terça-feira, 29 de setembro de 2009

Rapte-me, Camaleoa

A edição de 12 de setembro de 2002 representou um marco para a Folha de Macondópolis e para a cidade de mesmo nome. Pela primeira vez, as páginas do periódico traziam cores. A defasagem em relação às publicações dos grandes centros não reduziu a espécie causada entre a sociedade local, presente em peso na festa que celebrou o feito. Todo mundo que era alguém estava lá para prestigiar Vidigal Peixoto, fundador, editor e mantenedor do semanário. E para comer quantos canapés quanto possíveis, evidentemente.

Os salões do Rotary Club recendiam a canudos de carne, coxinhas e empadas de algo que lembrava vagamente palmito. Seguiam o aroma e os três garçons, que se desdobravam para servir dezenas, os membros ilustres da sociedade local, cuja preparação para o evento parecia ter incluído, além do cabeleireiro e do alfaiate, um jejum prolongado. O ímpeto com que atacavam as bandejas só diminuiu quando Vidigal Peixoto pediu a palavra. De primeiro, cessaram a comilança pelo mínimo de educação requerido, depois, por terem o apetite tirado pelo anúncio do Cidadão Kane sertanejo. Que ele falaria da impressão em cores, todos já sabiam. O que o povo não sabia, não imaginava, sequer suspeitava era o que as novas rotativas imprimiriam, e foi disso que também tratou o discurso de Vidigal Peixoto.

“Cidadãos de Macondópolis. É com um orgulho que me inunda o peito e transborda na forma de palavras incapazes de expressá-lo que eu anuncio a chegada de impressoras coloridas ao parque gráfico da Folha de Macondópolis. A partir da próxima edição, o seu periódico exalará modernidade, por meio das cores que retratarão o mundo com a mesma fidelidade que o jornalismo imparcial e ético praticado por nossa equipe. Quis o humor dos deuses da imprensa que, com a primeira edição em cores, a Folha trouxesse um furo de reportagem tão adequado. Senhores e senhoras, eu lhes apresento a mulher-camaleão.”

Foi quando abriram-se cortinas por detrás do Assis Chateaubriand do cangaço. Revelou-se uma acanhada criatura de seu metro e meio, ampliado em diversas vezes na imagem projetada às suas costas, a capa da nova edição do tablóide. Sob a manchete “Mulher-Camaleão é de Macondópolis”, via-se um close dela no exato instante em que transitava entre cores: verde passando para o amarelo, numa demonstração insuspeita de patriotismo. Na foto e no palco, a mesma expressão. Confusão e timidez e um olhar perdido em dois, nos olhos de órbitas independentes à imagem do réptil cujos poderes ela emprestava. Suas mãos repousavam uma sobre a outra, fazendo lembrar um louva-deus. Louvar a Deus, aliás, é o que faziam as senhoras de bem diante do ser mutante que lhes era apresentado. Farejando a hostilidade, a camaleoa se fez invisível aos olhares bestificados. O único indício de sua ainda presença era o braço que Vidigal lhe passava ao redor.

“Comprem a Folha de amanhã!” Antes que Vidigal Peixoto terminasse a frase, fecharam-se as cortinas, encobrindo o criador do jornal e a criatura, que se foram sem responder a nenhuma das múltiplas perguntas que, junto ao odor propalado pelos quitutes de quinta, pairavam no ar.

Marqueteiro dos melhores, Vidigal Peixoto promoveu, com sua saída enigmática, a maior vendagem já registrada pelo jornal. Todos queriam saber da história daquela pessoa-bicho. De onde viera já sabiam, mas como tinha permanecido tanto tempo despercebida numa cidade tão pequena? Com base nas suas propriedades camaleônicas, seria fácil deduzir, mas o povo de Macondópolis não queria deduzir nada. Vidigal Peixoto agradecia. Semanalmente, as tiragens se esgotavam, desvendando aos poucos os mistérios que envolviam a mulher-camaleão e, depois, inventando mais alguns. Títulos como Dailly Mirror e Notícias Populares, ao tomar conhecimento da história, compraram-na e a reproduziram. O Discovery Channel e o Programa do Ratinho mandaram equipes de reportagem à cidade, e logo a história ultrapassou suas fronteiras. Feliz como o dono da Folha de Macondópolis, ficou Caetano Veloso: sua “Rapte-me, Camaleoa” era a música mais pedida nas rádios do Brasil afora. Mas Caetano jamais daria o braço a torcer. Avesso ao jornalismo marrom, dizia não ter nada a declarar e mantinha o ar blasé quando questionado a respeito.

Avessa à badalação, a tímida camaleoa tentava esquivar-se da celebridade fazendo uso de seus talentos, mas nem eles eram o bastante para lhe restituir o sossego de antes da fama. Entregava-a a língua, que não cabia na boca. Não que falasse demais, absolutamente. A coisa era bem mais literal. Além da aptidão para a camuflagem, tinha em comum com os répteis a extensão da língua, e essa se projetava sempre que diante de uma delícia qualquer, fosse um sorvete ou uma mosca. Quando fazia isso em lugares públicos, era perseguida por fãs, por curiosos e até pelo Professor Xavier e pelo Magneto, cada um querendo recrutá-la para o seu lado da causa mutante.

Não demorou para cansar-se de tudo aquilo. Um dia, sem aviso, nunca mais foi vista, nem por Vidigal Peixoto nem por ninguém. Foi quando as coisas começaram a feder para Vidigal Peixoto. Ainda tinha compromissos e contratos com a grande mídia e, sem a mulher-camaleão, não poderia honrá-los. Com o sumiço, a prima o tinha condenado ao fracasso. Foi quando tomou a decisão. Daria ao mundo seu segredo mais bem guardado. Não ficariam indiferentes à revelação de seu longo e felpudo rabo.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Serena? Estamos falando da mesma pessoa?


Durante a seminifinal do Aberto do EUA, Serena Williams ameaçou enfiar a bola na garganta de uma juíza que marcou uma pisada dela na linha. Além de ter perdido o jogo, ela foi multada em U$ 10 mil pelo destempero.

(Página Folha Corrida, Folha de S. Paulo, 20/09/09)



De um segundo para outro, o sol sumiu. Sem ter visto nada nos jornais sobre um eclipse, estranhei. A impressa certamente cobriria um evento tão incomum e importante. Ainda mais em Nova York, sobretudo durante o Aberto dos EUA – evento, se não tão incomum, tão importante quanto. Precisei de mais um segundo para saber que estava no único ponto do planeta de onde o fenômeno podia ser assistido, e que nem as maiores autoridades astronômicas poderiam prevê-lo.

Bloqueava o sol não a lua, mas um astro de primeira grandeza. Quase três metros e aproximadamente 280 quilos, Serena Williams, veio em minha direção. Tomada pelo pânico e pela surpresa, não pude divisar de pronto as feições da multicampeã. Com a fúria de um cometa de filme-catástrofe, a irmã de Venus veio declarar o meu apocalipse pessoal. Ela se aproximava e, junto, o meu fim.

Como um lúcifer, vociferava. Cuspindo labaredas, chamuscavam meus cabelos suas reclamações sobre um suposto erro. Mas, enquanto ela falava, as palavras que eu ouvia eram outras. As primeiras de meus filhos, o sim do meu marido. (Ao presenciar o fim iminente, todos contemplam o filme de suas vidas.) Entre as gentilezas da jogadora, soube depois, estava a oferta de uma bola pela minha goela abaixo. Só não aceitei porque, como disse, não ouvi. Não haveria nada com que eu não concordasse, posto daquele modo tão amável.

Passado o apuro, fui para casa. Lá, não tinha ideia do que fazer para o jantar. Enquanto pensava, liguei a TV. No noticiário, os detalhes e as palavras que tinham me escapado. Aí, Serena me ajudou a decidir o cardápio da noite.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

O toque do Nokia

Escorpiões e aranhas têm capacidade de incomodar inversamente proporcional às suas dimensões. Meu celular, mesmo sem ser letal como os seres peçonhentos, também. O toque baixo do seu despertador remete à ação do aracnídeos na sutileza, mas difere no efeito. Ao lado da minha cabeça, o Nokia me coloca de pé. À mesma distância, tais bichos escrotos teriam me posto na terra dos pés juntos.

Sorrio, agradecido por ser apenas um telefone. Ponho fim à minha inércia, feliz por ainda poder fazê-lo. Afasto ainda mais as cobertas, já postas de lado no decorrer da noite quente, que as fez desnecessárias. Depois do que desceu a cama, o próximo passo seria lavar o rosto e assentar o desgrenho dos cabelos. Os outros seriam dados na esteira da academia, naquele caminhar sem rumo de todos os dias tão semelhante à vida.

Deixo de imitar a cobaia de laboratório e me ponho à musculação. “Até que não é tão ruim assim”. Os resmungos mal contidos que seguem as repetições dos exercícios são o meu detector de mentiras pessoal. “Endireita o corpo, estica o braço até o final”. O instrutor instrui e eu, encabulado, me corrijo. Não por muito. Mal ele dá as costas, eu volto a trapacear. Novamente, penso que a academia e a vida coincidem. São ambas chatas, repetitivas e sem sentido, mas é melhor freqüentar.

O banho limpa o legado dos exercícios, dando lugar a outro gênero de suor e sofrimento, entregues na mesa com os pedidos de campanha. Entre as torturas, no entanto, uma brecha para a felicidade. O sorriso da moça da lanchonete denuncia minha assiduidade. O pedido, separado antes de feito, também. De tamanho próximo ao de celulares e bichos peçonhentos, os pães de queijo redimem os diminutos. Redimem também a vida. Uma existência com gosto de polvilho não pode ser de todo má.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

A morte tem dessas coisas



No cinema, eu lembrava o que a crítica dissera sobre o filme. Estava sozinho como a única estrela concedida na avaliação, responsável pela recusa geral aos meus convites. “Dizem que é um dos piores filmes já feitos, e mesmo assim você quer ver?” Amigos e namorada, meras caixas de ressonância dessa grande fábrica de papel de enrolar peixe. “Boa sorte”. Sim, sorte minha e azar o deles.

Aliás, azar de todos. A certeza de que presenciaria um clássico era minha única companhia naquela sessão. Ela e o suave cantarolar do projetor, perfeitamente audível na sala vazia. Logo, ao agradável canto, juntaram-se notas mais estridentes, vindas das gargantas de sopranos de ocasião, jovens indefesas, vitimadas pela rebeldia de quem não aceita a suposta ordem natural da vida. Mortos, recusavam-se a morrer e insistiam em se multiplicar, com indóceis e incessantes mordidas. Aqueles insurgentes tinham a minha simpatia. Desde pequeno, militava no seu partido, convencido pelo manifesto de Romero e Argento, muito mais sedutor para mim do que o de Marx e Engels.

Como as comunistas, essas fileiras também eram vermelhas, cor onipresente nas produções do gênero. O catchup, por mais evidente, para mim sempre era sangue. Filme de zumbi, eu sempre levei a sério. E os amigos – ah, esse gênero de desertores –-,viam nisso brecha para a pilheria. Incapazes de entender minha paixão pelo alimento dos vermes e dos insetos, riam dela. É só o que sabem fazer essas hienas. Era até melhor que não estivessem ali, com seus comentários dispensáveis. O coral de berros era tudo o que eu precisava ouvir. Em reverência, permaneci em completo silêncio até o “the end”.

Então, ainda em reverência, levantei-me e aplaudi. Foi quando ouvi um balbuciar, vindo da fileira de atrás. “Obllliga...” Mesmo com a omissão da última sílaba, presumi um agradecimento. Nó abaixo do queixo, virei para confirmar minhas expectativas. Um genuíno defunto andante? Um sujeito fantasiado? Enfartado, meu coração parou. Para ele, não importava. Como eu, sempre levou a sério os filmes de zumbi.