terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Será?

Ele se perguntou. Repetia a pergunta, em silêncio, para si mesmo, dia após dia. A possibilidade lhe remoía o estômago, sintetizada na única palavra. Somada às meras duas sílabas, a interrogação tinha o poder de tirar-lhe o sossego e o sono.
     - Será?
Quantos não estariam na mesma situação que ele? Andando pelas ruas, via os cenhos franzidos dos semblantes em dúvida. Havia uma epidemia. Como um vírus, invisível mesmo a microscópio, o Será? tinha o poder destruidor de um Ebola. Mas, ao contrário dele, o Será? não tinha pressa. Matava aos poucos, alimentando-se da incerteza do contaminado.
     - Será?
     Era assim que ele sentia a vida abandonar seu corpo, sutilmente, a cada vez que olhava o aparelho. Estava ao alcance de sua mão. Seria tão fácil. Tão fácil. 
     - Será?
     Apertasse um botão, tudo se resolveria. Nada mais de tortura, entranhas e lençóis revirados. Doeria no momento, mas uma só vez. Outros também seriam atingidos, mas, como ele, se veriam livres do sofrimento da hipótese não comprovada.
     - Será?
Se a ciência tratasse o Será? como o vírus a que se assemelhava e se ocupasse da busca para a sua cura, empreenderia tempo e recursos desnecessários. O Será? se resolve de forma prosaica, como ele comprovaria àquela noite, com umas cervejas a mais.
Pegou, enfim, o aparelho. Apertou o botão. Fechou os olhos aguardando a explosão, o fim. Tudo se fez escuro. Quando seus olhos se abriram, notou que havia apenas adormecido. A antiga bomba, preparada há tanto tempo, já não funcionava mais.
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quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Ponto final

"Con Air". Aquele clássico subestimado, com o Nicolas Cage no papel principal, um presidiário bonzinho voando rumo à liberdade, que tem o azar de ir no mesmo avião que a maior escória prisional, em transferência para outra cadeia. Liderados por John Malkovitch, os presos do mal sequestram o avião, e cabe a Cage, no auge da canastrice, debelar o motim. Épico. Sublime. Eu já tinha visto umas mil vezes, o Rodrigo também.

Mas, suficientemente informado sobre os quebra-paus que sitiavam Londres naquele fim de semana e já tendo terminado de ler o livro que eu lhe emprestara ("O Grande Gatsby"), meu amigo havia resolvido deixar naquele canal mesmo. A violência da ficção ajudaria, inclusive, a esquecer a real por uns momentos. A mim, para ser franco, pouco me importava o que estivesse passando na TV. Naquela noite de sábado, o notebook no colo, eu estava concentrado em escrever, e aquele quarto de hotel na capital inglesa se convertera em meu escritório – pelo menos, a minha cama. A véspera do show do Morrissey que veríamos em Londres ficaria marcada para mim como o dia em que concluí meu primeiro livro, que leva o nome do cantor: "Quem Vai Ficar Com Morrissey?"

Resgato essa passagem para comprovar algo que talvez nem precisasse: diante de um evento marcante, tendemos a lembrar de todas as circunstâncias em torno do tal acontecimento. Você, provavelmente, tem bem vivas as lembranças do seu primeiro beijo. O mesmo para o seu primeiro dia na escola ou quando seu filho nasceu. A noite em que sua mulher pediu o divórcio ou a manhã em que sua mãe morreu também sempre serão recordadas com desagradável riqueza de detalhes. O inesquecível tem o condão de sublinhar tudo com tinta fluorescente.

Ontem, por volta deste mesmo horário, também estava escrevendo. Como já se tornou um hábito cotidiano, eu o fazia no celular, com um dedo só. Adotei o costume para continuar produzindo apesar da falta de tempo. Se esperasse as condições ideais – o computador confortavelmente repousado sobre a mesa, na solidão e no silêncio da minha casa – não teria escrito um terço do que venho escrevendo. Desde que aderi à prática pouco romântica de escrever no celular – que hoje se chama smartphone, tem uma tela grande e ótimos editores de texto – meu escritório é em qualquer lugar. Até na praia.

Mas, ontem, eu não estava de frente ao mar, nem de longe. Nem o peixe que eu comia, o Saint Peter, era de água salgada. Tendo ido almoçar tarde, consegui uma boa mesa no andar de cima de um restaurante self-service já quase vazio. Não estava em casa, não estava diante do computador, fazia algum barulho, mas não chegava a incomodar. Entre garfadas e olhadelas para a TV que passava o Globo Esporte, eu usava o dedão direito para transformar em frases minhas ideias para o desfecho do meu segundo romance. A garçonete já tinha trazido a mousse de limão, sobremesa a que o buffet dava direito, quando ele, por fim, deu as caras: o ponto final, o último. A primeira versão de “Olho Roxo” estava concluída. Precisaria de uns tapas, de um trabalho de edição, mas estava pronta.

Desci as escadas e, ao ver a garçonete que me atendeu, agradeci, sorridente. Arrumando os cabelos em frente ao espelho, ela nem se deu ao trabalho de olhar para o lado. Podia colocar a desculpa do “de nada” sem vontade, quase inaudível, nos grampos de cabelo mordidos entre os dentes. Não me incomodei. Depois de pagar no caixa, fui andando até o trabalho, passando pelas ruas tomadas por obras e carros que desrespeitam pedestres. Também não me incomodaram. Nada me incomodaria. Eu tinha acabado de escrever o meu livro.  

A situação em que finalizei meu segundo romance não tem nenhum glamour. Ao contrário do episódio da conclusão de “Quem Vai Ficar Com Morrissey?”, não tem um contexto histórico ou geográfico interessante, não rende uma boa história para contar em eventuais entrevistas. Mas, por isso mesmo, acho que tem bastante a ver com meu segundo romance. Como nas ruas da Vila Olímpia, nele também há bem pouca beleza.

sábado, 4 de fevereiro de 2017

As piscadelas da Justine


O Top Of The Pops é uma espécie de versão inglesa do Globo de Ouro, aquele que eu e você, amigo quarentão, assistíamos quando crianças. Como no nosso, no Globo de Ouro deles, jovens dançavam “loucamente” ao som (em playback dublado) dos sucessos do momento, em um cenário emulando uma discoteca. Em tempos sem MTV, muito menos internet, a atração foi importantíssima para a formação musical de uma infinidade de britânicos, a partir dos anos 1960.
Minha geração foi a última a assistir ao Globo de Ouro. Lançado em 1972, o programa teve suas atividades encerradas em 1990. Já o TOTP teria uma sobrevida bem mais longa, até 2006. Graças a esses 16 anos a mais, a atração pôde ser palco de muita coisa bacana surgida no período. Para efeito do texto, vamos ficar em só uma delas: o Britpop. Bandas do gênero/movimento que sacudiu (“sacudiu”, Leandro?) a música nos anos 1990 protagonizaram momentos memoráveis no programa. Entre tantos, destaco os irmãos Gallagher trocando de lugar enquanto tocavam “Roll With It”, fazendo pouco da mímica que acompanhava o playback.
Mas, mais do que dessa aparição do Oasis, gosto mesmo de uma de outra banda da mesma cena, mas de expressão bem menor. Capitaneado (“capitaneado”, Leandro?) por Justine Frischmann, o Elastica era mais conhecido pelo single “Connection” e pelo envolvimento da vocalista com colegas famosos. Nessa apresentação de 1995, a música que tocam (de verdade, veja só!) nem é seu maior hit – é a menos badalada “Waking Up”. À época, o triângulo vivido com Brett Anderson (Suede) e Damon Albarn já havia se desfeito, e o último, que começara como amante, assumira o posto de titular. Namorado gente boa, o líder do Blur fez uma participação especial como “tecladista convidado”, não muito bem disfarçado por trás das lentes grossas dos óculos nerd.
Se fosse só por esse “easter egg”, já seria legal. Mas o que torna esse vídeo do Elastica épico, fabuloso, incrível, histórico (e todos os adjetivos grandiosos em que você conseguir pensar) é outra coisa, muito mais singela: as piscadelas da Justine. Sempre que a câmera fecha no rosto da vocalista, ela sorri sacana, franze o nariz e aperta os olhos, leve e graciosamente.Claro que não vi essa maravilha na época. Nem se sonhava com Youtube em 1995. Porém, desde que descobri o vídeo, há alguns anos, quando procurava por coisas da banda na internet, já vi e revi incontáveis vezes. Sempre que preciso me animar, aumento seu número de visualizações.
Esses dias, li rumores sobre uma provável reunião da banda, separada desde 2001. Pode ser que não dê em nada, ou que, se rolar, seja decepcionante. Em todo caso, já vai ter servido para me lembrar de rever as piscadelas da Justine. Não é pouca coisa.
(Texto originalmente publicado no site Bem Rock)

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

A morte e como reagimos a ela


Você já perdeu ou mesmo já teve uma pessoa próxima muito doente? Julgar que alguém, quem quer que seja, mereça sentir essa dor, para mim, é inconcebível. Fernando Henrique e Lula têm, os dois, essa noção. O petista foi prestar condolências ao tucano quando Dona Ruth faleceu e, agora, FHC retribui a solidariedade. Sim, os dois são “farinha do mesmo saco”, mas, neste caso, no melhor dos sentidos. Alguém já disse: “Só a morte nos faz iguais”. O modo como reagimos a ela, por outro lado, pode nos fazer bem diferentes.