segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Auto-dedicatória

Passava da meia-noite quando cheguei ao meu prédio, bêbado. O dia havia sido muito difícil, o primeiro de uma sequência infernal que daria uma justificativa pessoal à má fama atribuída ao ano de 2016 por eventos coletivos. Poucas horas antes, eu havia recebido o primeiro – e mais pesado – de uma série de bombardeios. Mais abatida do que eu, só minha fé no ser humano.
     Após passar pelo primeiro portão, ergui o polegar ao porteiro por de trás do vidro escurecido da guarita e fui andando para o próximo portão.
     -- Tem encomenda pra você, Leandro –, me deteve, abrindo a janela.
     Ele me estendeu o papel para eu dar um visto e, em seguida, o pacote. Era de uma livraria, mas eu não lembrava de ter comprado nada, muito menos um livro. Na verdade, não lembrava de nada além da dor que sentia no momento. 
     Subi até o meu andar e, mantendo o ritual de sempre, só abri a embalagem já dentro do apartamento. Da caixa, um olhar cansado me encarava por sob o filtro vermelho que encobria a foto na capa do livro. Era Lou Reed, já nos últimos anos da vida. A visão do poeta de Nova York me fez lembrar: havia dado aquela biografia como presente de aniversário a um amigo e, sendo eu bem mais fã do cantor do que ele, fiquei com vontade de ter dado o livro para mim mesmo. Mas, mais que um auto-presente, o livro era um lembrete. Antes de comprar o livro na loja física, para presentear o Fabião, eu li suas primeiras páginas, o relato das sessões de eletrochoque a que Lou havia sido submetido ainda na adolescência – uma tentativa dos pais, grotesca mas aceitável nos anos 1950, de tentar pôr fim aos trejeitos homossexuais do garoto. A tortura não o deixou menos gay, mas teve efeitos indeléveis em sua personalidade. A impressão que tive do livro, a partir desse começo, foi de se tratar de uma história de sofrimento. Foi por isso que, ao recebê-lo naquele meu pequeno apocalipse pessoal, não pensei duas vezes para fazer uma dedicatória a mim mesmo: 
      “Para você lembrar, Leandro, que pessoas muito mais legais se bem (sic) foderam mais que você.”
     (A dislexia alcoólica me servia como outro lembrete: depois de ter tomado umas, jamais escreva algo que não vai conseguir apagar.)
    Isso foi há pouco mais de um mês. Desde então, meu estado pessoal, felizmente, mudou um bocado, assim como minha própria impressão sobre Lou Reed e sobre o livro, quase no fim. Primeiro, ele não era o cara legal que eu imaginava -- e todos não pensamos o melhor dos nossos ídolos? Depois, se a história do cantor pode ser descrita como de sofrimento, não é apenas pelo que ele sofreu, mas também pelo que causou. Aos parceiros musicais, aos parceiros amorosos e até a si mesmo. Lou viveu quase toda a vida construindo relações apenas para em seguida demoli-las. Egocêntrico e tirânico, era incapaz de dividir créditos e holofotes. A impressão que se tem ao ler “Transformer – A história completa de Lou Reed”, de Victor Bockris, é que, fosse mais tratável, admitisse a existência de talentos equivalentes (e até maiores que) ao seu, o gigante seria estratosférico. Não por acaso, os pontos altos da sua obra correspondem aos momentos em que permitiu que outros brilhassem tanto quanto ele. Dois exemplos óbvios são o seminal “Transformer”, álbum feito em colaboração com os produtores David Bowie e Mick Ronson, e o próprio Velvet Underground, impossível sem a parceria do visionário John Cale.      
    Vindo de um lar equilibrado de classe média, Lou precisava de drama para criar. Começou fantasiando um pai abusivo e uma mãe omissa, apresentados nas suas primeiras tentativas literárias e em algumas de suas letras. Em seguida, como que para tornar o drama mais palpável, maltratou namoradas e amigos, envolveu-se mais e mais com drogas e álcool, chafurdou no submundo nova-iorquino, do qual se tornou o maior cronista. Viveu em conflito com sua própria sexualidade, ora aceitando-a, ora negando-a ao ponto da alucinação. Expôs o que sentia e o que via, em considerações existenciais que lhe deram o título de inventor do “rock adulto”. Numa eterna busca pela Grande Arte, Lou experimentou, se destruiu e se reconstruiu seguidas vezes. Não chegou a cumprir suas pretensões como escritor na literatura, mas sua obra completa pode ser entendida como um imenso livro, cada fase correspondendo a um capítulo.
    Lendo “Transformer”, por várias vezes, me senti íntimo de Lou. Experimentei um pouco do sentimento comum a todos os seus amigos e colaboradores citados no livro: amor-ódio-amor-ódio-amor-ódio-ódio-ódio-ódio-amor. Puta de um babaca, puta de um gênio. Como o que ficou são discos como “New York”, “Legendary Hearts” e “Coney Island Baby”, além de toda a obra do Velvet, o amor e o gênio prevalecem.
    Ao terminar a leitura, vou guardar o livro na estante. Depois de meses – talvez anos –, quando eu o abrir, vou dar de cara com a minha auto-dedicatória e me lembrarei: apesar de não ser exatamente o caso do Lou, tem pessoas muito mais legais que se bem (sic) foderam mais que eu. E vou rir, se não do sofrimento já então distante, da dislexia alcoólica.