quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Paulista, Bizarra Paulista


Dia desses, andava pela Paulista na companhia de duas amigas, quando começou a chover. Corremos até a toldo mais próximo, que não era bem um toldo, mas o vão livre do MASP. Se o cartão postal nos protegeu da chuva (assim que acabei de escrever isso, imaginei alguém correndo debaixo de chuva com um cartão postal de verdade sobre a cabeça; acho que não adiantaria muito), não deu conta do vento (é um vão livre, afinal) e muito menos da bizarrice. Na avenida mais famosa do país, não há abrigo contra isso.

Ali, o volume de bizarrice é incomparavelmente maior que o de carros ou de decibéis, os outros principais concorrentes. É como se o endereço fosse uma zona livre de censuras e restrições e, portanto, toda espécie de absurdo fosse permitida. Mais do que isso: parece que, na Paulista, as pessoas se sentem na obrigação de serem esquisitas. Ao dar de cara com um casal homossexual completamente tatuado, com “body modifications” (tipo aqueles chifres implantados sob a pele) e cabelos verdes, tenho certeza de que, no bairro de onde vêm, eles são completamente diferentes – sem cabelos coloridos, tatuagens ou auto-mutilações e, sim, sem pederastia. E, quando penso nisso, vem a dúvida: o tempo que eles gastam para se arrumar é maior que o tempo que levam criando coragem para se beijar?

Voltando ao vão livre do MASP, estávamos os três tentando escapar das rajadas de chuva que teimavam em ir para baixo da estrutura, quando mais uma vez a Paulista cumpriu sua vocação para circo de horrores. Aproximou-se de nós um rapaz de vestes, trejeitos e fala hippie. Mas não um hippie qualquer: um hippie à moda da Paulista. Ou seja, bizarro (ouvi alguém dizer que todos os hippies são bizarros?). Cabelos bem curtos, óculos arredondados, uma barbicha comprida avermelhada, camisa, bermuda e tênis multicoloridos. Antes que ele abrisse a boca, conclui que nada que pudesse sair dela me interessaria. Vi que carregava uma sacola plástica e conclui que, bem, nada que pudesse sair dela também me interessaria. Nunca na minha vida estive certo duas vezes com tão pouco espaço de tempo entre uma e outra.

Enfiou a mão dentro da sacola e dela tirou “caixinhas feitas com cartões postais publicitários” (desses que imaginei serem inúteis para se proteger da chuva), confeccionadas por ele mesmo, para custear seus estudos. Ele as ofereceu, sugerindo-as como porta-jóias ou mesmo presente para alguém, mas não senti muita firmeza em suas palavras. Provavelmente porque, enquanto falava, ele se dava conta da improbabilidade de alguém colocar jóias, um negócio teoricamente caro, numa caixinha mequetrefe como aquelas. Também deve ter concluído que, para servir de presente, elas teriam de vir acompanhadas dum cartão “estive na Grécia e me lembrei de você”. A sua voz sumia antes do fim das frases, e o rapaz resolveu fazer o mesmo. Ele afastou-se, e o comentário foi um só: se o camarada quer pagar a faculdade, por que, ao invés de perder tempo com essa porcaria que ninguém quer comprar, ele não vai procurar emprego? Bom, vai ver o cara não está muito a fim de estudar e só quer poder falar para os pais: “Viu? Eu tentei...”

O hippie, no entanto, era apenas a primeira parte do programa daquela tarde. A atração principal começaria em instantes, mas não haveria tempo suficiente para quem quisesse ir ao banheiro ou tomar um café. Ainda estarrecidos com a poesia do trabalho artesanal do barbicha, fomos abordados por um mendigo. Nele, o absurdo não estava na aparência: era um mendigo clássico até, com cabelo comprido e barba, ensebados e desgrenhados como manda o figurino do gênero. Também não foi incomum sua primeira frase, uma variação de “me dá um trocado”. A coisa ficou estranha depois que eu neguei. “Pô, pra mim comprar uma maconha...”, disse, em tom bêbado-choroso. Como o hipongo, o sem-teto também não insistiu muito. Sumiu antes que, tocados por seu apelo, pudéssemos mudar nosso veredicto, acrescentando o conselho: “Mas é para comprar maconha mesmo, hein? Não quero ver você com um misto-quente na mão.”

Depois daquilo, fiquei pensando que o mundo seria muito mais interessante se adotasse a lógica de argumentação do pedinte. O pai nega o empréstimo do carro ao filho, mas basta ele dizer que só pretende tirar uns rachas para o coroa lhe dar as chaves, feliz. O sujeito paquera uma garota no bar, ela o manda passear, porém tasca-lhe uma beijoca assim que ele assume que só quer trepar. Ou, então, após ser reprovada numa entrevista de emprego, a candidata sensibiliza o selecionador quando confessa que passaria o dia todo no MSN com as amigas. Se a sociedade seguisse a filosofia do sem-teto, a honestidade de princípios seria premiada. A honestidade de princípios, não a honestidade em si: os políticos, por exemplo, seriam eleitos discursando sobre como desviaram verbas e super-faturariam obras. Nenhuma empresa faria propaganda enganosa -- se o produto fosse uma porcaria, anunciariam em letras garrafais que ele quebraria em um mês. Seria o fim do Procon: afinal, sabendo o que estavam levando para casa, que direito teriam as pessoas de reclamar? E o melhor: não haveria mais aquelas matérias chatas testando a qualidade dos produtos.

Uma lógica assim, infelizmente, só funciona na cabeça libertária, alternativa, de um morador de rua alcoolizado – e, com sorte, emaconhado. Uma pena. Mas talvez pudesse ser adotada em toda a Avenida Paulista. No meio de tanta bizarrice, essa certamente passaria despercebida.

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Gene Kelly, São Paulo e yada-yada-yada


Se morasse em São Paulo, duvido que Gene Kelly ia achar tanta graça na chuva. Dançar entre os pingos, então, fora de cogitação. (Esta, aliás, é das coisas que mais me incomodam nos musicais. Na vida real, ninguém começa a dançar sem motivo aparente. E, se começasse, jamais seria acompanhado por quem estivesse passando. Que o diga o “doidinho”, figura recorrente em toda cidade do interior, não à toa chamado de “doidinho”. Começar a cantar no meio de uma conversa também é estranho, mas, adepto da prática, não tenho muita moral para criticá-la.) São Paulo vira o inferno quando chove.

Diferentemente dos sertanejos de quem descendo, não considero a chuva uma “benção dos céus”. Que ela vem do céu é certo, que Deus tem alguma coisa a ver com ela é provável, já que é bem-vinda é discutível. Não que a lembrança dos anos em que vivi no Agreste, onde as nuvens negras estão longe de significar mau agouro, tenha se apagado. Acontece que, como fez com meus namoricos da época, a volta para São Paulo acabou também com essa paixão. Igualzinho ao telefonema de uma namorada de quem você não quer mais saber, que sua mãe atende e você manda dizer que não está, os trovões e relâmpagos me enchem o saco. Pena que os avisos de chegada das tempestades não passem de formalidade: elas vêm, queira você ou não.

Não discuto a importância da chuva para o ciclo da vida, desde a irrigação de lavouras e abastecimentos de mananciais a yada-yada-yada. Em São Paulo, a chuva também tem seu lado positivo, mas, imaginando o cenário pluviométrico da cidade como um pastel de vento, ele corresponderia ao recheio, enquanto a parte chata equivaleria à massa. (Não estou falando mal da massa, eu até gosto dela. A questão é de simples proporcionalidade.) Se reduzem os riscos de racionamento, de água e energia, as chuvaradas de verão deixam milhares de desabrigados, causam congestionamentos e, a maior das sacanagens, acabam com os churrascos e viagens à praia nos fins de semana. Não é muita massa para pouco recheio?

Em tese, continuo achando a chuva poética, romântica, bucólica e, por que não dizer, yada-yada-yada. É gostoso dormir com o sonzinho dos pingos tamborilando na janela ou “ler um bom livro” tendo a mesma trilha sonora. Mas é só ter de sair de casa que a coisa (ou a chuva) engrossa. Pegar o carro debaixo d’água significa, além de ter de encarar o trânsito anabolizado de que já falei, redobrar a atenção e, se possível, a paciência. Não raro, o babaca do carro de trás se distrai e bate no seu – culpa também dos freios, invariavelmente gastos, que ficam mais ainda mais deficientes. Não raro, devido a acidentes como esse, o congestionamento fica ainda pior.

A chuva também é impiedosa com quem não dirige. Além de atrasar ônibus e tornar impossível qualquer tentativa de pegar táxi – que, segundo uma lei universal bizarra e incontestável, nunca aparecem quando chove –, submete os pobres pedestres a seguidos banhos. Não bastasse ser alvo das gotas vindas de cima, os transeuntes também são atingidos pela água das poças por onde passam os carros. Andando pelas ruas de São Paulo, além de correr esse risco, você vê uma enorme quantidade de buracos e depressões, potenciais reservatórios daquela água preta nojenta, e descobre porque na cidade há uma lavanderia a cada rua. Seus donos, por sinal, devem ser os únicos que gostam de chuva por aqui.

Hoje de manhã, mais uma vez a chuva pôs à prova minha paciência. Trânsito e motoristas comportavam-se como sempre fazem em dias de tempo ruim – e o tempo, como tudo que é ruim, sempre pode piorar. Não tendo paciência monástica (não tendo nada monástico, aliás), eu começava a ficar puto. Mas aí, talvez atraído pela chuva que tanto anseia, o Nordeste que deixei para trás veio em meu auxílio. Moraes Moreira cantava sobre ser confundido com Alceu Valença na divertida “Pernambuco É Brasil”. Aí entendi porque Gene Kelly gostava tanto da chuva: com música, fica fácil. Mas nem por isso, desci do carro e comecei a dançar. Isso eu ainda não consegui entender.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Perfect Day

Ele acordou, coincidentemente, ao mesmo tempo em que ela. Ainda como que sincronizados, olharam pela janela e, ao perceber o céu azul que todos os sábados deveriam ter, pensaram a mesma coisa. “Vamos levar as crianças ao zoológico?” disseram, em coro não ensaiado.

Filhos no carro, ela disse que não estava a fim de dirigir. Ele não se importava de guiar, mas, já que seria o motorista, fez questão de escolher a rádio. Ouviram a música em silêncio, embora fosse a preferida de ambos. A canção lhes trazia lembranças de outras pessoas, mas, por ser uma dessas melodias impossíveis de não gostar, os dois decidiram não mexer na sintonia. Daria muito na cara.

No zôo, passearam de mão dadas. As memórias das quais a música tirara a poeira, colocadas novamente na gaveta – pelo menos, assim se esforçaram parecer. Para disfarçar seu desconforto, ele se ofereceu para comprar pipoca, que ela aceitou alegremente, para disfarçar o próprio. Pipoca doce cor de rosa do jeito que ela sempre gostou. Ele dava na boca dela, e ela comia sem parar e sem perguntar se ele queria. Os risos que vieram em seguida serviram para pôr de fato as recordações no arquivo morto.

Viam os pequenos maravilhados com os elefantes, parecidos estátuas móveis, incólumes pousadas de pássaros. O sol radiante do sábado, cintilante, mas não muito forte, brilhava sobre os paquidermes realçando sua monstruosa beleza. O sol brilhava sobre eles também. Revelava o castanho dos olhos dele, muitas vezes tidos como pretos. Dava à pele morena dela tonalidades douradas. Ele pensava que nunca tinha sido tão feliz. Ela, para variar, pensava o mesmo. Uma felicidade que parecia impossível.

Foi então que se encontraram. Ele, com mulher e dois filhos pequenos; ela também casada, também com duas crianças. “Oi, tudo bem?” Cinco anos sem se ver, tanto para se falar e “oi, tudo bem?”. Não seria àquele dia que se falariam tudo o que queriam. Nem àquele dia, nem em nenhum outro.

- Quem era?
- Ninguém.

As mesmas perguntas, as mesmas respostas. A mesma certeza: a felicidade de fato era impossível.

(Inspirado em “Five Years Time”, Noah And The Whale)

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

A ética por um fio. De macarrão


A ética. É o assunto do momento, inclusive das redações escolares, que começam exatamente assim. Até as crianças que escrevem os tais textos, ainda que não conheçam o vocábulo, sabem bem do que se trata. Afinal, mesmo colando nas provas ou passando cola industrial na cadeira da professora (é, amigo, bons tempos em que só se colocavam tachinhas), elas têm a noção de não deveriam fazer isso. (Se é que dá para dizer que alguém que passa cola industrial na cadeira da professora tem alguma noção.)

Por ser a pauta da vez, é difícil passar um dia sem ler matéria referente – como já foi dito aqui anteriormente, a moçada das redações não é muito chegada à criatividade. Até porque, políticos, polícia, clero e, eventualmente, cidadãos de bem não param de fornecer material. Apesar das páginas de jornais e revistas serem déjà vu numerado, sempre conseguem surpreender, seja pela idade do namoradinho de algum bispo, cada vez mais tenra, seja por onde os corruptos de Brasília escondem seu espólio. Depois da cueca, não me espantará se descobrirem um deputado com dinheiro no mesmo lugar onde o Batman costuma guardar o escudo.

Mesmo assim, sempre há um ângulo novo para se analisar qualquer assunto, e com este não é diferente. Eu, por exemplo, recentemente encarei a questão da ética por um outro ponto de vista: o do buraco de um pene, um desses macarrõezinhos, sabe? (Se você pensou outra coisa, aposto que está pensando em passar cola na cadeira da tia.) Ah, sim, o pene é um canudinho, não um fio. E por que o “fio” no título? Ah, até parece que eu ia perder essa possibilidade de trocadilho.

Outro dia, não tendo o que comer em casa, passei a mão num pacote de macarrão de preparo rápido – não miojo, era um mais sofisticado, “pasta aos quatro queijos” – da casa de uns amigos, deixando um deles sem jantar. Quando dei por conta disso, voltei e depositei no lugar o dinheiro que eu imaginava ser suficiente para comprar outro daquele. (Depois, soube que deveria ter deixado dois mangos a mais.) Historinha prosaica, prima do episódio do Yakult, sobre o qual já escrevi, mas cujo desfecho foi bem diferente. O Vini, dono do macarrão, apesar de ter passado todo o caminho até sua casa fantasiando sobre o instantâneo, achou graça ao encontrar as moedas e saber da história (sem ressentimentos, né, Vini?). Já a assessora de imprensa, proprietária do Yakult que peguei na geladeira coletiva, quase mobilizou os outros funcionários da minha antiga agência a fim de me linchar – e olha que ela só soube que tinha sido eu o autor do empréstimo porque deixei um bilhete avisando.

O “caso Yakult” é o clássica situação “sujeito ligeiramente atrapalhado que tenta agir do jeito certo e se fode”, mas não leva o meu troféu nesse quesito. Ah, a concorrência é grande. Hoje mesmo, depois de já ter começado a escrever este texto, fui almoçar com um amigo e deixei o carro na rua, numa “área de estacionamento rotativo e pago”. Corri à lotérica mais próxima e comprei dois cupons da Zona Azul. O tempo passado lá foi o suficiente para um fiscal de trânsito justificar a cor predominante de seu uniforme: quando cheguei, a merda já estava feita. Tentei me explicar, disse que tinha parado havia cinco minutos, só o tempo de comprar os cupons, mas não teve jeito. O marronzinho continuou preenchendo a multa com a maior desfaçatez, como quem está acostumado a ouvir desculpas furadas diariamente – categoria, aliás, na qual a minha não se classificava. Disse para ele perguntar aos pedreiros sentados na calçada, pelos quais passei ao chegar, que eles confirmariam minha história. Ele: “Olha, sem querer colocar o senhor contra eles, sabe o que eles disseram quando cheguei ao seu carro? ‘Mete a caneta mesmo’”. Mesmo “sem querer colocar o senhor contra eles” foi bem isso o que fez o fiscal. Olhei para aquele bando de sujeitos que poderiam tranquilamente me dar uma surra e disse “obrigado por avisar que eu tinha ido comprar a porra da Zona Azul”, momentaneamente esquecido que eles poderiam tranquilamente me dar uma surra. Por sorte, o “sujeito ligeiramente atrapalhado que tenta agir do jeito” não se fodeu ainda mais.

Ainda há pouco, só para confirmar o que venho dizendo sobre a ética ser o assunto da vez e também sobre a originalidade das pautas, foi noticiado mais um caso de “cara pobre que acha uma quantidade considerável de dinheiro e entrega para o dono sem tocar num centavo”. Desta vez, foi um caminhoneiro que encontrou uma pochete com dezessete mil reais (me pergunto como coube tanto dinheiro numa pochete) num posto de gasolina e devolveu para o dono. Quando eu já imaginava o que alguém fazia com dezessete milhas em dinheiro vivo, o parágrafo abaixo informou se tratar de um fazendeiro que ia comprar gado. Será que esse pessoal que negocia nelores, zebus e afins nunca ouviu falar de cheque ou cartão de crédito?

Voltando ao camarada que achou a bufunfa, acho muito louvável o gesto, mas não sei se o faria. Do jeito que tenho sorte, perigava eu tomar uma multa quando fosse à casa do fazendeiro entregar a grana. E duvido que ele se ofereceria para pagá-la. Ao contrário de mim, do Vini e desse caminheiro, no geral, as pessoas não são legais.