segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Carta a uma jovem escritora

Laura, 

Há poucos dias, você me escreveu. Mandou um link com um texto escrito por você, o que considerava o seu melhor. Seus amigos, contou, sempre a elogiavam, mas você mesma tinha dúvidas sobre a qualidade da sua produção. Sendo minha leitora — e considerando minha opinião mais balizada e isenta, imagino —, pediu que o lesse e avaliasse, para, a partir daí, decidir se investiria mais tempo e esforço na incipiente carreira de escritora.

Antes do meu parecer, minhas desculpas. Por demorar a responder — em tempos ansiosos, alguns dias são a eternidade — e por, ao fazê-lo, escrever publicamente. Fosse só para você que escrevo, o primeiro parágrafo seria desnecessário, claro. Acontece que vi nesta resposta a oportunidade de falar também com outras pessoas que tenham os mesmos questionamentos e que, eventualmente, também considerem meu conselho. Quero aproveitar para discorrer um pouco mais sobre a validade de se escrever atualmente. Talvez você tenha lido, abordei o tema outro dia — por coincidência, o mesmo em que recebi sua mensagem.

Laura, que tem o nome de uma de minhas avós e da minha única sobrinha, te direi o mesmo que diria a esta ultima. Ao contrário de você, sua xará ainda não leu meu livro — nem nenhum outro. Com dois anos e meio, Laurinha não escreve nem o próprio nome, mas se, quando começar a juntar letras, interessar-se por seguir o caminho que o tio teima em trilhar, as próximas linhas são o que lhe falaria. (Isso se ela me mostrasse um texto exatamente como o seu e me pergunta-se "e aí, tio?”.)

Olha, Laura, sendo bem sincero, seu texto não é tão bom quanto os seus amigos dizem. Nem tão ruim quanto você, insegura como muitos iniciantes já não sabem ser, acredita. A insegurança, tão criticada pelos manuais de autoajuda, é essencial, e não apenas para os que começam. É o que nos leva a escrever e reescrever diversas vezes a mesma frase, a procurar outros olhares para nos certificar de que o nosso, viciado, não esteja míope. Mantendo o paralelo ótico, se o diagnóstico de um oftalmologista não é suficiente para cegar alguém, pareceres literários podem causar escritores natimortos. Isso, em casos como o seu. Para quem já publicou algo, críticas destruidoras são capazes de impedir a continuidade da obra — o que, em se tratando de muitos, talvez seja um favor a todos.

Tenho noção deste poder, que você me conferiu ao me consultar. Mas não é só por isso que minhas palavras para você não serão agressivas nem castradoras. Mesmo não sendo tão nova quanto minha sobrinha, sei que é mais nova do que eu (adolescente, talvez?). Então o que escreverei é o que gostaria que alguém tivesse me dito quando tinha sua idade, há uns vinte anos. Naquela época, eu já escrevia, mas não tinha acesso fácil à internet muito menos blog. Melhor assim. Embora menos do que hoje, já havia uma quantidade suficientemente grande de péssimos textos disponíveis. Se às vezes releio textos antigos postados neste mesmo blog e quase me mato de vergonha, tivesse postado aqueles escritos nos anos 1990, tenho certeza que não ficaria só no quase. 

Acredite, Laura: comparado ao que escrevia na época, o texto que você me mandou parece tirado da obra do Machado de Assis. Se hoje escrevo um pouco melhor, devo isso ao primeiro — e principal — conselho que te darei. Leia, leia muito. Não existe jeito melhor de aprender a escrever. É um lugar-comum, eu sei, mas estar atento a ele ajuda a evitar muitos outros. Não basta, portanto, ler qualquer coisa, “de tudo”, como muitos recomendam. Ler sem critério é como entrar numa área radiativa sem a proteção adequada: podemos nos contaminar com personagens, enredos, diálogos e estilos pouco inspirados. E ainda que se leiam os best-sellers da subliteratura com viés crítico — o que também pode ser útil para identificar características indesejadas e não repetí-las —, o tempo perdido com eles não compensa. Se um filme porcaria consome duas horas, seu equivalente literário pode roubar duas semanas. Hoje, você tem muito tempo pela frente, mas vai chegar um momento em que as horas gastas com livros indignos vão fazer falta.

Literatura “didática” é aquela que incomoda. Ou porque nos tira da zona de conforto intelectual, exigindo alguma espécie de esforço para acompanhá-la; ou porque, identificados com trama e personagens, nos faz sofrer e nos emocionar com eles; ou ainda, porque, de tão bem escrita, nos faz ter inveja do desgraçado do autor. A literatura ensina quando nos leva adiante, quando nos faz buscar outros livros e referências; quando nos apresenta a outras realidades; quando nos faz pensar sobre temas em que nunca havíamos pensado, ou ver coisas comuns por prismas nunca antes cogitados. 

Voltando aos “desgraçados dos autores”, são justamente estes os professores a quem devemos recorrer. São deles os textos que nos dão vontade de escrever, cuja leitura nos faz imaginar nunca sermos capazes de escrever tão bem. E, de fato, não somos. Escritores como Dostoiévski  ou Camus são inalcançáveis como a utopia, de que fala Eduardo Galeano. Uma nos faz continuar andando, os outros nos mantém escrevendo, nos aperfeiçoando — num exercício sem fim, mas de resultados. Perseguir a escrita do Charles Dickens, por exemplo, é o que resultou em dois dos meus escritores preferidos, John Irving e Jonathan Franzen. 

Falar desses dois, aliás, me traz ao meu último texto. Nele, questionei a validade de se escrever hoje em dia, mas de forma absolutamente retórica. Mesmo sendo verdade que o melhor da literatura esteja no passado, isso não invalida os esforços de grandes escritores de nosso tempo, como estes citados. Precisamos de “O Mundo Segundo Garp” e “Liberdade”,  como precisamos de “Grandes Esperanças”. Enquadrando-se na categoria de grande livros “didáticos” a que me referi, a leitura dos primeiros nos levam a este último, que os inspirou.  

Também não é apenas dos grandes escritores que vive a literatura. (Pode parecer que advogo em causa própria, mas juro que não é o caso. Não inteiramente, pelo menos.) Todos que sintam vontade — necessidade talvez fosse a palavra mais adequada —de escrever devem fazê-lo, seja com o objetivo de ver o próprio nome em prateleiras de livrarias, ou apenas para postar num blog para poucos. O que você escreve sem dúvida fará diferença para alguém; no mínimo, para você mesmo. Escrever é uma maneira de entrarmos em contato com nós mesmos, nos conhecermos e nos aperfeiçoarmos, na mesma medida em que aperfeiçoamos nossos textos. 

Então, Laura, continue a escrever. Quando disse que seu texto não é sensacional, não é que não tenha gostado. Vi nele sensibilidade e talento, potencial a ser desenvolvido. Nenhum escritor está pronto com a sua idade. Como já disse, há vinte anos, eu estava muito menos do que você. E se naquela época, ao ler as maravilhas que eu escrevia, alguém tivesse me dito para desistir, talvez você não tivesse lido “Quem Vai Ficar Com Morrissey?”, e eu não estaria escrevendo este texto. 

Um beijo,


Leandro

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Dúvida

Não importa quantos livros você já tenha lido: o número é bem menor do que o daqueles que você ainda não leu. Falo por mim mesmo. Embora venha lendo muito ao longo de mais de trinta anos, tenho enormes falhas no meu currículo literário. “Guerra & Paz”? Não li. “Irmãos Karamazov”? Também não. E não pense que minhas ausências se limitam aos grandes autores russos — citei esses dois porque foram os que primeiro me vieram à cabeça. Fato é que a vida é curta demais para se ler tudo o que se precisa ou que se quer; inclusive para quem dedica a isso todos os seus dias, abrindo mão de coisas de menor importância, como o convívio social, a prática de atividades a céu aberto ou mesmo de sexo.

O que nos leva à pergunta: com tantos livros indispensáveis ainda não lidos, por que ainda se escrevem outros? Todos os assuntos relevantes já foram abordados de todos os pontos de vista possíveis, nos mais diferentes gêneros e estilos. Apreciadores da alta literatura se verão tão bem contemplados quanto os que lêem só para passar o tempo, e sem precisarem abrir nenhuma publicação com menos de trinta anos — para ficar mais ou menos no período que compreende minha vida de leitor. Então, repito, por que alguém escreve um livro hoje em dia? Por que eu tinha que ser um desses idiotas?

A dúvida me acompanhou a cada letra digitada no processo de escrita do meu primeiro livro. Me fez jogar fora sua primeira versão — com mais de sessenta páginas —, mas não foi capaz de me impedir de recomeçar do zero e ir até o fim. Me fez ler o produto final e torcer nariz para ele, me fez dar alguns tapas no texto, em busca de melhorá-lo, mas não me impediu de procurar uma editora. Quando, por fim, encontrei interessados em levar “Quem Vai Ficar Com Morrissey?” às livrarias, a dúvida, mais uma vez, me fez hesitar antes de concordar com a publicação. Porém falhou em impedir minha mão trêmula de rabiscar meu nome no contrato.

Depois de publicado, “Quem Vai Ficar Com Morrissey?” ainda não era à prova da minha dúvida.  Pensava nas pessoas a lê-lo achando-o uma merda, e me preparava para o massacre da crítica — ao menos da pequena parte dela que se interessasse pelo livro. A atenção despertada pela minha estreia literária, como esperado, não foi tanta. As resenhas, todavia, eram em sua maioria elogiosas.  Mais animadoras ainda que elas foram as mensagens dos leitores, falando sobre como gostaram e se identificaram com o livro, como foi importante para eles. Esses contatos fizeram a dúvida dar um tempo. Todos aqueles livros muito mais importantes continuavam não lidos, mas o meu, pequeno e despretensioso, talvez não fosse assim, tão inútil.

Em seguida, a dúvida se transformou em certeza. Não de que o meu livro seja imprescindível, ao contrário. A certeza é de que “Quem Vai Ficar Com Morrissey?” tem falhas, de que não é o melhor que eu posso escrever. Até em função disso, evito relê-lo. Outra certeza é de que, bom ou ruim, sua primeira edição já está praticamente esgotada; quase duas mil pessoas já o leram, e não tenho mais o que fazer com relação a ele. Meu único poder é sobre minha obra futura. Escrevendo meu segundo livro, aliás, novamente a dúvida: para que fazê-lo? Estaria eu querendo me desculpar por ter escrito um livro duvidoso? E se o novo fosse igualmente questionável? Na dúvida, vou escrevendo. Ou ia. 

Hoje, como ocasionalmente, fiz uma busca por resenhas de “Quem Vai Ficar Com Morrissey?” no Google. Sem muita esperança de encontrar algo, me surpreendi ao ver uma crítica postada recentemente, em julho, num blog literário. Seu autor mostrou estar longe de ser meu fã. Num texto um pouco menor do que este, ressaltou a banalidade da minha história, a pobreza do meu estilo, a falta de personalidade do meu protagonista, a heresia, enfim, de ter usado o santo nome de Morrissey em vão. Alegando já ter passado da página 200, o sujeito não julgou necessário terminar a leitura do livro para condená-lo. 

Disse que me preparei para as críticas, mas isso foi em outro momento. Tanto tempo após o lançamento do livro, a guarda já baixa, o blogueiro me atingiu em cheio. Principalmente porque muitas das coisas ditas por ele, com as quais concordo, reativaram todos os meus questionamentos. Prova disso é que, ao invés de avançar no livro que atualmente escrevo, dedico este tempo a discorrer sobre a validade de prosseguir. 

Mas já adianto: a interrupção é só por hoje. Em alguns meses, espero, lançarei mais um livro absolutamente dispensável. Por mais que hoje domine melhor a estrutura narrativa e esteja atento para não repetir as falhas que identifico em “Quem Vai Ficar Com Morrissey?”, não posso garantir que este meu segundo livro será irrepreensível. Se posso assegurar algo, é que o responsável por essa resenha dificilmente vai gostar. Mais provável é que nem leia. 

E por que, mesmo assim, escrevo? Porque não tenho escolha. Não escrevo para mudar a história da literatura. Não escrevo para agradar os leitores. Não escrevo para calar a boca dos críticos. Não escrevo em busca de fama, nem de sucesso. Escrevo porque as palavras dentro de mim exigem, e, diante do poder delas, as dúvidas são muito pequenas.