quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Vangelis e o Espírito de Natal



Não gosto de natal. Acho que nunca gostei, nem quando criança, talvez por ter aprendido desde cedo que Papai Noel tem seus escolhidos. O tal verdadeiro significado da data, em tese muito superior às frivolidades relacionadas a ela, também não me comove. Muitos já falaram sobre a hipocrisia de se pregar e praticar a comunhão entre povos, famílias, vizinhos, petistas e tucanos apenas nessa data, por isso não serei mais um. Quem critica essa conduta, costuma dizer que deveria ser assim todos os dias, e é assim, como um dia qualquer, que eu vejo o natal. Se não fosse o feriado a cerrar as portas do comércio, a decoração duvidosa e o próprio “clima natalino”, com todo o sentimentalismo exagerado e forçado, para mim,  24 e 25 de dezembro seriam apenas dois dias absurdamente quentes como todos do verão brasileiro. 

Hoje, porém, admito: fui possuído pelo famigerado Espírito de Natal. Como em todas as possessões, aconteceu de forma inesperada, inusitada, difícil de explicar. O que você vai ler nas próximas linhas é meu esforço para tal. 

Passava das 13h. O sol ria do absurdo da decoração a simular neve. Andando para casa após a corrida, eu derretia, como os bonecos arredondados derreteriam se realmente fossem feitos de sua suposta matéria prima. Nos vidros dos carros estacionados, meu reflexo era tão vermelho quanto a roupa que os bons velhinhos usam para faturar um extra no fim do ano dos shopping centers. A subida por onde se estendem os mais de dois quilômetros entre o parque e minha casa também não ajudava. Mas nem tudo estava perdido: havia a endorfina pós-treino. A substância tentava bravamente equilibrar as coisas, me dar motivos para sorrir. Estava difícil, mas ela não desistia.    

Veio, então, a cavalaria. Veio do passado e do futuro. Veio, não em cavalos, mas num carro voador, pilotado por Harrison Ford. Veio no tema mais famoso da trilha sonora de “Blade Runner — O Caçador de Andróides”, escolhido aleatoriamente entre as músicas armazenadas no meu celular. A obra-prima de Ridley Scott é, seguramente, o filme a que mais assisti na vida. É também um dos meus preferidos. Ao saber que o clássico de 1982 teria uma exibição especial no cinema, não pensei duas vezes. Dividindo a mesma fila quilométrica com nerds a caráter para assistir ao mais recente filme da saga “Star Wars”, eu aguardava para ver uma versão muito mais jovem do intérprete de Han Solo. Seria minha primeira e, provavelmente, última oportunidade.

As mesmas cenas, os mesmos diálogos. O mesmo poder de me causar arrepios amplificado pelas caixas por onde saía a trilha sonora de Vangelis, em áudio remasterizado, impecável. A trama recorre à caça aos replicantes empreendida por Deckard — a origem do título nacional — para falar de questões mais reais e imediatas do que andróides semi-humanos e colônias extraterrestres. É sobre finitude, sobre o medo da morte, que todos temos — e sobre sua certeza, a única que temos. O compositor grego criou a paisagem sonora ideal para tratar desse tema. Há na trilha sonora de “Blade Runner” elementos de um futuro que não chegou e não chegará no 2019 em que o filme se ambienta — a apenas três anos, mas a séculos da nossa realidade. Há uma delicadeza e uma sensibilidade nos dedos deslizando no teclado do piano e pelas cordas do contra-baixo, vestígios de uma humanidade que não se dá por vencida apesar da frieza dos avanços científicos que permitem recriar o homem apenas para escravizá-lo. Humanidade manifesta principalmente nessas réplicas, que se recusam a não ter sentimentos e que, diante da noção da proximidade do seu inevitável fim, rebelam-se contra seus criadores e se mostram demasiado humanos; mais do que eles, talvez.   

Como todos nós, Roy (líder dos replicantes interpretado por Rutger Hauer) sabe que vai morrer. Como a maioria de nós, ele se recusa a aceitar o fato. Como poucos de nós, ele vive cada minuto como se fosse o último. Privado de futuro, a Roy só resta o agora. É no agora que ele corre no meio da chuva, salta de um prédio para o outro e atravessa paredes com seu punho e a força descomunal que o separa daqueles a quem replica. É no agora que ele salva Deckard, seu caçador, da morte certa. Prestes a cair do topo de um prédio, Roy o agarra pelo braço e o puxa. Dá a ele a vida que ele mesmo vai perder em breve. 

Pode ter sido esse o efeito desencadeado em mim por “Love Theme” mais cedo. Bastaram as primeiras notas do saxofone para tudo ao meu redor ganhar outras cores. Cenas banais, como um casal de idosos saindo da padaria ou a mãe e o filho, de mãos dadas, esperando para atravessar a rua, tornaram-se maravilhas como as naves de ataque explodindo em Orion presenciadas por Roy. Numa versão mais modesta do ato salvador do replicante para com seu perseguidor, tive vontade de ajudar os velhos a carregar suas compras ou de fazer os carros pararem para que a  mulher e o menino pudessem atravessar a rua. 


Não fiz nada disso, claro. Mas me senti em comunhão com eles, com todos, como os cristãos se pretendem em tempos de natal. Mais que uma conversão tardia, uma reafirmação da minha fé no poder da música, no poder do cinema, no poder da arte.

domingo, 22 de novembro de 2015

Morrissey Football Club

Esta foto, claro, não é de ontem.
Você vai ao estádio assistir a um jogo do seu time e, por engano, acaba no setor reservado à torcida adversária. Você olha ao redor, percebe o erro, pensa em sair dali e procurar sua torcida, mas não tem jeito: o seu ingresso é para aquele espaço mesmo. Claro, não é a mesma coisa que ver o jogo com seus torcedores — afinal ninguém canta o hino do seu time, ninguém torce quando ele faz gol e você ainda corre o risco de apanhar —, mas você vai ter que se contentar. 

Mesmo nunca tendo passado por essa situação, sem dúvida você me entende. Foi exatamente assim que me senti ontem, na pista comum do Citibank Hall, durante o segundo show do Morrissey em São Paulo nesta turnê. Com repertório pensado para fãs da carreira solo, especialmente os familiarizados com o último álbum, do qual ele tocou nove faixas, Moz não fez o show que a maioria do pessoal ao meu lado — que tinha ido ver “aquele cara dos Smiths” — queria. Cantou para os fãs hard-core, o pessoal do meu time, que ocupava a pista premium, onde eu também deveria estar se já não tivesse gastado uma grana para ver o show de terça-feira. 

Com oito shows dele no currículo até ontem, eu sabia: cada um é único. Ao contrário dos shows milimetricamente estudados e coreografados — vide U2 — que se tornaram comuns, nos dele nem repertório nem palavras se repetem. Mas, se isso te dá a oportunidade de ver duas apresentações completamente diferentes no intervalo de poucos dias, também abre espaço para oscilação. E, fazendo referência ao título de uma faixa instrumental dos Smiths, desta vez a o oscilação foi selvagem. Que me perdoe a torcida do Morrissey Football Club, meu time de coração: o show de ontem foi bem inferior ao do Teatro Renault.

Igual ao show de terça mesmo, só as duas primeiras (“Suedehead” + “Alma Matters”) e últimas (“I’m Throwing My Arms Around Paris” + “The Queen Is Dead”) músicas. O repertório apresentado mostrou-se carente não apenas de sucessos dos Smiths (do qual só tocou as panfletárias “Meat Is Murder” e a já citada “The Queen…”, além da sensacional mas pouco popular “What She Said”), mas de hinos da carreira solo, como “Irish Blood, English Heart” e “First Of The Gang To Die”. Dava a impressão de que, por algum erro, haviam trocado o setlist do Citibank Hall pelo do Teatro Renault e vice-versa: o de ontem caberia mais num show para iniciados, como pareceu o caso da plateia da bela casa na Brigadeiro Luís Antônio.  

Isso se refletia, claro, na reação da plateia, muitas vezes indiferente. De onde estava, vi várias pessoas conversando durante as músicas e de braços cruzados ao fim delas, ao invés de aplaudir. Mais que indiferença, teve humor mal educado, quando alguns fanfarrões gritaram por “picanha” e mandaram a clássica “toca Raul”. A grosseria chegou ao auge quando um sujeito gritou qualquer coisa durante a execução da intimista “Smiler With Knife”: Morrissey interrompeu a música no meio e perguntou se deveria parar de cantar. Conhecendo a fama do cantor, um João Gilberto britânico, tive medo que ele de fato encerrasse o show ali. Quando o intervalo para o bis se prolongou além do habitual, esse receio voltou. 

Ontem, mais uma vez, Moz estava falante. Falou entre quase todas as músicas, falou tanto que a torcida adversária talvez tenha achado demais. Mas não estava simpático como terça, embora tenha feito novo elogio a São Paulo, ao grafite local. A plateia reagia negativamente ao repertório, Morrissey reagia negativamente à plateia. 

Mas era meu nono show do Morrissey, e eu estava feliz por ver coisas novas, diferentes do que já tinha visto. E ouvir também, claro. Se terça ele tocou “Reader Meet Author”, ontem foi a vez das para mim inéditas ao vivo e lindas “Yes I’m Blind” (me transportou diretamente a 1991, ano em que me tornei fã) e “Jack The Ripper”, uma das minhas preferidas. Poder abrir os braços e cantar junto “crash into my arms, I want you” já paga o ingresso. 

No fim do show, que vi com o camarada João e, em parte, com o casal Ed e Lilian, tentei encontrar outros amigos também presentes. Não consegui. Os encontros que aconteceram, porém, menos prováveis, foram muito bacanas. Um deles foi com a Camila, leitora carioca, que me mandou mensagens dias antes pedindo para eu autografar sua cópia de “Quem Vai Ficar Com Morrissey?” depois do show. Na frente do Citibank Hall, entre tantas pessoas, ela conseguiu me achar e se apresentou. Infelizmente, a Camila tinha esquecido sua cópia do livro, mas me deu a honra de autografar seu ingresso. É uma menina muito sensível, ainda estava tremendo de emoção após o show. Disse que veria o Moz novamente no Rio e, depois, para a minha surpresa, no Paraguai. Eu nem sabia que o Morrissey ia tocar lá.

Depois, mais inusitado ainda, foi encontrar a Débora, outra leitora. Se com a Camila eu tinha meio que combinado, com ela foi completamente por acaso. Estava tomando uma cerveja com o João quando ela me abordou, perguntando se eu era, bem, eu. Eu também a reconheci na hora — coisas de fotos de Facebook. Estava acompanhada do Jorge, seu filho de quinze anos, a quem ela transferiu a genética e o gosto musical. Depois me contou que o Jorge estava na sua barriga quando ela assistiu ao show do Morrissey em Porto Alegre em 2000, e tudo fez sentido. Os dois tinham chegado ao lugar às 10:00 da manhã e, como recompensa, conseguiram ver o show colocados na grade. Ela me disse que se identificou muito com “Quem Vai Ficar Com Morrissey?” porque, além de ser grande fã do cantor, já tinha vivido uma história parecida — como, aliás, a Camila também viveu. Débora me disse que se viu na Lívia e, como provam as tatuagens do Morrissey e dos Smiths que carrega no braço, ela ficou com as músicas. 

Na saída do show, ouvi comentários do tipo “pô, faltou Smiths”, “Smiths é Smiths”. Por outro lado, a Camila, a Débora e o Jorge me disseram que adoraram o show. Eu, no final das contas, também gostei. Mas tenho certeza: teria gostado mais se tivesse assistido com a minha torcida. 

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

“l'll never make that mistake again.”

Um sortudo teve seu "Viva Hate"  autografado
Ouvi a frase na última terça, durante o show do Morrissey. Mas não veio da boca do ex-vocalista dos Smiths, cantando "Girl Afraid”, sucesso de sua antiga banda. Quem falou foi meu amigo Rodrigo. Ao meu lado na plateia do mezanino do Teatro Renault, ele se lembrou dos shows que tínhamos visto em Dublin, quatro anos antes, quando segurei a mão de Deus, e ele, a de Bozz. Quem leu “Quem Vai Ficar Com Morrissey?” conhece a história dos shows que vimos em Dublin, no minúsculo Vicar Street, narrada por mim na introdução do livro. Era àquela experiência que o Rodrigo comparava o lugar de onde assistíamos ao primeiro show do Morrissey em sua atual turnê brasileira. 

Diferente dos seguintes, esse show também era mais restrito, e nossos ingressos, mesmo não sendo os mais privilegiados, haviam sido bem caros. De onde estávamos, tínhamos uma excelente visão de Moz e sua banda, mas faltava aquela proximidade vivida em terras irlandesas, de que os felizes compradores de ingressos nas primeiras fileiras puderam desfrutar. Foi a inveja dessas pessoas, dentre as quais o sortudo que conseguiu entregar um LP "Viva Hate" para ser autografado por Moz em pleno palco, que levou meu amigo a citar o single dos Smiths. O erro que ele jamais cometeria de novo seria assistir a um show do Morrissey de tão longe.

Mas, para nós, Morrissey nunca esteve longe. Se o sentimos próximo mesmo quando está em outro continente, naquela noite não poderia ser diferente. Como ele estava à vontade no palco, o único lugar onde diz ser feliz de verdade. Como estava simpático, conversador como nunca o tinha visto antes, nem na sua Inglaterra, que lhe deve uma vida e fala seu idioma. Como parecia cantar com vontade, mesmo aos 56 anos, mesmo após mais de 30 anos fazendo aquilo, mesmo estando a enfrentar um câncer. 

Foi de se aplaudir em pé, mas não só. As cadeiras numeradas e confortabilíssimas do teatro tornaram-se inúteis para mim e meu amigo assim que o show começou. Perto de nós, ao contrário dos felizardos da plateia inferior, a maioria só se levantava nos maiores hits: no avassalador começo com “Suedehead” e “Alma Matters”, depois com “This Charming Man”, “How Soon Is Now?”, “Everyday Is Like Sunday”. Eu e o Rodrigo, não: “Porra, assistir show de rock sentado? Não tem cabimento”, dizíamos um para o outro, nos recusando ao conforto que os joelhos cobravam. 

À nossa frente, a única exceção próxima: uma menina adolescente, com camiseta do Morrissey, cantando todas as letras, dançando o tempo todo, em transe. Ao contrário da amiga — ou irmã, sei lá — ao lado, a garota não encostou no celular: assistiu ao show como se fazia na época em que isso era mais importante do que mostrar para os outros que se estava assistindo, como se deve fazer. Por isso, e pela devoção demonstrada, foi a responsável por me fazer recuperar parcialmente a fé no futuro.  

Bem jovem, Morrissey abandonou o nome de batismo e passou a ser conhecido pelo sobrenome do pai, de quem ironicamente nunca foi próximo. Odeia o nome Steven, coisa que qualquer fã sabe. Mas terça, mais uma vez, provou que com a versão hispânica a história é outra: “Soy Esteban”, se apresentou em espanhol, depois de toda a banda, em mais uma prova de bom humor. Disse para os presentes ter andando de carro por São Paulo, “uma cidade muito bonita, cheia de gente bonita”. Disse que somos sortudos por morar aqui. (Quem, como eu, mora a pouquíssimos quilômetros do lugar daquele show, não tem a menor dúvida disso.) Contou, também, ter sido chamado para participar de “um programa de televisão chamado Fantástico” e perguntou se deveria aceitar o convite. A resposta veio em vaias, que, como lembrou uma leitora-amiga, só faltou virem acompanhadas do coro “o povo não é bobo, abaixo a rede Globo”. Se cantassem isso, estariam errados: o povo (ali presente) é bobo, sim. Sendo no Fantástico ou em qualquer outro programa, seria bacana ver nosso ídolo na TV brasileira. 

O repertório foi tão bom quanto se podia esperar, a menos que você não fosse fã e não soubesse como funcionam seus shows. Ainda produtivo e inspirado, Moz não vê sentido em saudosismo, seus concertos não são celebrações de um passado glorioso. Como diz a letra do hino do meu time (para quem não sabe, o Santos), a carreira de Morrissey é “um passado e um presente só de glórias”. Por isso, embora tenha começado com seu primeiro e maior hit solo e tenha incluído algumas clássicas dos Smiths, o setlist contemplou boa parte do seu último disco e diversas faixas mais recentes, como as lindas “I Will See You Far Off Places” e “I’m Throwing My Arms Around Paris” — esta, revestida de outro significado desde os recentes atentados terroristas à capital francesa, tocada já no bis e ovacionada. 

Ainda sobre o repertório, destaco a linda versão de “The First Of The Gang To Die”, em que a história do pobre Hector ganhou uma sonoridade country, e “Reader Meet Author”, do subestimado “Southpaw Grammar”. Tenho um apreço especial por essa segunda, principalmente depois de ter publicado “Quem Vai Ficar Com Morrissey?”. É a ela que me refiro quando, numa entrevista contida no livro, o editor Marcelo Viegas me pergunta que música toca na minha jukebox mental quando penso no lançamento. A canção é uma série de alfinetadas na imprensa musical britânica, que, segundo Moz, apenas ouve o jeito como sua triste voz canta e começa a imaginar coisas. Para mim, entretanto, trata de encontrar leitores, algo que sempre gosto de fazer, seja virtual ou pessoalmente. Até porque todos gostam de Morrissey, e não conheço quem goste e não seja gente boa.   


Ao fim do show, a certeza de ter visto algo memorável e único, mesmo se tratando da oitava vez  em que tive a honra e o privilégio de ver Morrissey ao vivo. Seguramente, uma das melhores. Só não se compara aos shows de Dublin porque, bom, nada se compara. Sábado, a catarse vai se repetir. Mas, infelizmente, vou cometer mais uma vez o erro a que o Rodrigo se referia. Já tendo gastado bastante no ingresso de terça, comprei o do show de sábado para um setor mais popular — leia-se longe do palco. 

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Carta a uma jovem escritora

Laura, 

Há poucos dias, você me escreveu. Mandou um link com um texto escrito por você, o que considerava o seu melhor. Seus amigos, contou, sempre a elogiavam, mas você mesma tinha dúvidas sobre a qualidade da sua produção. Sendo minha leitora — e considerando minha opinião mais balizada e isenta, imagino —, pediu que o lesse e avaliasse, para, a partir daí, decidir se investiria mais tempo e esforço na incipiente carreira de escritora.

Antes do meu parecer, minhas desculpas. Por demorar a responder — em tempos ansiosos, alguns dias são a eternidade — e por, ao fazê-lo, escrever publicamente. Fosse só para você que escrevo, o primeiro parágrafo seria desnecessário, claro. Acontece que vi nesta resposta a oportunidade de falar também com outras pessoas que tenham os mesmos questionamentos e que, eventualmente, também considerem meu conselho. Quero aproveitar para discorrer um pouco mais sobre a validade de se escrever atualmente. Talvez você tenha lido, abordei o tema outro dia — por coincidência, o mesmo em que recebi sua mensagem.

Laura, que tem o nome de uma de minhas avós e da minha única sobrinha, te direi o mesmo que diria a esta ultima. Ao contrário de você, sua xará ainda não leu meu livro — nem nenhum outro. Com dois anos e meio, Laurinha não escreve nem o próprio nome, mas se, quando começar a juntar letras, interessar-se por seguir o caminho que o tio teima em trilhar, as próximas linhas são o que lhe falaria. (Isso se ela me mostrasse um texto exatamente como o seu e me pergunta-se "e aí, tio?”.)

Olha, Laura, sendo bem sincero, seu texto não é tão bom quanto os seus amigos dizem. Nem tão ruim quanto você, insegura como muitos iniciantes já não sabem ser, acredita. A insegurança, tão criticada pelos manuais de autoajuda, é essencial, e não apenas para os que começam. É o que nos leva a escrever e reescrever diversas vezes a mesma frase, a procurar outros olhares para nos certificar de que o nosso, viciado, não esteja míope. Mantendo o paralelo ótico, se o diagnóstico de um oftalmologista não é suficiente para cegar alguém, pareceres literários podem causar escritores natimortos. Isso, em casos como o seu. Para quem já publicou algo, críticas destruidoras são capazes de impedir a continuidade da obra — o que, em se tratando de muitos, talvez seja um favor a todos.

Tenho noção deste poder, que você me conferiu ao me consultar. Mas não é só por isso que minhas palavras para você não serão agressivas nem castradoras. Mesmo não sendo tão nova quanto minha sobrinha, sei que é mais nova do que eu (adolescente, talvez?). Então o que escreverei é o que gostaria que alguém tivesse me dito quando tinha sua idade, há uns vinte anos. Naquela época, eu já escrevia, mas não tinha acesso fácil à internet muito menos blog. Melhor assim. Embora menos do que hoje, já havia uma quantidade suficientemente grande de péssimos textos disponíveis. Se às vezes releio textos antigos postados neste mesmo blog e quase me mato de vergonha, tivesse postado aqueles escritos nos anos 1990, tenho certeza que não ficaria só no quase. 

Acredite, Laura: comparado ao que escrevia na época, o texto que você me mandou parece tirado da obra do Machado de Assis. Se hoje escrevo um pouco melhor, devo isso ao primeiro — e principal — conselho que te darei. Leia, leia muito. Não existe jeito melhor de aprender a escrever. É um lugar-comum, eu sei, mas estar atento a ele ajuda a evitar muitos outros. Não basta, portanto, ler qualquer coisa, “de tudo”, como muitos recomendam. Ler sem critério é como entrar numa área radiativa sem a proteção adequada: podemos nos contaminar com personagens, enredos, diálogos e estilos pouco inspirados. E ainda que se leiam os best-sellers da subliteratura com viés crítico — o que também pode ser útil para identificar características indesejadas e não repetí-las —, o tempo perdido com eles não compensa. Se um filme porcaria consome duas horas, seu equivalente literário pode roubar duas semanas. Hoje, você tem muito tempo pela frente, mas vai chegar um momento em que as horas gastas com livros indignos vão fazer falta.

Literatura “didática” é aquela que incomoda. Ou porque nos tira da zona de conforto intelectual, exigindo alguma espécie de esforço para acompanhá-la; ou porque, identificados com trama e personagens, nos faz sofrer e nos emocionar com eles; ou ainda, porque, de tão bem escrita, nos faz ter inveja do desgraçado do autor. A literatura ensina quando nos leva adiante, quando nos faz buscar outros livros e referências; quando nos apresenta a outras realidades; quando nos faz pensar sobre temas em que nunca havíamos pensado, ou ver coisas comuns por prismas nunca antes cogitados. 

Voltando aos “desgraçados dos autores”, são justamente estes os professores a quem devemos recorrer. São deles os textos que nos dão vontade de escrever, cuja leitura nos faz imaginar nunca sermos capazes de escrever tão bem. E, de fato, não somos. Escritores como Dostoiévski  ou Camus são inalcançáveis como a utopia, de que fala Eduardo Galeano. Uma nos faz continuar andando, os outros nos mantém escrevendo, nos aperfeiçoando — num exercício sem fim, mas de resultados. Perseguir a escrita do Charles Dickens, por exemplo, é o que resultou em dois dos meus escritores preferidos, John Irving e Jonathan Franzen. 

Falar desses dois, aliás, me traz ao meu último texto. Nele, questionei a validade de se escrever hoje em dia, mas de forma absolutamente retórica. Mesmo sendo verdade que o melhor da literatura esteja no passado, isso não invalida os esforços de grandes escritores de nosso tempo, como estes citados. Precisamos de “O Mundo Segundo Garp” e “Liberdade”,  como precisamos de “Grandes Esperanças”. Enquadrando-se na categoria de grande livros “didáticos” a que me referi, a leitura dos primeiros nos levam a este último, que os inspirou.  

Também não é apenas dos grandes escritores que vive a literatura. (Pode parecer que advogo em causa própria, mas juro que não é o caso. Não inteiramente, pelo menos.) Todos que sintam vontade — necessidade talvez fosse a palavra mais adequada —de escrever devem fazê-lo, seja com o objetivo de ver o próprio nome em prateleiras de livrarias, ou apenas para postar num blog para poucos. O que você escreve sem dúvida fará diferença para alguém; no mínimo, para você mesmo. Escrever é uma maneira de entrarmos em contato com nós mesmos, nos conhecermos e nos aperfeiçoarmos, na mesma medida em que aperfeiçoamos nossos textos. 

Então, Laura, continue a escrever. Quando disse que seu texto não é sensacional, não é que não tenha gostado. Vi nele sensibilidade e talento, potencial a ser desenvolvido. Nenhum escritor está pronto com a sua idade. Como já disse, há vinte anos, eu estava muito menos do que você. E se naquela época, ao ler as maravilhas que eu escrevia, alguém tivesse me dito para desistir, talvez você não tivesse lido “Quem Vai Ficar Com Morrissey?”, e eu não estaria escrevendo este texto. 

Um beijo,


Leandro

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Dúvida

Não importa quantos livros você já tenha lido: o número é bem menor do que o daqueles que você ainda não leu. Falo por mim mesmo. Embora venha lendo muito ao longo de mais de trinta anos, tenho enormes falhas no meu currículo literário. “Guerra & Paz”? Não li. “Irmãos Karamazov”? Também não. E não pense que minhas ausências se limitam aos grandes autores russos — citei esses dois porque foram os que primeiro me vieram à cabeça. Fato é que a vida é curta demais para se ler tudo o que se precisa ou que se quer; inclusive para quem dedica a isso todos os seus dias, abrindo mão de coisas de menor importância, como o convívio social, a prática de atividades a céu aberto ou mesmo de sexo.

O que nos leva à pergunta: com tantos livros indispensáveis ainda não lidos, por que ainda se escrevem outros? Todos os assuntos relevantes já foram abordados de todos os pontos de vista possíveis, nos mais diferentes gêneros e estilos. Apreciadores da alta literatura se verão tão bem contemplados quanto os que lêem só para passar o tempo, e sem precisarem abrir nenhuma publicação com menos de trinta anos — para ficar mais ou menos no período que compreende minha vida de leitor. Então, repito, por que alguém escreve um livro hoje em dia? Por que eu tinha que ser um desses idiotas?

A dúvida me acompanhou a cada letra digitada no processo de escrita do meu primeiro livro. Me fez jogar fora sua primeira versão — com mais de sessenta páginas —, mas não foi capaz de me impedir de recomeçar do zero e ir até o fim. Me fez ler o produto final e torcer nariz para ele, me fez dar alguns tapas no texto, em busca de melhorá-lo, mas não me impediu de procurar uma editora. Quando, por fim, encontrei interessados em levar “Quem Vai Ficar Com Morrissey?” às livrarias, a dúvida, mais uma vez, me fez hesitar antes de concordar com a publicação. Porém falhou em impedir minha mão trêmula de rabiscar meu nome no contrato.

Depois de publicado, “Quem Vai Ficar Com Morrissey?” ainda não era à prova da minha dúvida.  Pensava nas pessoas a lê-lo achando-o uma merda, e me preparava para o massacre da crítica — ao menos da pequena parte dela que se interessasse pelo livro. A atenção despertada pela minha estreia literária, como esperado, não foi tanta. As resenhas, todavia, eram em sua maioria elogiosas.  Mais animadoras ainda que elas foram as mensagens dos leitores, falando sobre como gostaram e se identificaram com o livro, como foi importante para eles. Esses contatos fizeram a dúvida dar um tempo. Todos aqueles livros muito mais importantes continuavam não lidos, mas o meu, pequeno e despretensioso, talvez não fosse assim, tão inútil.

Em seguida, a dúvida se transformou em certeza. Não de que o meu livro seja imprescindível, ao contrário. A certeza é de que “Quem Vai Ficar Com Morrissey?” tem falhas, de que não é o melhor que eu posso escrever. Até em função disso, evito relê-lo. Outra certeza é de que, bom ou ruim, sua primeira edição já está praticamente esgotada; quase duas mil pessoas já o leram, e não tenho mais o que fazer com relação a ele. Meu único poder é sobre minha obra futura. Escrevendo meu segundo livro, aliás, novamente a dúvida: para que fazê-lo? Estaria eu querendo me desculpar por ter escrito um livro duvidoso? E se o novo fosse igualmente questionável? Na dúvida, vou escrevendo. Ou ia. 

Hoje, como ocasionalmente, fiz uma busca por resenhas de “Quem Vai Ficar Com Morrissey?” no Google. Sem muita esperança de encontrar algo, me surpreendi ao ver uma crítica postada recentemente, em julho, num blog literário. Seu autor mostrou estar longe de ser meu fã. Num texto um pouco menor do que este, ressaltou a banalidade da minha história, a pobreza do meu estilo, a falta de personalidade do meu protagonista, a heresia, enfim, de ter usado o santo nome de Morrissey em vão. Alegando já ter passado da página 200, o sujeito não julgou necessário terminar a leitura do livro para condená-lo. 

Disse que me preparei para as críticas, mas isso foi em outro momento. Tanto tempo após o lançamento do livro, a guarda já baixa, o blogueiro me atingiu em cheio. Principalmente porque muitas das coisas ditas por ele, com as quais concordo, reativaram todos os meus questionamentos. Prova disso é que, ao invés de avançar no livro que atualmente escrevo, dedico este tempo a discorrer sobre a validade de prosseguir. 

Mas já adianto: a interrupção é só por hoje. Em alguns meses, espero, lançarei mais um livro absolutamente dispensável. Por mais que hoje domine melhor a estrutura narrativa e esteja atento para não repetir as falhas que identifico em “Quem Vai Ficar Com Morrissey?”, não posso garantir que este meu segundo livro será irrepreensível. Se posso assegurar algo, é que o responsável por essa resenha dificilmente vai gostar. Mais provável é que nem leia. 

E por que, mesmo assim, escrevo? Porque não tenho escolha. Não escrevo para mudar a história da literatura. Não escrevo para agradar os leitores. Não escrevo para calar a boca dos críticos. Não escrevo em busca de fama, nem de sucesso. Escrevo porque as palavras dentro de mim exigem, e, diante do poder delas, as dúvidas são muito pequenas. 

sexta-feira, 12 de junho de 2015

Sexta no Cinema

Alguns diriam que é a imaturidade, mas eu destaco como a principal coisa que não mudou em mim desde a infância o fato de ter as sextas-feiras como dia preferido. Sei que não estou sozinho nesta preferência, como qualquer olhada desatenta pelas timelines das redes sociais pode comprovar. Mas duvido que a maioria dos que postam coisas como aquele meme simpático da foca dentro de uma cesta (conselhando concentrar-se no sexto dia), tenha essa predileção antiga como a minha. Por volta de 1984, 1985, 1986, o pequeno Leandro ansiava pela sexta da mesma forma que o hoje faz o quase quarentão. Já naquela época, eu preferia a expectativa (a sexta) à consumação (fim de semana).

Menos conscientemente que hoje, temia a frustração consequente ou, as projeções otimistas se cumprindo, que o sábado e o domingo passassem muito rápido – como  em geral passam. As sextas, porém, contêm encantos para além da função de antessala. Hoje, tem a cerveja do fim do dia, o cinema, o jantar com a namorada, o começo de uma viagem ou, simplesmente, o prazer da descompressão. Na época, os prazeres eram outros, ainda mais singelos e menos variados: para mim, menino de classe média baixa, provinham da TV. Eram tempos pré cabo, pré Netflix, pré Now, então o cardápio não chegava à metade da primeira página. Era só Globo, Bandeirantes, Record, Cultura, Manchete, Gazeta e SBT.

E era na sexta que a emissora do Seu Sílvio servia meus pratos preferidos: uma sessão dupla, iniciada com um episódio da incrível série de ação “Esquadrão Classe A” (com B.A/Mr. T, um dos maiores ícones daquela década), que precedia adequadamente o prato principal: sangue. Faixa dedicada basicamente a filmes de terror, “Sexta no Cinema” sempre era garantia de sono perdido para mim e meu irmão. A abertura -- um plágio descarado da vinheta da 20th Century Fox -- encontrava a mim e meu irmão sentados diante da TV cobertos com uma manta à espera dos (já então) clássicos filmes da produtora inglesa Hammer, cultuada pelos fãs do gênero, como vim saber apenas anos depois.

Meu irmão, mais velho e mais medroso, levava a manta aos olhos a cada cena mais sanguinolenta. Já eu me deliciava, quase tanto quanto Drácula parecia ao morder os belos pescoços das donzelas vitorianas. Graças àquele Drácula, me tornei fã do personagem, que passei a ler em histórias em quadrinhos e sobre quem com frequência escrevia, aproveitando o pretexto de redações escolares. Qualquer tema “Dia das Mães” bastava para eu meter lá o elegante sanguessuga, que se alternava com outros colegas de Hammer e de “Sexta no Cinema”, como a Múmia, Frankenstein ou o Lobisomem. 

Ontem, quando me disseram que morrera o ator que interpretara Saruman, o mago “do mal” d’”O Senhor dos Anéis”, eu lamentei. Gosto da trilogia baseada nos livros de Tolkien. Mas fiquei triste mesmo ao me dar conta de que o alterego do Saruman era também o do meu antigo conhecido de infância.


Ia escrever algo ontem mesmo, mas quis a falta de tempo (alguns chamam de destino) que minha pequena homenagem ficasse para hoje, uma sexta. Christopher Lee morreu, mas, como até uma criança sabe (eu sabia), Drácula é imortal.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

O futebol em tempos de Playstation

O uniforme de um time de futebol é, como se sabe, muito mais do que uma simples camisa. As cores da estampa e o brasão bordado no lado esquerdo do peito – não à toa, onde o imaginário popular diz habitar o coração – contam histórias de conquistas, de derrotas, de dedicação, de perseverança, de nobreza. O manto sagrado do clube do coração é depositário também de histórias menores, particulares, mas nem por isso menos importantes. Conta a mágica primeira partida que você viu no estádio, ao lado do avó. Conta também, por meio de pequenos pontos queimados, a vez em que você foi atingido, de leve, pelas faíscas dos fogos da sua própria torcida – nesse caso, não foi você, fui eu mesmo. 

As cores do seu time contam mais. Todos, sem exceção, enfrentam períodos de vacas magras, em que seus torcedores se tornam alvo da tiração de sarro dos concorrentes – uma das maiores (des)graças de se torcer. Sua capacidade de manter a esportiva diante das piadas e a fé nas agremiações, ignorando a falta de sorte, de jogadores decentes e de títulos, diz muito a seu respeito. Trata-se de uma declaração de princípios. Não quero dizer, com isso, que não haja muito mal caráter entre torcedores inabaláveis; apenas que, em ao menos uma pequena parte desse mal caráter, habitam sentimentos louváveis. Manter-se fiel a um clube desclassificado ou rebaixado é como não dar as costas a um amigo que está doente ou que foi à falência. Em última análise, manter-se fiel a um time é manter-se fiel a si mesmo, aos próprios princípios, mostrar que os tem. É dizer que todos os sentimentos evocados pelo seu distintivo, todas as histórias contadas por ele –- da primeira ida ao estádio com o avô ao “fogo amigo”–- valem muito mais do que uma mariola. Ou uma taça de Champions League, cuja cotação, para mim, é mais ou menos a mesma. 

Calma, não sou louco. Sei que a Champions é o maior torneio de clubes do mundo, disputado pelas equipes mais famosas, constituídas pelos esquadrões mais caros do planeta, cujos astros são os mais bem remunerados do universo. Mas tudo isso pouco me importa. Por acaso, algum desses times é o meu? Por acaso, algum desses times é o seu? Se você respondeu “sim, é”, suponho que seja europeu. Mas, se você respondeu afirmativamente e é brasileiro, me desculpe: não tenho muito respeito por você. 

No último sábado, acompanhado de minha namorada e um grupo de amigos, fui a um bar na Vila Madalena assistir à final do torneio: o Juventus enfrentaria o favoritíssimo Barcelona. Apesar do time espanhol ser defendido por um dos maiores ídolos da história do meu Santos, optei por torcer pela também alvinegra Juve, com paradoxais votos para que o Neymar jogasse bem e marcasse. Aí está a grande vantagem de não ter envolvimento emocional com uma partida: você pode simplesmente curtir o jogo, tomar umas cervejas e rir, sem se importar muito com quem vença. Era o que queríamos fazer. O problema é que escolhemos o lugar errado para isso. Ao chegar lá, dei de cara com uma faixa enorme anunciando o lugar como o ponto de encontro da torcida barcelonense. (Como era escrita em catalão e eu não entendo lhufas do idioma, a tradução ficou subentendida.) Pelas mesas, invariáveis camisas azul-grená e animada cantoria (em espanhol e catalão) de hinos e gritos de guerra. As feições denunciavam a origem de grande parte dos presentes – afinal, gringo tem cara de gringo –, mas muitas das camisas e cachecóis adornavam corpos e pescoços brasileiros. “Cara, como eles aprenderam a cantar esses hinos?”, perguntamos uns aos outros. 

Nenhum problema, claro, em usar a camisa de um time que não seja o seu de coração: eu mesmo envergava as listras pretas e brancas do Central, simpático time da cidade pernambucana de onde vem minha família, não tão coincidentemente, bastante parecida com a da Juventus. Mas, na mesa atrás da mim, ouvi gritos histéricos a cada investida do Barcelona, contrapostos a vaias a cada contra-ataque rival. Pareciam vir de barcelonenses nativos, mas, ao me virar para conferir, vi que vinham de barcelonenses de ocasião. Eram manifestações esgoeladas, desproporcionais, injustificadas, causadoras da mais profunda vergonha alheia. Há quantos 5 anos que aquele pessoal de 20 “torcia” para o Barcelona? Que história aquele brasão e aquelas cores contavam para eles? 

Outro dia, vi na TV uma matéria que mostrava um menino com uma camisa do Santos em meio à torcida do Barcelona, no Camp Nou. O garoto se esforçava para chamar a atenção de Neymar, mas só conseguiu mesmo atrair a reportagem da ESPN Brasil, que lhe perguntou: 

— Você torce para o Santos?
— Não, só vim com a camisa para chamar a atenção do Neymar.
— E para que time você torce no Brasil?
— Para nenhum. Os times daqui (Europa) vem e levam todos os nossos craques...

O menino tem razão, nossos principais jogadores não estão aqui. E é isso que importa para sua geração, que tem no vídeo game (Playstation, Xbox) o principal contato com o futebol. Torcem para jogadores individualmente, para o time que estiver melhor. No momento é o Barcelona, antes era o Real Madrid, antes o Bayern de Munique – todos eles, não por acaso, empregadores de craques de primeira grandeza. Aquele papo de “jogue o que jogar” ou “para o que der e vier”, bastante comum nos hinos dos clubes mais tradicionais do Brasil, não faz o menor sentido para eles. “Jogue o que jogar”, pensam, “desde que jogue bem”. Vou além. Talvez não de forma tão elaborada, a garotada ache que, se o Neymar, mais que um ídolo um modelo de sucesso, deixou para trás seu país e seu “time do coração”, o que há de errado neles fazerem o mesmo? 

Voltando ao bar, no caminho para o banheiro, alguém tocou meu ombro. Ao me virar, ao contrário de um possível conhecido, encontrei um sujeito aparentando ser um pouco mais velho do que eu. Vestia o uniforme quase onipresente do Barça e fez cara feia para minha camisa listrada em preto e branco. “Só pode ser espanhol”, pensei. Por isso, ao invés de responder verbalmente, apenas apontei para o distintivo do Central, como quem diz: “Não é o Juventus, pô. E se fosse, qual o problema?” Após usar o banheiro, na volta para a mesa, passei novamente pelo “espanhol”. Falava para outro, em português perfeito: “Saudade do David Villa, hein?” Conclui que não é só a Geração Playstation que tem problemas com fidelidade futebolística. No caso do meu contemporâneo, a coisa é mais grave. O comportamento “Barcelona desde criancinha” do sujeito fazia dele não só um vira-casaca –- já que, sem dúvida, seu envolvimento prévio com o futebol, ao contrário do dos garotos, ia muito além das partidas de FIFA 2015. Sua repreensão ao meu uniforme alvinegro aludiu a outro momento vivido por mim há cerca de um mês, que, além da intolerância, teve em comum com aquele uma camiseta. 

Corria no parque quando ouvi um senhor por quem passei gritar: “Corrupto!” Achei aquilo pateticamente engraçado. Continuei a corrida imaginando que o xingamento tivesse a ver com a inevitável relação que muitos fazem entre o PT e o vermelho (cor da minha camiseta) e dos dois à corrupção. Depois, acabado meu treino, me dei conta de que, além de vermelha, minha camiseta tinha motivos russos, sendo aquele país o tema de uma prova de que participei. Enquanto escrevia sobre o ocorrido – um pecado dos tempos modernos do qual me declaro culpado – passou por mim novamente o mesmo senhor. “Isso! Fórum da corregedoria, para prender CORRUPTO!”, disse, a mão fechada ao lado do ouvido simulando um telefone. Perguntei se estava falando comigo, e ele retrucou que não, estava “no telefone”. Mais do que a provável maluquice do idoso, o episódio atestava a insanidade do nosso tempo. A mesma intolerância que comprovei semanas depois na final da Champions League, que todos comprovamos esses dias com a bizarra reação ao comercial d’O Boticário (o que mostra gente se abraçando, sabe?). Não importa a camisa que se use ou a causa que se defenda: “se não for a minha, não é a certa”.

Este texto começou a ser escrito já durante o jogo, antes do último gol, o do Neymar — pelo qual, lembremos do paradoxo, eu torcia. Muitas das ideias aqui expostas foram expressas pela primeira vez com a voz enrolada e a indignação típica dos bêbados, que só aumentava na medida em que as ilegítimas comemorações se intensificavam. Minutos depois, quando boa parte dos “catalães” já se amontoava na fila para pagar, quando ninguém mais prestava atenção à televisão, pedi para o garçom mudar de canal. Para o jogo do ex-time do artilheiro da Champions, aquele que sempre será o meu, que disputa o Campeonato Brasileiro, mesmo. Mais um desempenho medonho, mais um empate cedido de forma displicente, mais pontos perdidos dentro de casa e a queda de várias posições na tabela de classificação. Ao contrário da maioria dos presentes, eu não tinha muito o que comemorar. 

PS: A foto que ilustra este texto é da época em que eu torcia para o time em que o Neymar jogava. Já o resultado (4x0), seu desempenho individual na partida e a confirmação de que ele já estava negociado com o Barcelona indicam que ele, não. 



sexta-feira, 29 de maio de 2015

Fodam-se os carros


Estava eu ontem, voltando para casa no trânsito paulistano, que ignora horários e insiste em ser complicado mais de duas horas depois da hora do rush – por aqui, são todas as 24. Numa das estreitas ruas da Vila Olímpia, um acesso à Avenida JK, eu tentava encaixar o meu entre os outros carros, esperando o que estava à frente evoluir para entrar em seguida. Nisso, vejo a motorista do carro atrás daquele de cara feia, praguejando algo que o vidro levantado não me permitia ouvir. Baixei e ela gritou que "é um de cada vez, não tá vendo?" Nem respondi. Ela passou e, no caminho, deu uma raspadinha no meu carro. Então eu disse, alto, mas não de raiva, só para ela ouvir: "Quem não tá vendo parece que é você". Ergueu o vidro e continuou seu caminho, cheia de razão.

Metros depois, já estava virando na avenida quando o motorista do carro ao lado do meu, também virando, não me viu. Resultado: uma batida bem mais séria que a de minutos antes. Depois de dar um grito impróprio, baixei o vidro e vi que o outro saía do seu carro. De terno e gravata e cabelo branco, tratava-se de um executivo e seu carro era bem mais caro que o meu. “Como você quer fazer?”, perguntei. “Vamos chamar a polícia”, respondeu.

Enquanto ele ligava, olhei meu carro, com o para-choque quebrado, e o dele, com a lateral arranhada. Propus: "Vamos fazer assim? Você cuida do seu, eu do meu... Afinal os dois somos igualmente culpados", completei, já imaginando que ele rejeitaria a sugestão. Mas não. "Quer saber? Nessas horas, o importante é que ninguém se machucou. Fodam-se os carros", disse ele simpático, num sotaque que denunciava sua origem estrangeira. Apertamos as mãos e cada um foi para o seu lado. Fiquei pensando: “Ótima oportunidade para criticar os brasileiros (a mulher) e elogiar os estrangeiros, não?” Não.

Sou brasileiro, cacete. Se eu não fosse civilizado, jamais descobriria que o gringo também era. Imbecilidade não é questão de nacionalidade, apesar de inúmeros compatriotas – entre eles, os que adotam o discurso “os americanos não muito melhores” – fazerem questão de demonstrar o contrário.


Para minha amiga nervosinha, apenas um conselho: dirija com mais calma, com mais atenção ao que importa. Fodam-se os carros.


terça-feira, 26 de maio de 2015

Se hoje fosse feriado


Se hoje fosse feriado, não haveria trânsito rumo às praias. As ruas que levam aos cemitérios, por outro lado, estariam intransitáveis. Mas o público dos carros não seriam viúvas e órfãos levando flores, como no Dia de Finados. Os que iriam aos cemitérios o fariam para brincar, de ler as lápides e imaginar quem seriam aquelas pessoas, como viveriam, onde estariam.
Haveria também os que prefeririam ficar em casa, lendo poesia, vendo filmes antigos ou ouvindo discos. Do New York Dolls, da Patti Smith, do Lou Reed, do T. Rex ou até mesmo do padroeiro do dia, que de santo não tem nada, graças a Deus. Os louvores dirigidos a ele, aliás, não vão para o céu, que sabe o quanto ele continua infeliz, mesmo depois de perdoar Jesus. Também não vão para o inferno, onde, depois de garantir um lugar para ele e seus amigos, Satã rejeitou sua alma.
Se hoje fosse feriado, seria proibido comer carne, mas não apenas vermelha, como numa Sexta-Feira Santa. Nesta sexta (que, lembremos, nada tem de santa), a carne a ser comida é nenhuma. Carne, ele nos ensina, é assassinato.
Hoje, mesmo sem ser feriado, é dia de ir para aquele clube, onde você pode encontrar quem realmente goste de você. Mas você não precisa ir sozinho, ficar sozinho e assim ir embora, nem ir para casa e chorar e querer morrer. Hoje as coisas podem ser diferentes, você pode conseguir o que quer. (Deus sabe, seria a primeira vez.)
PS.: Aproveite, Moz. Daqui a pouco não vai ser mais seu aniversário.
(O hoje a que se refere o texto, na verdade foi a última sexta.Texto publicado originalmente na fanpage do meu livro Quem Vai Ficar Com Morrissey?)

domingo, 8 de março de 2015

(Un)happy Birthday


Acabo de chegar em casa. Passa da meia-noite. Tecnicamente, já é 8 de março. No meu calendário pessoal, a data não representa o dia das mulheres – ao menos não em primeiro lugar, como, a jukebox mental me lembrou, o Benito De Paula as coloca. Esta data marca o primeiro ano do lançamento do meu livro de estreia, responsável por popularizar (tanto quanto possível para um livro independente) a própria jukebox mental, a reboque da história da divisão de bens indivisíveis do casal Fernando e Lívia.

"Quem Vai Ficar Com Morrissey?" faz aniversário, e, parafraseando o pior da publicidade, quem ganha o presente sou eu. Foi um ano singular. Doze meses em que fiz amigos e conquistei fãs (além dos meus pais, veja você), alguns deles, inclusive, nem são (ou não eram) fãs do Morrissey e dos Smiths. Esta, aliás, talvez seja uma das minhas maiores alegrias com este livro, como já destaquei em algumas das entrevistas que dei nesse período: mesmo com uma história baseada em experiências e gostos extremamente pessoais, ter conseguido gerar identificação com gente de um perfil tão diferente do meu. Algum escritor russo (não lembro qual) disse: "Se quiser ser universal, fale sobre sua aldeia". Foi isso que eu fiz e o que, guardadas as proporções, acho que consegui ser.

Obrigado a você, que leu o livro. Obrigado a você, que ainda vai ler. Obrigado aos amigos da Edições Ideal, principalmente ao Viegas, à Maria, ao Felipe e à Laura, que acreditaram no livro e o tornaram possível. Obrigado ao Charles Franco, que me apresentou ao Viegas. Obrigado ao amigo Pedro Gonçalves, que emprestou seu talento e sensibilidade para mais que um prefácio, uma ode ao culto "smithiano". Obrigado ao grande Butcher Billy, autor da arte icônica que estampa a capa (pela qual, sempre disse, espero que meu livro seja julgado). Obrigado ao filho da puta que me atropelou, digo, que atropelou o Fernando e, sem querer, o apresentou ao Morrissey.


Aliás, era para ter encontrado com Ele hoje. Ou quase: entre os três covers que o representam, o Roberto, cantor carioca que conheci há um ano, no evento de lançamento, mais um dos amigos conquistados graças ao livro. Era para eu ter ido a uma festa tributo ao Morrissey, em Santo André, mas não deu. Trabalhando até agora, infelizmente, não pude comemorar o 1º ano do livro como gostaria. Mas, de certa forma, eu estive lá: a festa sorteou um exemplar de "Quem Vai Ficar Com Morrissey?". Com quem quer que tenha ficado, tenho certeza de que ficou em boas mãos.