces e repentinas, de nomes minimamente conhecidos. Teria ficado nisso, apenas no “coitado... agora vamos ler o esporte”, se minha namorada e ele não fossem próximos. Não íntimos, próximos fisicamente mesmo: colegas de Estadão, a mesa da Débora fica em frente à sala que Piza ocupava.

Assim, naturalmente, tivemos a companhia do Daniel Piza ao longo do último dia do ano. Memórias das conversas durante os eventuais cafés que tomavam juntos, comentários lamentosos sobre uma planejada mudança da família – deixou esposa e três filhos – para Nova York que jamais aconteceria, e as inevitáveis considerações sobre o sentido da vida. Se soubesse que morreria tão cedo, será que ele teria vivido de outro jeito? E eu, como aproveitaria meus anos, se fosse avisado de que me restariam poucos?

Para responder às perguntas da Débora – e mesmo às minhas – tomei como ponto de partida o verso de uma música que, já há dias, não me saía da cabeça. Em “Beautiful Boy”, John Lennon define: “a vida é o que acontece enquanto fazemos outros planos.” Talvez a vida realmente tenha outros planos para nós, e, mesmo que entre eles esteja a morte, não podemos deixar de fazer os nossos próprios. Sem imaginar que os dele seriam interrompidos aos 41 anos – um a mais que Lennon –, Piza se preparava para essa nova etapa, nos Estados Unidos. Eu teria feito exatamente o mesmo.

O clichê “viver cada dia como se fosse o último” nos remete a imagens igualmente percorridas, de gente pulando de pára-quedas ou sentada no topo de uma montanha admirando o pôr do sol, perpetuadas por comerciais e filmes de baixa qualidade. Já minha tradução para a máxima é outra, bem menos empolgante. O último dia da minha vida pode ser passado na cama, lendo um livro, de ressaca ou apenas com preguiça demais para me levantar – até mesmo para abrir a janela e ver o pôr do sol.

O último dia da minha vida deve ser como qualquer outro, uma extensão dela, vivido de acordo com meus próprios princípios e convicções. Desapontando algumas pessoas, mas tentando não fazer isso comigo mesmo.