sexta-feira, 29 de março de 2013

Impressões recém-chegadas do Lollapalooza

Não ia ao Lollapalooza, mas acabei indo. Muita lama, mas, mais ainda, muitos desavisados. O que menos se vê em festivais brasileiros, aliás, é gente que gosta de música. São eventos em que coxinhas de ambos os sexos desfilam com olhares entediados, mal vendo a hora daquilo acabar. Mas sem perder a oportunidade de registrar no celular sua presença, em fotos, vídeos e posts, em que fingem estar curtindo alucinadamente. 

Essa moçada, em sua maioria, foi ver o Killers, a que assisti pela 4ª e última vez. Desde a primeira, há quase 6 anos, na Marina da Glória (Rio de Janeiro), a banda cresceu muito. Do show quase intimista de então, os caras cumpriram o objetivo anunciado pela pirotecnia e pelos “oh, oh, oh” incessantes: tá bom, Brandon Flowers, agora você tem uma banda de estádio. Satisfeito? Espero que sim, porque a música, ah, a música. Está tudo ali, mas falta algo. Falta alma, falta espontaneidade. Sobra emoção ensaiada, sobra empolgação forçada. Mas a música... 

Dos outros shows que vi, o do Temper Trap me deu uma certa pena. A banda do vocalista filipino genérico é interessante, mas intimista demais para um palco daquele porte. O Flaming Lips, ah, que preguiça. Mais happening do que música. Os intelectuais e artistas plásticos presentes devem ter adorado, mas eu achei um saco. Bom mesmo foi o Cake. Confirmando a fama de uma das bandas mais gente boa de que se tem notícia, os americanos conseguiram desfazer a impressão ruim que tinham deixado após a apresentação que vi no Hotel Unique – cujo espaço, verdade seja dita, também não os favoreceu. Não pouparam hits, nem simpatia. 

A simpatia, por sinal, talvez pudessem ter poupado um pouco. Num show de pouco mais de uma hora, não caberia tanta interação com o público, promovida pelo carismático vocalista. Mas coube, já que eles – ô banda gente fina – estenderam o espetáculo por mais uns 20 minutos, apesar do desrespeito da organização, que colocou o som da tenda de música eletrônica ao lado mais alto que o deles. Só por isso, se quisessem, os caras do Cake teriam motivos de sobra para reclamar do Lollapalooza. Graças a eles, e só, eu não tenho.

Fé nas almôndegas



“Coisas assim fazem a gente recuperar a fé na humanidade”. 

Primeiro, minhas palavras causaram espanto. Em seguida, veio um “cala a boca, Leandro”, em uníssono. Nenhuma das duas reações me surpreendeu. Afinal, a frase tinha saído da mesma boca por onde antes entrou uma almôndega de calabresa preparada no vapor, mastigada e engolida – nunca falo de boca cheia, nem mesmo para fazer declarações pouco ortodoxas. Meus amigos também tinham gostado da entrada, mas não compartilharam meu entusiasmo. Talvez, realmente não fosse para tanto. Terminadas as almôndegas e mesmo o excelente hambúrguer (também preparado no vapor) que veio em seguida, de fato, a frase mostrou-se de efeito duvidoso. Minha fé na humanidade voltou aos patamares anteriores: quase zero. Nada cozido sem gordura tem tanto poder.

Exageros de comicidade duvidosa à parte, a verdade é que é verdade: minha fé na humanidade é pequena. E o mais preocupante: é a única que tenho. Mais seguro seria acreditar em algo superior, subjetivo, infalível, idealizável, mas a crença no ser humano é o que temos. Ou, pelo menos, o que tenho. E o que tenho se esvai a cada dia, encaminhado para o ralo não apenas pelas atrocidades atribuídas ao homem, mas principalmente pela irrefreável extinção da única coisa capaz de salvá-lo delas. As violências ao próximo – termo para abarcar de genocídios ao ato de furar a fila, passando pelo desmatamento florestal e a incapacidade de limpar o cocô do cachorro na calçada – não são nada novo, e nada indica que, um dia, deixarão de existir. Mas, para suportá-las, temos do nosso lado as artes, a filosofia, a literatura, tudo, enfim, que nos faz, como raça, minimamente dignos da existência. As forças da inteligência e da sensibilidade raramente foram capazes de evitar confrontos armados. Mas, sem elas, mazelas desse tipo não teriam rendido a Guernica de Picasso ou os relatos de guerra de George Orwell – obras que nos lembram dessas desgraças e, apesar de não impedirem sua repetição, dão a elas algum sentido, mesmo que puramente estético. É essa a função de livros, canções, peças e filmes: tentar justificar o absurdo da existência. São atos de resistência perante a estupidez. Representam a recusa em nos dar por vencidos.

Mas avançam os anos e avançam também as tropas da ignorância, fazendo pouco dos nossos esforços, patéticos. Como nunca, somos muito bem equipados para fazer-lhes frente, e em nenhum momento da história fomos tão impotentes diante delas. Com as novas tecnologias, milhares (talvez milhões) de voluntários alistam-se para lutar a tal luta vã. Mas constituem fileiras despreparadas, crianças empunhando rifles de assalto. Se esses fedelhos sentem-se aptos à guerra, isso se deve à internet e à noção de democratização do talento trazida por ela – a genialidade ao alcance de todos. Antes, artistas eram pessoas incomuns, atormentadas, gênios isolados e incompreendidos. Hoje, sou eu, é você, é qualquer um de posse de um computador – com internet, claro, se não, quem saberá quão geniais somos? Ao contrário do exército, onde o excesso de contingente leva à dispensa dos menos habilitados, nas trincheiras culturais todos são aceitos. Como resultado, somos solapados por uma avalanche de mediocridade, que nos impede, muitas vezes, de chegar ao que de fato merece atenção. Qualquer um pode ser escritor, músico, artista plástico ou mesmo cineasta, mas quantos fazem uso digno dessa facilidade de acesso aos meios de produção e divulgação? Sim, a internet nos presenteou com os Arctic Monkeys, uma das bandas mais legais dos últimos 15 anos, conhecidos nos meios digitais antes mesmo de terem gravado o primeiro disco. Mas, em sua generosidade questionável, a rede nos dá em quantidade bem maior atrocidades como “50 Tons de Cinza”. Foi o sucesso digital dos primeiros rascunhos divulgados pela a autora E. L. James o que a estimulou a escrever a tosca trilogia – e lhe proporcionou um gordo contrato com uma editora.

A reação de muitos a esse cenário é a prática da arqueologia cultural: refugiam-se na redescoberta dos clássicos como alternativa segura aos lançamentos duvidosos. Protegidas pelo saudosismo, é dessas pessoas que vêm frases como “não se fazem mais (livros/filmes/discos) como antigamente” ou “o rock acabou nos anos (1970/1980/1990)”. Uma postura da qual sempre fui crítico,  mas que uma sequência de decepções me levou a adotar parcialmente, abrindo mão de ir atrás de novidades literárias, musicais ou televisivas. Pelo menos, não de forma ativa: “Se for bom mesmo, vai chegar até mim”. Pelo bem da preservação da minha fé na humanidade, combalida e quase extinta, chega mesmo. São os casos do Foxygen e de “Girls”, que, antes disso, tiveram de ultrapassar o exigente crivo de amigos.

Formado por dois moleques de pouco mais de vinte anos, eles mesmos arqueólogos culturais, nostálgicos de um tempo em que nem eram nascidos, o Foxygen usa componentes do rock dos anos 1960 e 1970 em “We Are The 21st Ambassadors Of Peace & Magic”, tido por mim e por gente menos resistente como o melhor disco deste ano. Um dos seus grandes méritos é o de ser uma obra coesa, álbum mesmo, como os que se faziam nos tempos em que os já citados saudosistas dizem que o rock morreu. É bom por inteiro, e digo isso por que o ouvi assim por semanas a fio. É um apanhado de melodias e letras sensacionais, como “No Destruction”, em que eles avisam: “There’s no need to be an asshole, you’re not in Brooklin anymore”.

“Girls” é o tipo de seriado que só a HBO, conhecido bastião da qualidade televisiva, poderia produzir. É a aposta do canal no brilhantismo de outra mente de vinte e poucos anos. Lena Dunham escreve, dirige e protagoniza a série, em que desnuda sua geração e a si própria, inclusive no sentido literal. Faz excelente uso da (em geral escrota) ausência de pruridos comum aos seus contemporâneos e à internet (sempre ela),  praticando grande literatura confessional filmada. De forma realista, Lena nos conta como seus pares recém-chegados à vida adulta estão despreparados para ela – e como mesmo alguns há mais tempo nessa condição ainda não se adaptaram, nem dão mostras de que um dia irão. É verdadeira em Nova York, cenário da série, e também em São Paulo, em Recife e, imagino, em Tóquio.     

São coisas assim que, de fato, me fazem recuperar a fé na humanidade. (E, sim, garçom, traz mais uma porção de almôndegas de calabresa e uma Eisenbahn Strong Golden Ale, por favor.)