sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Love in the elevator


Antes que a porta do elevador se fechasse, saiu dele uma mão, que a segurou. A gentileza respondeu ao pedido não feito por Felipe. Contrariando o costume, jamais se afobava diante de metrôs prestes a partir ou elevadores semicerrados. Não havia pressa maior que sua paciência para esperar os próximos. O anônimo, imaginou, devia ter visto seu reflexo se aproximando no espelho do elevador ou, quem sabe, apenas teria ouvido seus passos, lentos, mas pesados o suficiente para serem notados daquela distância.

“Obrigado”, disse Felipe. Recebeu de volta um meneio, sinônimo mudo de “não há de quê”. Engraçado lembrar, uma ex de muitos anos usava o gesto da mesma forma, também em resposta a agradecimentos. E, é certo, aquela seria a única semelhança entre Andressa e a gorducha quarentona com quem agora dividia o elevador. De cabeça inteiramente raspada, a não ser pelo chumaço comprido e descolorido na base da nuca, alargadores em ambas orelhas e tatuagens a cobrir toda a pele dos braços deixada à mostra pelas mangas arregaçadas do moletom, a figura esquisita e modernosa em nada se parecia com seu antigo amor. Quer dizer, em nada além dos olhos, que Felipe descobriu escondidos sob os óculos de grau vermelhos. Na nada atraente mulher, as esferas castanho-esverdeadas eram um oásis de beleza do qual ela não parecia se orgulhar, condenando-as à grossa armação.

Andressa, por sua vez, não poupava artifícios para evidenciar os olhos. Os benefícios de uma visão perfeita não a convenciam a tirar os óculos da gaveta, e ela nunca saía de casa antes de passar rimel, lápis e sombra. Do mesmíssimo castanho-esverdeado dos olhos da gorducha, os seus eram exibidos ostensivamente, como mísseis nucleares sobre carros alegóricos em desfile organizado por alguma ditadura asiática. Se nesse caso as ogivas serviam apenas para intimidar, no de Andressa as armas de destruição em massa eram usadas sem pudor. Com o olhar, furava filas, conseguia descontos, vencia discussões perdidas. Com o olhar, se quisesse, interromperia guerras. Com o olhar, mesmo sem querer, conquistou Felipe. Com a falta do olhar, causou a ele estragos semelhantes aos das tais ogivas quando acionadas. Convertida em Hiroshima, sua vida levou anos para desintoxicar-se de Andressa.

Felipe olhava para o outro lado do elevador, para a dona daquele outro par de olhos, e se perguntava: teria ela já causado tamanha dor a alguém? Algum dia, era possível, seus atrativos não se resumiram àqueles disfarçados pelos óculos. Nesse tempo, sua cabeça tinha sido preenchida por cachos dourados e sedosos como os de Andressa. No lugar das múltiplas tatuagens, nesse passado, apenas uma suave penugem cobria seus braços. Os muitos quilos excedentes não deformavam um corpo talvez perfeito, de pin-up cinquentista. Nessa época, Felipe teve certeza, os olhos da desconhecida foram capazes da mesma devastação proporcionada pelos de Andressa.

Faltavam dois andares até o de Felipe, quando a estranha tirou os olhos do celular e levou-os aos dele. Um olhar com o poder de gelar seu sangue, de acelerar seus batimentos. De interromper guerras, se quisesse. Foi quando abriu a boca:
 
“Que trânsito hoje, hein?” 

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Perigo: famosos a bordo


Para muitos, o atraso daquele voo da ponte aérea não foi suficiente. Mochila no bagageiro, cinto de segurança já afivelado, eu desligava o celular e o iPod – para mim, continuam a ser aparelhos distintos –, enquanto observava, impaciente, a entrada dos retardatários. Recriminava-os em silêncio, como deles fosse a culpa pela hora acrescida à previsão de chegada ao Rio de Janeiro. O ódio dirigido aos empata-foda intensificava-se ao lembrar-me que,  enquanto a maioria já estaria entregue aos chopes de fim de noite ou, quem sabe, à foda propriamente dita, a minha e a de outros infelizes continuaria empatada. A Antiga Capital seria apenas uma escala no meu caminho à Nova, um incômodo resultante da minha ânsia por economizar. Invejando seus hipotéticos chopes sem colarinho, fiz a nota mental para a próxima compra de passagens para Brasília: vinte ou trinta reais não valem o tempo de perdido.
Os atrasados já haviam nos alcançado – afinal, não é tão difícil alcançar alguém sentado –, e a sofrível pronúncia inglesa comum aos pilotos se fazia ouvir pelos auto-falantes do avião onde não havia quem não falasse português. Havia ainda, porém, o último retardatário, de uma falta de pressa incompatível com sua impontualidade. Grandalhão, ele curvava-se em sorrisos para a aeromoça, ainda mais sorridente, a lhe indicar seu lugar. Não o reconheci de imediato, mas os dentes expostos da funcionária e o protocolo quebrado para permitir sua chegada davam a entender: o cabra era famoso. Intrigado, procurava nos dele traços familiares, torcendo para não encontrar nenhum. Na hora, me veio à cabeça algo que vi num filme ou num livro, um personagem que se recusava a pegar o mesmo voo que alguém famoso – eram, segundo ele, esses os voos que caíam. O sorriso provocado pela lembrança se desfez com o reconhecimento: debaixo da touca que lhe encobria as sobrancelhas, estava o rosto de Thiago Lacerda. Relegado a papéis secundários, o galã pode já ter conhecido melhores dias, mas ainda arrancava suspiros balzaquianos de comissárias de bordo e, pelo menos ali, para elas, seria o protagonista. Tanto pior para mim. Já podia ler os jornais – que, morto, não leria – falando da morte de Thiago, tão precoce e trágica, nos quais a menção à minha morte – tão precoce e trágica quanto – não ultrapassaria o número total de vítimas, no qual eu estaria incluído. Sorri mais uma vez, tentando disfarçar para mim mesmo um nervosismo imbecil, fundamentado simplesmente na  coincidência e na ficção.
Durante o voo, John Fante veio em meio socorro. “O vinho da juventude” tomou todas as minhas atenções. A Denver do livro só lembraria Thiago Lacerda se eu tivesse estabelecido relação entre a colônia italiana da cidade e o imigrante interpretado pelo global em “Terra Nostra” – o que, por sorte, não aconteceu. Foram trinta páginas e quase quarenta minutos sem sobressaltos. Até que eles vieram, físicos, assustadores. Solavancos violentos como não me lembro de ter enfrentado antes em anos de vida aérea relativamente ativa. Como aqueles carimbos de cartório, o medo estampado nos rostos ao meu redor reconhecia e dava fé ao referido – não, eu não estava exagerando. Poltronas a frente, pude ver Thiago Lacerda agarrado aos braços da sua, tomado pelo mesmo sentimento. Talvez fosse pior no caso dele. Talvez, tendo visto o mesmo filme (ou seria livro?), estivesse se sentindo culpado por causar a morte de tantos inocentes que nunca tiveram suas fotos na capa da Capricho ou seus nomes nos créditos da novela da oito. Talvez Thiago Lacerda usasse seus últimos minutos para um discurso, um pedido de desculpas a todos os presentes por não ter perdido o voo, por ter usado sua celebridade para não perder a passagem e, consequentemente, nos condenar. Mas não. Ele permanecia quieto, absorto em preces como todos os religiosos e recém-convertidos ali presentes.
Décadas se passaram até a aterrisagem, de morte, mas não mortal. Chegando ao chão, estávamos todos vivos. Alguns pálidos, outros borrados, muitos enjoados, mas vivos. Thiago Lacerda, inclusive. Fez uso, mais uma vez, de sua fama – e, principalmente, de sua estatura – para abrir caminho e ser dos primeiros a sair. De longe, vi o ator desaparecer na turba. Torci para jamais encontrá-lo num voo novamente. Já a periguete sentada ao meu lado tinha outra vontade. “Ai, cadê ele? Queria tanto tirar uma foto…”

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Revival












Ao meu lado, tirado do pulso, um relógio prateado digital Cassio indica a passagem das 15:00h. Com a reedição do modelo, muito popular nos anos 1980, veio enfim a satisfação de possuir tal relógio, desejo antigo como o tempo em que ele era a última moda. Próximo a esse clássico, outro. Preferidos de Bob Dylan e dos Blue Brothers, os Ray-Ban Wayfarer confirmam: o melhor do design está no passado. Na minha opinião, evidentemente.

Os acessórios, companheiros de todos os dias, hoje ganham significado diferente. Mais que apontar o revival como uma (ironicamente, já antiga) tendência de estilo, me dizem: “a gente já sabia”. Enquanto escrevo meu primeiro texto para o redivivo Morfina, olho para relógio e óculos e os vejo como indícios incontestáveis de que o site voltaria de qualquer jeito.

O ressurgimento do Morfina me lembra, também, outro: o de vídeo-games que tanto nos divertiram na infância e adolescência. Os gráficos do então hiper-moderno Neo Geo já não impressionam, mas ainda são capazes de encantar. Fazem lembrar a época em que sonhávamos ter dinheiro para jogar em casa com a mesma qualidade do fliperama, e essa simples memória já vale a compra do novo modelo – light, com console e joystick integrados e metade do tamanho do console antigo.

O Morfina, também, já não é o mesmo. Antes acalentávamos “sonhos de fama e fortuna com a literatura” e pensavámos no site como plataforma para torná-los reais. Agora, mesmo aqueles com maiores pretensões literárias – eu, por exemplo – encaram o Morfina de modo menos sério. O novo Morfina é “moleque”, e nele os colaboradores não têm dias definidos para postar. O atual formato blog é testemunha do descompromisso. Remonta à pré-história do Morfina, aos selerepes Veríssimos e Morfina da Vanessa, que deram origem (e no caso do blog da Van) nome ao outro Morfina.

Ao meu lado, o simpático relógio avisa: são quase 16:30h, hora de voltar ao trabalho. Mas a gente vai se reencontrar outra hora, nesse revival.

(Texto publicado originalmente ontem no Morfina. De certa forma, tem a ver com o tema do post anterior.)

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Nostalgia




Li em algum lugar: crianças e adolescentes raramente usam email. Preferem a praticidade do Facebook e, com uma noção bastante diferente das gerações anteriores a respeito de privacidade, muitas vezes mandam seus recados de forma pública, para todos verem. Telefone (desnecessário o complemento “celular”, eles desconhecem os fixos), também, só para mensagens de texto. O que há para ser dito pode ser resumido em poucas palavras, e essas palavras, por sua vez, podem perder letras e também ser resumidas.
Quando era eu o adolescente, a internet era recém-nascida, um conceito quase abstrato. Computadores (sem conexão), só nas casas (não muito) mais abastadas, e a minha não era uma delas. Os anos eram os 1990, e minha comunicação com primos e amigos distantes se dava por cartas, escritas às custas de muitas esferográficas e folhas de caderno – mais pela minha incapacidade de síntese do que pela quantidade de assunto. Nos anos seguintes, já com internet à mão, insisti nas cartas, sempre volumosas.  Só as abandonei há menos de 10 anos, e mesmo assim não por completo. Uma ou duas cartas (de amor, evidentemente) foram escritas pelo meu próprio punho, que, não por coincidência, dizem ter o tamanho do coração.
Nessa rapidez cretina da obsolescência, eu já olho de forma nostálgica para blogs como este, veículos arcaicos de textos excessivamente longos que ninguém lerá.  Saudosista assumido, insisto na sua manutenção, apesar de mal alimentá-lo. E ele, qual faquir, mantém-se vivo, mesmo à míngua. Gosto disso, de pensar neste blog como o depósito eventual de algo que me pareça relevante. Meio como aquela academia, à qual você mal vai, mas continua pagando. É bom ter lugar para exercitar irregularmente meus músculos (quase) literários.
Mas este blog não é o cúmulo da minha nostalgia: o exagero tem a forma de um calhamaço de mais de 200 páginas. Não dá para definir de outro jeito o sentimento que me impulsionou por tanto texto, por tantos anos – três, no total. E que me faz, passado exatamente um ano da sua conclusão, querer publicar este livro em apresentação física. Proliferam-se ipads e kindles, a publicação virtual possibilita quase tudo, mas foda-se. Quero que você lamba as pontas dos dedos para virar as páginas de “Quem vai ficar com Morrissey?”. Quero o meu livro lido como leio o do Jonh Fante – agora sentado no banco de plástico branco promovido a meu criado mudo. Lá, esteve antes um do Philip Roth, meu pessimista e, no momento, escritor favorito. Em Roth, o pessimismo transborda da temática dos livros e aponta para o seu próprio futuro – o dos livros. Para quem quiser ouvir, ele não cansa de dizer: seu ganha-pão está com os dias contados. Segundo ele, a mesma realidade de jovens se comunicando por não-palavras, de excesso de informação, de dispersão, condena ao fim certo os romances. Quem tem tempo de lê-los? Quem QUER lê-los?
Discordo sutilmente do Sr. Roth. Penso que os livros não terão o mesmo fim das cartas. Para eles, imagino um panorama semelhante ao dos discos de vinil. As tiragens serão a cada vez menores, mas se manterão. Os mesmos saudosistas que compram álbuns (entre os quais, claro, me incluo) continuarão adquirindo volumes sem ter lugar para guardá-los em seus minúsculos apartamentos (entre os quais, incluo o meu).
É para esses saudosistas que escrevi meu livro. É por acreditar na sua existência que produzi o vídeo acima – a única modernice a que me permito em se tratando da minha obra. Inscrito no concurso Escritores in Progress, do SESC SP, o book trailer pode me colocar, se escolhido, ao lado de outros dois escritores não publicados e do poeta Fabrício Carpinejar numa mesa de debate na Bienal, fim de semana próximo. (Se quiser me ajudar, clique aqui para votar.) Se rolar, imagino, vai dar uma força para promover o livro, ajudá-lo a chegar ao seu criado mudo. Afinal, se você leu isto tudo, de certo modo, também é um saudosista.
PS: Nunca é demais agradecer ao talento e amizade do Marcelo Machado e da Renata Sette. Responsáveis pelo sensacional “A luta continua – Um documentário em 12 rounds”, eles emprestaram o mesmo talento que contou a história do primeiro medalhista olímpico do boxe brasileiro para me ajudar a contar a minha. Tem noção de como fiquei honrado?