quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Publicidade x Futebol

Comparações entre a publicidade e o futebol não são a coisa mais nova que existe. Não sendo publicitário, você talvez não saiba disso. Mas, como alguém que às vezes não muda de canal durante o break, deve saber que, em se tratando de publicidade, é cada vez mais difícil ver algo realmente novo. Se você acompanha meus textos com certa freqüência, deve saber também que trabalho na área - da publicidade: falando num esporte que tem a grande e a pequena, é preciso ser claro. Por isso, não leve a mal se eu traçar mais um paralelo entre o meu campo e os de futebol. Originalidade não é nosso forte. Fazendo absoluta questão disso, não tem problema: pode acessar outro site. Já estou acostumado com gente que não quer ver o que eu faço.

Devem haver outras metáforas possíveis para substituir a do jogador reserva chamado pelo técnico nos instantes finais da partida com a obrigação de reverter um placar adverso, mas, me desculpe: tenho que terminar este texto agora (coincidentemente, também nos últimos minutos), e não posso perder tempo procurando. Francamente, se tivesse tempo para pensar, apelaria para o bretão na mesma. Se você tivesse que descrever uma situação em que é chamado para um freelance de três dias, entre o natal e o ano novo, aposto que faria igual.

Estou desempregado – o que, ainda seguindo a absurda linha de raciocínio de acordo com a qual você lê meus textos regularmente, você já sabe. Por isso, voltando à analogia do suplente, no finzinho do ano, eu apenas aguardava o apito do árbitro. Com o uniforme limpinho, eu me dirigiria ao vestiário. Sim, meu time perderia, eu ouviria o sermão do professor, mas, não tendo participado do jogo, não vestiria a carapuça. Até parece. Véspera de feriado, um amigo me liga e oferece o freela de que já falei, para cobrir outros redatores, de folga durante as festas. A questão é que (tome futebol!) não era só para cumprir tabela: haveria campanhas a ser feitas – mesmo porque, do contrário, não haveria por que pagarem um freelance. Espírito natalino? Sendo o dono da agência judeu, acho difícil.

Antes de responder se aceitava, confesso que titubeei. A grana não era nenhuma maravilha (já falei que o dono da agência é judeu?), talvez não valesse entrar numa fria dessas. Ainda mais se levasse em conta que, como muitos reservas, fazia tempo que eu não encostava na bola. Com viagem marcada para dia 27 (também conhecido como hoje), pensei seriamente em seguir o exemplo do Dinei, ex-Corinthians: numa semifinal de Paulistão, há poucos anos, o então semi-ex-jogador, na época na Portuguesa Santista, foi chamado pelo treinador ao final da partida e se negou a jogar. Disse que estava lá mais para dar moral ao resto do elenco, passar experiência... Por essas e outras, o sujeito é ídolo de todas as torcidas.

Não estou com a vida ganha como o craque do cabelo descolorido, então, comecei a me alongar assim que coloquei o telefone no gancho. Agora, aqui estou, fazendo companhia ao goleiro, que, aos 47 do etapa complementar, também tenta o cabeceio. Na cobrança do escanteio, a bola é alçada à área. Sobra para mim. Mato no peito e chuto. Se entrou? Também não sei. Mandamos o trabalho para o e-mail do diretor de criação (o judeu, sabe?), e só amanhã ele vai dizer o que achou. E o juiz já leva o apito em direção da boca...

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Jornalistas filhos da puta, pautas e a ameaça não cumprida de um trocadilho

"Jornalista é tudo filho da puta", disse o taxista, sem saber que os passageiros, meus amigos, eram todos justamente representantes dessa classe. "Menos jornalista esportivo, né?", o Costela tentava salvar pelo menos a reputação do seu caderno. "Principalmente jornalista esportivo", sublinhou o tiozinho, para não deixar dúvidas quanto ao seu ponto de vista. O silêncio que se seguiu não foi quebrado nem pelo contumaz agradecimento ao fim da corrida. Curiosamente, também não rolou gorjeta.

Mesmo tendo muitos periodistas no meu ciclo de amizades, concordo com o motorista -- algum engraçadinho dirá que é exatamente por isso. A minha opinião nada tem a ver com o fato da imprensa, no geral, ser tendenciosa e servir a interesses corporativos e políticos, em detrimento da verdade. (Até porque, que moral teria eu, publicitário, para falar de profissionais vendidos?) A razão por que assino em baixo da contundente declaração do chofer é outra. É que a criatividade não parece ser pré-requisito para se trabalhar com jornalismo -- aquele mesmo engraçadinho dirá que nem com publicidade. É ridícula a quantidade de reedições das mesmas matérias a que somos submetidos sistematicamente. A escassez de pautas é uma calamidade pública. Causa gastrites, causa trânsito e, o mais grave, causa um tédio do caralho.

Chega o fim do ano e eu, caminhando para o décimo aniversário da minha formatura, ainda morro de medo do vestibular. Serei forçado a ver milhões de matérias referentes ao tema, em todos os canais de televisão e na maioria dos jornais e revistas. Como um remake de "Laranja Mecânica", vou ser torturado por uma infindável sequência de depoimentos chatos de adolescentes idem, falando sobre o nervosismo que antecede o teste -- tudo num português sofrível, matéria que deveria reprovar todos. Na sequência, especialistas também não muito brilhantes darão conselhos óbvios, rigorosamente os mesmos do tempo em que eu era vestibulando. Pedem calma e tranquilidade aos jovens, e eu, já deixando de ser um deles, não consigo seguir a recomendação e quase quebro a TV.

E o recheio do sanduíche de mortadela do Mercado Municipal? Qualquer um que possua uma televisão ou já tenha passado em frente a uma vitrine das Casas Bahia sabe que ele é mais generoso que a Madre Teresa de Calcutá -- até porque há quem diga que ela nem era tão generosa assim. Não entendo a necessidade de, semanalmente, algum veículo fazer uma matéria sobre as delícias do Mercadão. Domingo desses, tá lá você folheando o recém-comprado jornal quando é surpreendido ("surpreendido" é boa) por uma página inteira sobre a atração turística, ilustrada por apetitosas fotos do sanduba ou do pastel, outro best-seller do local, famoso por conter mais bacalhau do que todo o mar da Noruega. Os clichês que recheiam esses textos têm sua tradução visual na expressão de deleite do repórter televisivo após uma mordida em um dos colesterentos acepipes. De boca cheia, ele diz não ter palavras para falar do sabor. Eu também, para descrever o meu saco, mais recheado que o sanduíche e o pastel, juntos.

Saco cheio, aliás, lembra Papai Noel, que lembra os enfeites de natal nas ruas, cuja cobertura anual pelos canais de televisão me faz voltar ao início da frase. Nas semanas que antecedem o nascimento do Menino, somos premiados por seguidas reportagens mostrando fachadas de casas e prédios comerciais, cheias de luzes e cafonice. Prefeituras, empresas e pessoas comuns não medem esforços para embelezar a cidade. Mas, não importa o quanto se esforcem, não conseguem gerar declarações originais dos cidadãos que saem de casa só para ver os adornos: "Muito lindo, né?" "Ô", respondo eu.

Tem também as matérias sobre a Antártida, figurinhas fáceis dos globos-repórteres da vida, sempre mostrando as mesmas paisagens de quilômetros de neve e tédio. Alternam-se com especiais a respeito dos mecanismos da paixão no cérebro ("como e por que nos apaixonamos") e reportagens sobre os riscos da cirurgia de redução do estômago -- como o sério risco de não conseguir mais comer feijoada. Esses, ao lado de mais meia dúzia de outros temas, ocupam toda a imprensa que não se refira às notícias propriamente ditas. As notícias, por sinal, também não fazem jus ao seu sinônimo: definitivamente, não dá para dizer que a explosão de carros-bomba na Faixa de Gaza ou escândalos de corrupção no governo são "novas". Mas da falta de originalidade da vida, tudo bem, eu isento os jornalistas.

Nesse momento, no meio de tantas vozes imaginárias, ouço protestos de jornalistas. Dizem não ter culpa se o vestibular e o natal se repetem anualmente. Eu digo que têm. Para começar, o vestibular já se mostrou um método de triagem ultrapassado, e já se propuseram inúmeras alternativas a ele, como a avaliação do histórico do aluno. Assim, se o teste continua a ser aplicado, só pode ser por influência das poderosas corporações de comunicação: sem vestibular, o que elas vão colocar no lugar das reportagens sobre o assunto, já previstas nos cronogramas de todos os anos? Quanto ao natal, certo, a culpa por ele propriamente dito não é da imprensa -- um é um pouco mais antigo que a outra --, mas os enfeites pentelhos são. Sem câmeras por perto, duvido que os moradores gastariam tanto dinheiro e tempo para decorar suas casas -- afinal, a gentalha só faz isso para aparecer na TV. Se a mídia não divulgasse essa decoração, não se formariam filas de imbecis em frente às casas e prédios, e o trânsito, já fodido nessa época do ano, seria menos ruim.

E o Mercado Municipal e a Antártida, hein, vozes de jornalistas imaginários? Vão dizer que os pingüins e os sanduíches de mortadela também requerem cobertura assídua? Se não tivesse tanto bafafá em torno do Mercadão, certamente ele não viveria tão cheio de turistas, e eu já teria ido lá -- a maioria das pessoas que me disseram já ter ido lá não mora em São Paulo. Quanto ao continente gelado, deixem os pingüins em paz. O único que conheço que gosta de aparecer na TV é o Pingolino, da Turma do Pica-Pau.

Os jornalistas imaginários não se dão por vencidos. Agora, estão me dizendo que a culpa das pautas é dos editores, não deles, meros subalternos. Alegam que, chegando ao poder, vão sugerir coisas novas. A-ham. Era o que os editores de hoje diziam, quando, como focas, arrotavam sanduíches de mortadela e pastéis de bacalhau. Vai ver, no meio do caminho, o desejo de inovar se transformou em revanchismo, e eles resolveram fazer as novas gerações passarem pelo mesmo, fazendo as mesmas reportagens nauseantes (não só pelo excesso de mortadela e bacalhau).

Junto com as novas levas de periodistas, sofrem também as novas gerações de telespectadores e leitores. E mais ainda as antigas: a tortura se intensifica ano a ano, com a repetição das mesmíssimas matérias. Agora, imaginando que o taxista do começo do texto tivesse uns sessenta, "jornalista é tudo filho da puta", vindo dele, é quase um elogio.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Correndo atrás de um sonho


Todos os dias, pessoas acordam e vão correr. Por óbvia que pareça a ordem dos verbos, no caso dele, não podiam ser conjugados nessa sequência. Horas antes do despertador tocar, já estava fazendo alongamentos. De manhãzinha, os esportistas madrugadores já o encontravam, e ele estava longe de ser um deles. Tanto que, para poder dormir mais, fazia faculdade num daqueles cursos de aprendizado durante o sono -- e talvez por isso tivesse certa dificuldade em conseguir emprego.

Como todo sonâmbulo, ele não se dava conta do que fazia durante o sono, mas tentava racionalizar as estranhas implicações diurnas de seu hábito inconsciente. Sempre acordava com os músculos doloridos, principalmente os das pernas, e imaginava que a culpa fosse daquele "colchão de merda, preciso trocar". O velho Trorion D28 parecia também ser o responsável pelos sucessivos pesadelos que o faziam acordar suado e cansado. Pesadelos tão horríveis que um mecanismo de defesa em sua mente (dia desses, leu metade de uma reportagem sobre isso na "Seleções" antes de cair no sono) devia impedi-lo de se lembrar deles. O fato de comer como um porco vindo do trabalho nas docas (vai dizer que nunca viu um porco estivador) e não engordar proporcionalmente podia ser explicado por um "metabolismo rápido" -- não que ele fizesse idéia do que fosse isso, já que sempre faltava às aulas da faculdade para correr. Já os cumprimentos e sorrisos que recebia esporadicamente de pessoas que nunca vira (sim, um sonâmbulo não é capaz de articular sentenças muito complexas, mas essa habilidade é totalmente dispensável para se fazer amizades entre praticantes de jogging e frequentadores de academias) era porque deviam confundi-lo com outra pessoa. Afinal, albinos de cabelo tingido de roxo são muito comuns.

Só não pôde entender quando, numa manhã, acordou com as pernas depiladas e cobertas de vaselina. Mas aquilo ele preferiu não entender.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Consciência Bronzeada


Muitas pessoas têm a falsa impressão de que, quando se está desempregado, todo dia é feriado. Os disponíveis no mercado, os entre-empregos, os que estão analisando propostas, os (coloque aqui seu eufemismo preferido) sem dúvida têm mais folgas que a média. Porém, com as contas ignorando o fato de que não há mais salário para pagá-las, os dias sem trabalho não são exatamente datas comemorativas. Mas nem por isso nós, pessoas à procura de novos horizontes, deixamos de festejar os feriados de fato, fugazes momentos de igualdade em que todos são vagabundos, e os leitores dos classificados de emprego podem deixar de lado a culpa por, temporariamente, não contribuir para o progresso da nossa Gloriosa Nação. Cujos governantes, ao que parece, devem ter se dado conta desse fato. Já se perguntou por que, no Brasil, onde os feriados não são poucos, a cada dia surge um novo? Diante da impossibilidade de gerar vagas suficientes para os milhares que disputam subempregos à tapa (não, ainda não estou entre eles), o Estado resolveu ajuda-los a esquecer sua incomoda condição, momentaneamente que seja. Panis et circenses repaginado, nessas datas, não faltam grandiosos shows, na Paulista, no centro, nas periferias. Não tenha dúvida: nas platéias, nós somos a maioria -- o "nós" aqui é puramente solidário; Grupo Revelação, KLB ou Jeito Moleque não fazem parte das minhas preferências.

Uma boa técnica para disfarçar as reais intenções por trás dos novos feriados é escolher algo nobre para celebrar. Pode ser uma batalha antiga em que se defenderam interesses vitais para a construção do nosso Grande País. O que é enforcar um diazinho de trabalho em memória dos que morreram por nós? Aqui o governo pode utilizar de uma incompetência para maquiar outra: como ninguém estudou a Revolução de 1932, nem sabe do que se trata, não vai se espantar se, de repente, surgir um feriado dedicado a ela, como aconteceu há poucos anos aqui em São Paulo. Como o Brasil (felizmente) não tem muitas guerras no currículo, a fonte é escassa. Novamente se aproveitando da precariedade do ensino, poderiam tranquilamente inventar mais um remoto conflito que pouca gente chiaria, mas não é necessário queimar esse cartucho. Perdendo terreno em todo o mundo, o Vaticano está doido para manter sua superioridade no país, e não tarda a canonizar uns quinze santos brasileiros; todos, claro, passíveis de feriado. Ainda assim, o processo de canonização, mesmo feito de forma "express", pode levar anos. Mas isso também não chega a ser um problema: para a sorte dos manda-chuvas, tá assim de causas pelas quais vale passar o dia tomando cerveja, todas insuspeitas. O novíssimo Dia da Consciência Negra (desde já forte concorrente ao título de feriado com o nome mais pomposo) é um excelente exemplo.

Quem questiona as injustiças a que o povo negro foi submetido ao longo dos anos? No maior país escravista da história e, consequentemente, um dos maiores países negros do mundo, os pretos (desculpem, amigos, acho essa coisa de "afro-descentes" muito babaca) sempre foram, a partir da sua libertação, cidadãos de segunda classe, competindo em desigualdade por tudo: emprego, escola, respeito. Leis são criadas e alteradas a cada dia para coibir abusos discriminatórios, mas eles ainda são frequentes. (Prepare-se: vai ser a milionésima vez que você vai ouvir ler a próxima frase.) No Brasil, o preconceito racial é velado. Uma cretinice incrustada de tal forma no inconsciente coletivo nacional que não é difícil notar preconceito inclusive de negros para consigo mesmo, encerrado, por exemplo, na auto-definição de alguém negro como "moreno". Também é comum ouvir pessoas mestiças (leia-se quase todo mundo por aqui) refutarem uma ascendência que, como diz o samba, o cabelo não nega. Acho interessante a preocupação da atual administração em fazer justiça à população negra -- como já foi dito, um gigantesco percentual da massa brasileira --, mas acho que, como quase todos os assuntos, não tratam este da forma adequada. As quotas universitárias, se levassem em consideração a pobreza ao invés da etnia, seriam logicamente mais justas, favorecendo a todos os que delas de fato necessitassem, brancos, negros, índios, mamelucos, cafuzos e pardos. Ou só existem pobres negros? Claro, o incremento no já criticado ensino público de base traria resultados mais efetivos nesse caso, mas... Há também um ministério (ou uma secretaria, ou um ministério que deveria ser uma secretaria) teoricamente criado para promover a igualdade racial. Pois bem, entregaram a pasta para uma racista descontrolada, cujas declarações, ridículas se vindas de alguém num boteco, são absolutamente inaceitáveis para uma ministra de Estado. Faz tempo que não ouço falar da moça, cujo caso deve ter sido abafado. (Não seriam loucos de demiti-la: imagina o processo.)

Apesar de ter algumas restrições quanto à criação excessiva de feriados, acho importante termos datas em que determinados temas recebam maior atenção -- obviamente, o preconceito racial não pode ser dabatido e combatido somente no Dia da Consciência Negra. Seguindo a mesma linha de manifestação da auto-estima de uma minoria, não ficarei espantado se o Dia do Orgulho Gay for, em breve, um desses numerozinhos em vermelho (ou, quem sabe, até em pink) no calendário. A aprovação desse feriado no congresso vai ser um pouco mais polêmica, mas não duvido que aconteça. E, quando acontecer, que aprovem uma data próxima a outro feriado, como é o caso deste e o clássico 15 de Novembro. Assim, com as pontes, quem está fora do mercado de trabalho e quem está dentro dele podem passar mais dias em feliz comunhão. E eu, seja em qual dos dois grupos estiver, poderei ficar mais tempo na praia, como fiz agora. Aliás, esse feriado serviu para tornar-me ainda mais solidário à causa negra. Nunca estive tão negão.

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Quem vai ficar com Morrissey?




Os livros, cada um levou os seus: era fácil saber o que era de quem, e não só pelos nomes escritos na primeira página -- Isabel tinha um gosto secreto por "Sabrina" que Luiz Carlos, embora entendesse ("ok, todos têm seu lado gentalha"), jamais compartilharia. Os móveis, concordaram que ela ficaria com todos: afinal, na casa da mãe, onde ficaria por um tempo, ele não precisaria de nada -- o fato de ter sido ela quem comprara todos era só um detalhe. A samambaia também podia ficar com ela: o único verde que lhe interessava era o do Parque Antártica. Enfim, a divisão das coisas, estatisticamente a maior fonte de brigas entre ex-casais, parecia que ia deixar este na menor fatia dos gráficos pizza. Pelos menos, assim pensava Isabel até atender a campainha naquela tarde de sábado.

"Quem vai ficar com o Morrissey?", disse com tom grave o Luiz, vestindo a camiseta do "Meat Is Murder". (E não que estivesse especialmente vestido para a ocasião; aquele soldado da capa do disco estava para ele como a marca na cabeça para o Gorbachev -- os amigos quase não o reconheciam sem ele.) Tentando ignorar as cervejas a mais que pareciam ter trazido o rapaz até sua casa, Isabel articulou uma resposta à altura da pergunta do ex: "Hein?" Como a estampa da sua camiseta sugeria, ele estava pronto para a guerra."Vim discutir numa boa, mas saiba que estou disposto a envolver meu advogado." Por "meu advogado", ela entendia o Peçanha, um bebum que, junto com o Luiz, a forçava a sair de casa toda vez que passava jogo do Palmeiras na TV, incapaz de defender sequer a teoria de que a Terra é redonda.

"Você ficou com o Morrissey, Luiz. Você levou todos os seus discos, lembra?" -- a palavra "discos" dita com o desprezo de quem não entendia como alguém, em tempos de iPod, podia ainda comprar LPs. Que levasse aquela tralha: todas as bandas de que também gostava, Smiths e Morrissey solo incluídos, ela já tinha baixado na internet há tempos. "Não vem dar uma de espertinha, Isabel. Você sabe bem o que quero dizer.", mantendo o tom grave que só os bêbados sabem ter. "Se você insistir, posso chamar o meu advogado para ver o que ele tem a dizer". Ele sabia que botões apertar: o medo de ter o inconveniente Peçanha mexendo na sua geladeira à procura de cerveja a fez (fingir) levar a sério aquelas baboseiras. "Entra, vai".

Luiz Carlos entrou, sentou e encarou Isabel de modo tão sério que alguém que ali entrasse e soubesse que tinham se separando imaginaria que ele ia pedir a guarda do filho (que eles não tinham). Mas, para ele, era bem mais importante que isso. Levar uma criança tonta ao zoológico nem se comparava a escutar o Bardo de Manchester.

- O quê? Você não quer que eu escute mais o Morrissey?
- Não apenas o Morrissey solo. Smiths também.
- Mas isso é um absurdo!
- Absurdo seria os dois continuarem escutando. Já pensou eu lá, escutando "Well I Wonder" na maior dor de cotovelo, imaginando que você, no mesmo momento, poderia estar ouvindo a mesma música abraçadinha com algum babaca? Sem chance. Ou, então, eu, numa baita deprê ao som de "Suedehead", enquanto você dança e cantarola "I'm soooo sorry"? (Não entendia como as pessoas dançavam aquela canção, que, a despeito da melodia animada, ele achava triste pacas.)
- Mas... mas...
- Olha, pra você não dizer que eu tô sendo injusto, vamos fazer assim; eu te faço duas perguntinhas básicas sobre o Morrissey. Se você responder corretamente, eu abro mão de escutar meu cantor e minha banda preferidos. Fechado?

Ao terminar de propor o desafio, um ponta de arrependimento espetou Luiz, como o espinho que incomodava o garoto numa das faixas mais famosa do "The Queen Is Dead" ("The Boy With The Thorn In His Side", burrão). Mas, em seguida, acalmou-se: a Isabel jamais saberia que peça de teatro obscura tinha inspirado os versos de "Reel Around The Fountain", ou então qual é a banda preferida do topetudo ("e olha que essa é nível iniciante"). E a Isabel, de fato, não soube responder as perguntas. Derrotada, ela apagou todos os MP3s do computador, sob o olhar atento do ex-namorado, que a obrigou a assinar um termo se comprometendo a não baixa-los novamente.

- Pô, Luiz, depois de tanto tempo junto, você me vem com uma dessas?
- Pára de reclamar. Você aceitou o desafio. Além do mais, eu deixei você ficar com os móveis, esqueceu?
- Eu já tinha eles quando a gente se conheceu, "esqueceu"? (Na verdade, ele tinha se esquecido mesmo, e se achava magnânimo por tê-la deixado ficar com os móveis que ela mesma tinha comprado.)
- Pois então, eu também já tinha o Morrissey quando a gente se conheceu. Aliás, eu tenho o Morrissey há muito mais tempo. Enquanto você comprava a trilha sonora de "Top Model" -- que, aliás, até que tem seu valor; "Stay", do Oingo Boingo, é bem decente --, eu já tinha o vinil do "Viva Hate".
- Nhé.

Vitorioso, e ainda bêbado, Luiz saiu em direção à casa do Peçanha. Precisava saber se aquele pedaço de papel-toalha assinado pela Isabel teria alguma validade legal. Podiam discutir isso no intervalo do jogo do Verdão.

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

A bagunça é o novo pêlo no peito


"Homens são de Vênus, Mulheres são de Marte". Segundo o título de um dos livros mais vendidos que ninguém jamais leu, quando as meninas moravam por lá, tudo no Planeta Vermelho devia ornar, a começar pela cor, provavelmente escolhida para combinar com a mobília. Tudo impecável -- uma ou outra calcinha deixada no banheiro não vem ao caso. O que motivou as garotas a virem para a Terra? Devem ter se cansado do vermelho e acharam que pintar o planeta de novo dava trabalho demais. Ainda de acordo com o nome do best-seller que eu não conheço quem tenha comprado, suponho que, se hoje não há vida em Vênus, é porque o ar se tornou irrespirável. Quem aguentaria viver para sempre num lugar em que todos os restos de pizza vão para debaixo da cama e não existe faxineira? Os manos se mudaram para cá porque a fama da Marivalda (grande Marivalda) deve ter chegado até Vênus. O que não é a propaganda boca-a-boca, não?

Homens são desorganizados por natureza. As mulheres se casavam esperando mudar essa característica dos amados, mas, nas raras vezes em que conseguiam, a transformação acabava por ser radical demais. Nesses casos, o parceiro terminava procurando outra pessoa -- do mesmo sexo. (Até porque, quem procura outra "pessoa" são os gays; os homens sempre vão atrás de "mulheres", quando muito de "minas".) É sabido que a capacidade de manter cada coisa em seu lugar é uma característica exclusivamente feminina, assim como usar salto alto e rebolar. Se o sujeito começa a apresentar a primeira, não tardará a aderir às outras. Cientes disso, as mulheres estão cada vez mais tolerantes em relação às toalhas molhadas jogadas sobre a cama. Mais: se não as encontram, a primeira visita ao apartamento de um pretendente pode ser a última. "Pode" porque sempre existe a possibilidade delas voltarem para trocar receitas de bolo.

Acho balela esse negócio de que "os trinta são os novos vinte" (o fato de eu ter chegado à minha terceira década solteiro e sem emprego não quer dizer nada). A mesma coisa para "tal cor é o novo preto" (nunca vi um metaleiro que tenha passado a usar verde-limão). Mas, aproveitando essa estrutura, pensei um slogan: "a bagunça é o novo pêlo no peito". Não faz muito tempo (os anos oitenta não foram há tanto tempo, foram?), cabra macho, para ser macho mesmo, tinha que ter pêlo no peito. A mulherada adorava. Não à toa, o período coincidiu com o auge da popularidade do Tony Ramos e do King Kong. Hoje, em tempos em que as mulheres depilam seus maridos -- duvido que a do Tony Ramos não dê pelo menos uma aparada nele --, a medida da masculinidade é o rastro de desordem que o camarada deixa atrás de si. Quantas casos no ambiente de trabalho não devem ter começado desse jeito? "Vamos fazer com a sua cama o mesmo que você fez com a sua mesa?" O subalterno não atende aos pedidos do chefe para arrumar a mesa só para que ele os repita, gritando, de preferência. O problema é que, cansado de não ser ouvido, o manda-chuva pode mandar o subalterno limpar a mesa de vez.

"A bagunça é o novo pêlo no peito". Gostei. Devia estar na nova edição de "Homens são de Marte, Mulheres são de Vênus". (Sim, agora que terminei o texto, me lembrei de que planeta é cada sexo. Mas, como achei boazinhas as piadas relacionadas à cor e as mulheres, deixa elas no Planeta Vermelho mesmo.)

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Foto Visconde



As vitrines do Foto Visconde, pequeno comércio localizado no meu bairro, estão repletas de produtos de gosto e qualidade duvidosa, tipo almofadas e caixinhas de música em formato de coração vindas do Paraguai -- nunca soube que se importavam almofadas bregas de lá, mas, vagabundas como aquelas, só podem ter sido. Entretanto, como sugere o nome, no Foto Visconde também há artigos para fotografia, perfeitos para o caso de você ser o último proprietário de uma câmera analógica e de não se importar em comprar filmes com a validade vencida. (Sim, porque, com a procura restrita a uma pessoa, essa que ainda não tem uma digital, duvido que tenham renovado o estoque ultimamente.) A loja também não prima pela simpatia, nem pela beleza das atendentes: no balcão, revezam-se a proprietária, uma senhora japonesa de poucos sorrisos e palavras, e uma moça cujo gosto pelas mini-blusas rivaliza com a barriga peluda. Enfim, o Foto Visconde é o tipo de lugar onde eu nunca entraria. Mas acabei de voltar de lá, e não foi a primeira vez lá.

Não sou chegado a almofadas em formato de coração, não tenho máquina analógica (se tivesse, talvez preferisse comprar filmes que prestassem) e, definitivamente, as balconistas do Visconde não fazem meu gênero. Fui à (não muito) simpática loja tirar umas 3x4 quase instantâneas: se não são reveladas à moda antiga, são tiradas numa máquina estilo Polaróide, à moda um pouco menos antiga, ficando prontas em dez minutos -- cinco, segundo a japa, mas na verdade dez. Ao chegar em casa, percebi que dois da meia dúzia de retratos estavam péssimos, porém não tive coragem de reclamar. E olha que os oito reais pagos não foram necessariamente uma pechincha. Então, por que cacete eu fui lá? Após três meses em Portugal, hoje faz uma semana que voltei ao país. Este retorno tem muito a ver com a minha ida à Foto Visconde. (Até porque, que eu saiba, essa pérola da cafonice e da obsolescência não tem filiais, quanto mais no Além-Mar.)

Alguém me disse ter lido não sei onde que Lisboa fora avaliada uma das três capitais mais seguras da Europa, continente que, por si só, já é bastante mais seguro que o nosso. Não estive em todas as capitais europeias, e não tive qualquer problema nas outras por que passei, mas assino em baixo do que disse a revista não sei qual. Frequentador contumaz das noites lisboetas, muitas vezes sozinho, algumas delas bêbado, vaguei a pé por lugares desertos de madrugada, sem ser importunado por ninguém. Diante disso, e do destaque dado a pequenos crimes pelo noticiário local, achava graça quando taxistas se queixavam do crescimento da violência. "O senhor precisa conhecer o meu país", eu emendava, mostrando o Super-Trunfo e acabando com o papo. Santa boca.

Na última noite de sábado, dava carona para uma amiga até sua casa, quando paramos num semáforo. Talvez pensando ainda estar em Lisboa, levei um segundo até decodificar os dois sujeitos gritando e nos apontando armas. Talvez por não perceber de cara que se tratava de um assalto, não me assustei e saí do carro calmamente. E lá se foram eles, levando o surrado Fiesta e meus recém-comprados Ray-ban (substituía outro perdido em Lisboa) e iPod (cheio de música bacana, difícil de repor), além da carteira, com pouco dinheiro mas muitos documentos. Minha amiga também teve um belo prejuízo, mas concordamos que, diante da possibilidade de sermos vítimas de um sequestro relâmpago ou mesmo de levarmos um tiro, até que não foi tanto. Depois de uma longa madrugada de delegacia e ligações para cancelar cartões de crédito e telefone celular, dormia o sono dos assaltados quando recebi uma ligação da polícia: diziam ter encontrado meu carro numa favela da Zona Sul de São Paulo.

Imaginei encontrar o possante depenado. Segundo o que ouvi, se os bandidos não o tivessem feito, a polícia daria conta do recado. Dizem que costumam passar a mão em estepes, rodas, e no que mais os ladrões tiverem deixado. Por isso, fiquei surpreso ao chegar e ver meu Fiesta intacto, a não ser, obviamente, pelo aparelho de som. Tinha até uns trinta reais que caíram embaixo do banco e os "meliantes" não acharam. Mais impressionante que isso, foi o fato da própria polícia não ter embolsado a grana. Tudo bem, não é nenhuma fortuna, mas o que os impediria de dizer não terem visto as notas? E mais: levando em conta o que ganha um policial, 30 mangos, ainda que pouco, são um adianto. Foi nisso que pensei ao agradecer ao policial responsável pela localização, camarada de maneiras humildes e honestas, contrastando com a imagem que toda a população, tirando a mãe dele, tem dos policiais. Devido a essa postura, pensei até em dar o dinheiro para ele, mas lembrei que era o único que tinha. Se os PMs ganham pouco, eu, atualmente, ganho menos.

Essa desventura urbana me remeteu a uma das primeiras conversas que tive com brasileiros radicados em Lisboa. Diziam ser impossível viver num lugar tão violento, que Deus os livrasse criar seus filhos aqui, e deram a entender que jamais voltariam. Mais exaltada, uma moça quase espumava ao manifestar sua ira em relação aos políticos, ao povo e a todo o status quo do Brasil. Eu, recém-chegado e um pouco assustado, me limitei a expor um ponto de vista meio clichê, mas em que acredito: por mais defeitos que haja por aqui, cabe a nós ficar e ajudar a consertar o país. Completei: quem optar por sair de lá (aqui) não tem direito a reclamar -- se bem que, comparando aos direitos de que somos tolhidos diariamente pela criminalidade, isso não é nada. Àquela altura, pretendia morar em Portugal mais tempo do que acabei morando, mas nunca pensei ficar em definitivo. Sem querer soar patriota-babaca, gosto do meu país e, apesar de todos os pesares, sei que ele também gosta de mim. Só não precisava ter me mandado aquele comitê de boas-vindas. Achei exagero. Uma faixa de "bem-vindo" estava de bom de tamanho.

Foi a essa calorosa recepção que deveu-se minha ida ao pitoresco Foto Visconde. Fui tirar umas 3x4 para as segundas vias dos documentos roubados com a minha carteira. E por que fui a um lugar onde as fotos, além de mais caras, tem péssima qualidade? Bom, para começar, porque tiro foto lá desde sempre, por isso nem pensei em ir a outro lugar. Mas, quando estava lá, me pareceu estar diante de uma bela duma metáfora (não, eles não vendem isso por lá). Achei que, assim como o Brasil, o Foto Visconde merecia uma segunda chance (ou seria a centésima?). Se ninguém acreditar que o país tem jeito -- e atitudes como a do PM que me devolveu os 30 paus mostram que tem -- ele vai acabar por não ter mesmo. Da mesma forma, se ninguém for ao Foto Visconde, eles vão terminar fechando. Se bem que, no fim das contas, isso talvez não fosse tão mal.

(Texto escrito segunda-feira, 22 de outubro)

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Sabe mais que um miúdo de Pindamonhangaba?


Muita gente acha que dia 12 de outubro é feriado porque nessa data se comemora o Dia das Crianças. Por muita gente, entenda-se as crianças, que apesar da diminuição dos índices de natalidade, ainda são "muita gente" -- isso, claro, se você considera criança gente. Entre elas, poucas sabem quem é Nossa Senhora Aparecida. Dessas, um pequeno percentual tem uma vaga idéia de que ela tem algo a ver com Papai do Céu (vulgo Jesus). Quase nenhuma sabe que se trata da padroeira do Brasil; as que sabem nem desconfiam o que seja uma padroeira. E mesmo que soubessem, não achariam que ela é importante a ponto de ter um feriado só para ela -- o cara que chutou uma imagem da santa deve pensar o mesmo.

Criança é assim: não sabe nada a respeito de coisa alguma e, por isso, fica fazendo conjecturas (palavra que, obviamente, não faz parte do vocabulário delas) sobre tudo, tipo a história das nuvens serem de algodão. Se você acha isso absurdo, lembre-se que o mundo já foi tido como uma tábua a repousar nas costas de uma tartaruga, teoria que deve ter partido dum moleque metido a sabichão, levado a sério pelos "sábios" gregos. Em tempos em que ninguém sabia de porra nenhuma, quando se buscavam explicações para a vida, o universo e tudo o mais, as baboseiras infantis faziam sucesso. Deve ter sido aí, percebendo uma oportunidade de mercado, que Sócrates incentivou seus discípulos a se aproximarem do pensamento infantil. O problema foi que a proximidade com as crianças não parou por aí, e o xará do Doutor teve que apelar para a cicuta.

Hoje em dia, ninguém mais anda de toga pela rua -- se andar, vai logo preso por atentado ao pudor --, e qualquer idiota sabe que a terra é redonda, apesar de não imaginar que é achatada nos pólos. Ainda assim, como na Grécia Antiga, a ignorância infantil continua a ser celebrada. Por aqui, o velho Raul Gil consegue pontos no IBOPE à custa de garotinhas incapazes de pronunciar "Pindamonhangaba" -- número repetido toda semana, que, inacreditavelmente, ainda faz sucesso. Já em Portugal, a chatice é mais sofisticada. Como sugere o nome, o quiz show "Sabe Mais Que Um Miúdo de 10 Anos?" testa os conhecimentos de participantes adultos comparando-os a crianças do primário. A disputa, que deveria ser moleza para o marmanjo, me surpreendeu. Quando vi o programa (por poucos minutos, era chato demais), a "turminha" humilhou o coitado, distribuindo sorrisos e piscadelas ao auditório entre uma resposta certa e outra.

Bem feito para o perdedor. Quem mandou manter viva a criança interior? Os moleques que ganharam certamente já mataram e jogaram as suas no rio. A polícia nunca vai desconfiar daqueles rostinhos angelicais.

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Genéricos

Um vazio tomou-lhe o peito e um pouco mais abaixo. Cansado de sentir-se oco, resolveu preencher pelo menos a ausência mais banal. Com sorte, tapeando o estômago, conseguiria também enganar o vizinho do andar de cima.

Pouco depois, estava no supermercado a escolher entre duas marcas de sorvete, ambas desconhecidas, como a maioria dos produtos da loja, popular. Se nas roupas e nos calçados mal dava atenção às etiquetas, a coisa mudava quando o assunto era comida: aí, se fosse para levar algo de qualidade duvidosa, preferia não comprar. Fiel a esse princípio, ia deixando o sorvete para trás, quando ouviu do bucho o aviso para voltar. A necessidade de glicose juntava-se à falta de dinheiro para sobrepujar o preconceito. Seis sorvetes ao preço de dois de uma marca famosa fizeram a frescura beijar a lona logo no primeiro assalto. Não esperou chegar em casa para provar o primeiro, que, sem a embalagem de design medonho, até tinha uma cara boa. E, olha só, o gosto também não era mau.

Enganado o estômago, não seria tão fácil com o coração. Pô, sorvete genérico? Se fossem umas covinhas no canto da boca, uma orelhinhas pequeninhas, bem desenhadas. Mas essas coisas, explicou ao músculo, não se vendem num supermercado, ainda mais num popular. A resposta foi uma ordem para ligar para ela. Já que ouvira a barriga, sentiu-se forçado a atender também a esse pedido. Depois, com o resultado da chamada longe do esperado, conveceu o coração a dar uma segunda chance para o picolé.

O chocolate camuflou o amargo que povoava sua boca, e isso o fez se sentir mal, um trapaceiro. Para além das metáforas baratas, o gosto ruim que faz-se sentir nas desilusões está previsto no regulamento das relações amorosas. Como um atleta usuário de esteróides, temia o antidoping e a conseqüente suspensão das competições por tempo indeterminado. As mulheres sempre afogam suas mágoas com quilos de chocolate, ele sabia, mas também sabia que, para elas, as regras são um pouco diferentes.

Queria reaver o asco, a vontade de vomitar e, para isso, correu ao bar da esquina. Pediu o que houvesse de mais forte e mais barato. Seu estômago reclamaria, sem dúvida, mas sabia que, como nas roupas e nos sapatos, nas bebidas, ele também não dava atenção para as marcas.

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

A Maldição das Crianças Feias


Precisa perder peso? Coma comigo. Eu como, mas você, provavelmente, não. Se comer, vai ser bem pouco, rapidinho perde o apetite. Tenho uma técnica infalível para induzir a isso – nada a ver com intervenções cirúrgicas ou ingestão de remédios. Não, meu amigo, também não é hipnose. Para falar a verdade, não é bem uma técnica. Técnicas implicam em métodos e, para fazer as pessoas empurrarem seus pratos de lado, eu não preciso fazer nada. Se é um dom? A capacidade de atrair crianças feias por onde quer que se vá está mais para maldição.

Não sei como ou por que acontece, mas acontece. E toda vez é um novo susto. Ou era, até eu me acostumar a ver por toda a parte o que Sérgio Mallandro chama de “capeta em forma de guri”. De uns anos para cá, notei que, esteja onde estiver, comigo também estará um garoto medonho ou uma menina horrorosa, surgido do nada. Como naqueles filmes de terror japoneses, sabe? A diferença é que não é apenas um: trata-se de uma rede internacional de moleques dispostos a poluir o meu campo de visão. Antes eles tinham o objetivo de me matar do coração, mas, percebendo que o Santos tem mais chances, resolveram contentar-se em deixar o meu dia mais feio. E fazem isso em Florianópolis, em Barcelona, em Londres ou mesmo em Diadema, que já seria suficientemente feia mesmo sem a ajuda da petizada.

Os amigos mais próximos conhecem a minha sina. Se ainda andam comigo, jamais me chamariam para ser padrinho dos seus filhos. No meu colo, certamente a linda criancinha se transformaria num sósia do Bebê de Rosemary. Se o padre tivesse coragem de derramar água benta por sobre sua testa, ela queimaria. Pela mesma razão, a idéia de ter filhos me dá arrepios. Se resisti a todos os ataques de feiúra infantil a que fui submetido, saber que o Filho do Demo é, na verdade, meu, já seria demais.

Já que a maldição vai acabar me deixando sem amigos (uma hora eles se cansam de se assustar) e vai me impedir de ter filhos (se, para ter filhos é preciso responsabilidade, no meu caso é o oposto), que pelo menos que me dê algum dinheiro. Como uma indenização por danos morais está fora de questão – nunca soube de maldição que pagasse –, eu pensei em outro jeito de ser ressarcido.

Vou oferecer um serviço para pessoas com excesso de peso, como explicava no começo. Consiste simplesmente em acompanhar o cliente ao restaurante, e deixar as aberrações infantis fazerem sua parte, tirando-lhe o apetite. Mas desde já aviso: o tratamento não é recomendado para sensibilidades fracas.

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Sonhos de Penha de França


Ao descer comigo as velhas escadas de madeira do pequeno prédio, o Fábio proclamou: “você vai levar uma vida de escritor”. A frase de impacto, previsão do que seriam os próximos meses, deve ter-se baseado na relativamente charmosa decadência do lugar para onde acabara de me mudar, parente distante do hotel onde vivia Arturo Bandini, romancista em começo de carreira, nos romances do John Fante. Coincidentemente localizada num morro (o que, em se tratando de Lisboa, não é tanta coincidência), a Penha de França não era nenhuma Bunker Hill, mas demonstrava ser promissora: se havia inspirado a bela frase ao meu visitante, com quantas não me haveria de presentear?

Encarei a declaração do Fabião como uma promessa feita em meu nome, e, mesmo sem ter-lhe dado nenhuma procuração para falar por mim (mesmo que fosse para mim mesmo), não me incomodei em assumir o compromisso. Estava decidido “a levar uma vida de escritor” enquanto estivesse sozinho em Lisboa. Tão logo recebesse meu primeiro ordenado, iria à Fnac comprar um notebook e escreveria, escreveria, escreveria. Uma teoria diz que, batendo à máquina por tempo indefinido, existe a possibilidade de um chimpanzé transcrever as obras completas de Shakespeare. Eu, com menos pêlo e um pouco adiante na escala evolutiva, deveria ter alguma chance de escrever algo decente. E as minhas pretensões eram bem mais modestas que as do macaco.

Comecei a trabalhar, me pagaram. Gastei com o aluguel, gastei com comida. Bandini era um exemplo, mas até certo ponto: não pretendia viver a fugir da senhoria e a alimentar-me apenas de laranjas como ele. Não sobrou para o notebook; nem meu salário integral chegaria. Recebi de novo e, mesmo juntando os rendimentos, o notebook continuava caro. Parecia que, para comprar a máquina, só se aderisse às táticas de fuga e à dieta riquíssima em Vitamina C do alter ego de Fante. Meus joelhos não são mais os mesmos, meu gosto por frutas cítricas não chega a tanto, desisti. Do computador, não de um notebook: adquiri um Moleskine, caderninho metido à besta que traz, na capa de couro, um aviso dizendo ter sido o preferido de gente como Picasso e Hemmingway. Intimidado, até hoje não tive coragem de tirar o plástico da caderneta. Marketing sádico esse. Um aspirante (a escritor ou a qualquer coisa) já é suficientemente inseguro sem saber que as páginas onde pretende rabiscar descendem daquelas em que foi escrito “O Velho E O Mar”.

Mesmo não tendo comprado um notebook nem tocado o outro, escrevi algumas coisas, como atestam este blog e o Morfina, o outro site onde colaboro. A quantidade de material repetido nos dois endereços mostra que não produzi o quanto gostaria: pretendia ter uns sessenta textos até a volta ao Brasil, e não cheguei a um terço. Querendo atingir o objetivo, tenho pouco mais de quinze dias. O diabo é que, se terei mais tempo livre por não trabalhar nesse período, não terei um computador à mão pelo mesmo motivo. Cumprindo a meta ou não, minha “vida de escritor” acaba antes da estadia em Portugal. Daqui a uma semana, deixo o quarto na Penha de França e volto a incomodar meus amigos até a data do vôo.

Sentirei falta do lugar, apesar das baratas – que, aliás, ajudam a compor a atmosfera. Mas, principalmente, vou sentir saudade de chegar lá, sentar ao computador e escrever até a manhã do dia seguinte. Só faltou isso para a Penha de França se tornar Bunker Hill.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

O casal que não fala


Num bar. Num restaurante. Numa mesa ao lado da sua. Pode reparar: em meio às conversas e gargalhadas gerais, sempre há um casal que permanece calado. Não é aquele silêncio próprio da cumplicidade, facilmente identificado pelos olhares trocados, por si só verborrágicos. Esses dois estão quietos de outro jeito, constrangedor. Como eles, seus olhares nada têm a dizer e, por isso, evitam encontrar-se. Preferem a beleza imprecisa da bolacha de chope puída sobre a mesa ou o ineditismo do acústico do Capital Inicial na TV do estabelecimento.

Sempre que via uma dessas miseráveis duplas, me perguntava: por que ainda são um casal, se nada têm em comum? E, se insistem em permanecer juntos, por que expor sua condição lastimável ao público? Se é para não se divertir, poderiam ter ficado em casa – além do dinheiro, poupariam os outros clientes da triste visão. Mas descobri o que se passa com esses casais. Sim, eles se falam, e muito. Tanto é que, quando vão aos restaurantes e bares, já estão sem assunto.

Onde conversam? No cinema. No teatro. Nem precisa reparar: em meio ao silêncio que deve imperar nesses locais, você vai ouvir um casal de imbecis que não calam a boca, geralmente sentado bem perto de você. Você, nesse caso, sou eu mesmo, um imã para essas matracas. Só Deus e a minha namorada sabem quantas vezes me contive para não sair na mão no meio de um filme. Não poderiam esperar até o fim da sessão, até o jantar? Claro que não. Comentários do gênero “todo mundo nesse filme (‘300’) tomou bomba” são brilhantes demais para serem contidos por tanto tempo. A genialidade não tem hora, e cabe aos menos dotados não atrapalhá-la.

Além disso, durante o jantar depois do cinema, eles estarão muito ocupados admirando a velha bolacha de chope ou o acústico do Djavan. (O DVD do Capital deve ter sido quebrado por algum cliente revoltado.)

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Fumador ou não fumador?


Lisboa é uma grande balada. Não que haja por aqui um sem-número de opções de lazer noturno, nada disso. Digo que a segunda mais importante capital da Península Ibérica (só fica atrás de Madrid) é uma enorme night por outra razão. Qual danceterias, bares e outros lugares aonde as mulheres vão apenas para dançar (mesmo que não haja música), é impossível andar pelas ruas lisboetas sem voltar para casa fedendo a cigarro.

Se o cigarro fosse freqüente apenas nas ruas, eu e todos moradores não fumantes (que devem ser uns cinco, nenhum deles português) ainda estaríamos no lucro. Qualquer lugar é lugar para pretejar os pulmões, e imagino que os ambientes fechados inspirem nos locais ainda mais vontade de fazê-lo. Tenho a impressão de que o número de fumadores (mais uma das palavras subtilmente diferentes das brasileiras) nos shoppings e afins é significativamente maior que em lugares a céu aberto. Nos restaurantes existem, sim, os ambientes para os que não fumam por vontade própria, mas, diferente do que acontece na primitiva ex-colônia, são bem menores do que àqueles destinados a quem paga para fumar. Provavelmente porque o segundo grupo dá mais lucro aos restaurantes, que também vendem Marlboros e afins.

Nos locais de trabalho, também como onde gorjeia o sabiá, o fumo é permitido apenas em áreas restritas, mas só na teoria: talvez por não conhecer a palavra fumódromo, o pessoal também ignore o conceito. Vira e mexe, sem que eu perceba mas meus pulmões sim, chega à minha mesa um colega empunhando um cigarro. E, depois de certa hora, todos fazem o mesmo, sem o menor constrangimento. Impressionante, com tanta fumaça, os detectores não serem acionados. Devem ser regulados no modo mais tolerante possível, por uma questão de bom senso: fossem eles mais sensíveis, os equipamentos de informática e documentos estariam perdidos. Como também estarão na eventualidade de um incêndio causado por uma eventual bituca. Mas é só uma eventualidade.

Eu nunca fumei – exceto um ou outro cigarro filado (e babado) no auge da bebedeira. Também nunca considerei isso um mérito. É bem ao contrário: deve-se à minha incompetência. Como qualquer moleque da minha geração, negligenciei os então recentes avisos do Ministério da Saúde e só não me viciei porque não aprendi a tragar. Quando digo que não fumo, obviamente omito essa parte, do contrário a inveja (“sorte sua”) daria lugar à comiseração (“coitado”). Enfim, o que interessa é que nunca fumei e, aos 30, pensei que nunca começaria. Passei a reconsiderar depois que soube que o fumo passivo é mais prejudicial que o ativo. Com a quantidade de cigarros acesos ao meu redor, fumar não é exatamente uma opção para mim. Se o fumo de segunda mão, como tudo que é de segunda, é pior que o de primeira, melhor eu também acender o meu cigarrito.

Assim, pelo menos vou poder ter o Zippo que sempre quis, mas nunca comprei por achar muita grana para se gastar num acendedor de fogão. Vou poder ser cool como o Humphrey Bogart ou como o John Constantine, que, de tão cool, conseguiu livrar-se de um câncer passando a perna no diabo. Aliás, junto com meu primeiro maço de cigarros, vou comprar também uma reedição de “Hellblazer”. Estudarei atentamente a proeza do personagem porque, ao que tudo indica, precisarei reproduzi-la.

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

In The Future When All’s Well


Estamos no futuro. Mais do que no futuro, aliás. Robocop se passa no final do século XX, e isso já tem dez anos. Muita gente não se deu conta porque imaginava que agora, no futuro, estaríamos entre os destroços de uma guerra que não aconteceu. Não para mim e você. Lugares como o Afeganistão ou o Iraque poderiam ser cenários de Mad Max.

A grande epidemia, outro palpite das histórias futuristas para o fim da humanidade, esta sim já veio. E não foi só uma. Muito depois da peste negra, veio a tuberculose, veio a gripe aviária, veio o ebola, veio a AIDS. Só o fim do mundo que é bom – ou melhor, não é – não veio. A não ser, obviamente, para aqueles que ficaram no meio do caminho. Mesmo assim, para eles, 2007 não é o futuro. Para eles, isso não existe.

No futuro, não moramos na lua nem em Marte, mas já mandamos para esses lugares muito mais dinheiro do que para a África, muito mais próxima e necessitada. Missões (tripuladas e não) nos dizem que lá não há condições para a vida humana. Na África, principalmente. O povo africano não crê estar no futuro. Tem suas razões. Espera que o futuro seja qualquer coisa melhor do que isto.

Não acreditem no que dizem os carros, despeitados, que não aprenderam a voar. A eles agora fazem companhia os aviões, mantidos no chão pela crise aérea que completará um ano. O que nos leva à outra prova irrefutável da época em que estamos: Lula foi eleito, como haveria de ser um dia. A igualdade social e o fim da corrupção que viriam com ele é que ficaram para trás.

Estamos no futuro. Mas só até eu acordar. Aí, sentindo o cheirinho do café da minha mãe, vou pedir para ela me levar para ver um filme novo, sobre um policial ciborgue. Será vai ter coisas assim no futuro?

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Paredes de Coura são as que têm melhor acústica


Como quarta seria feriado em Portugal, terça à noite eu e o Fábio fomos para Paredes de Coura, cidade de nome estranho onde se realiza um festival que tem o azar de ser homônimo. Fica a, mais ou menos, uns 550 km da capital portuguesa. Estrada boa e sem trânsito (mesmo, quase nenhum carro), chegamos em tempo de pegar mais da metade do show do New York Dolls. Se a performance dos tiozinhos não fez jus aos tempos em que ainda se vestiam de mulher, a do Dinosaur Jr, sim, foi do cacete. Não paramos de bater cabeça um segundo. E, nesse caso, a chuva que caía ajudou: se não fosse por ela, este meu cabelinho ruim jamais sairia do lugar.

Depois dos shows, montamos uma tenda. Foi então que me lembrei porque nunca tinha acampado antes. Puta desconforto, mal consegui dormir. No dia seguinte, ainda sob chuva, resolvemos desarmar a barraca e levar as coisas para o carro, porque, logo após o Sonic Youth, já pegaríamos a estrada. Choveu durante mais um tempo e, depois, para a nossa sorte, o tempo se abriu. Aí, deu até para pegar um sol no gramado próximo à área de camping, onde uns caras estranhos estavam declamando umas poesias ídem. Ao contrário do que parece, foi bacaninha.

Por volta de umas 18h, fomos à região do palco, muito legal, por sinal. Era um buraco - no sentido de depressão topográfica, não no de lugar de merda. Ficava no fundo, o que possibilitava, além de ótima acústica, uma boa visão, mesmo para quem estava distante. Não foi o nosso caso. À medida que o concerto do Sonic Youth se aproximava, a gente fazia o mesmo. Antes do que mais queríamos ver, tocaram sete grupos, entre eles, uns novos (Sunshine Underground) e outros obscuros (Electrelane). A surpresa ficou por conta de Peter, Bjorn e John, com boa presença de palco e repertório para além de "Young Folks" - que teve, aliás, uma versão abaixo da original; a voz feminina fez falta. Mal acabou o show dos três, a movimentação em direção aonde estávamos se intensificou. O pessoal se acotovelava, afoito, para ver o Cansei de Ser Sexy, mega sucesso por aqui e por todo lugar que não seja o Brasil. A banda é boa? Não. O show foi ruim? Também não. Eles são bem divertidos. A vocalista, uma japonesinha num colant de lantejoulas, não parava de falar besteira e zoar os portugueses, que ela parecia ter esquecido serem a platéia. Imitando o sotaque local, soltava "brigadinhos" e cantava "é uma casa portuguesa, com certeza". Resvalava na falta de respeito, e só não o foi por causa da simpatia dela - a velha da tática do "na boa" antes de "vai tomar no cu" ou coisas do gênero. A tática funcionou, e a galera foi ao delírio.

A seguir, o momento de separar os meninos dos homens. Não só porque o Sonic, ao contrário do CSS, é uma banda, mas também porque, terminado o show desses últimos, a molecada que se concentrava perto do palco deu lugar a um pessoal mais, er, vivido. Excelente show, bem melhor do que aquele que vi há 2 anos no festival paulistano Claro Que É Rock. Se os conterrâneos Dolls desmereceram a Nova York que trazem no nome, Lee Ranaldo, Thruston Moore, Kim Gordon e o baterista, cujo nome ninguém lembra , honraram a Grande Maçã. Além do novo disco inteiro, tocaram alguns clássicos, como "Bull In The Heather" e "100%". Mas, como no Claro, também teve o momento do show em que eles cagaram para o público e se divertiram a fazer barulho para seu próprio entretenimento e dos fãs mais ardorosos, que viajavam junto. Muito simpáticos, voltaram para dois bis. Generosidade que eu, cansado e com o corpo todo dolorido, dispensaria.

Por volta das 2h da madrugada, fomos para o estacionamento, agradecendo a Deus por já termos colocado todas as coisas no carro. No caminho para Lisboa, paramos num posto para abastecer e dar uma cochilada. Eram pouco mais de 8h quando o Fabião me deixou em casa (é até engraçado eu me referir assim a um lugar a milhares de quilômetros do Brasil). Foi só o tempo de tomar um banho e vir para a agência. Se agora estou conseguindo aguentar o sono, sei que, depois do almoço, a coisa vai ficar feia. Mas ruim mesmo seria se eu tivesse 30 anos. O tranco seria muito pesado para alguém dessa idade.

quinta-feira, 9 de agosto de 2007

A casa dos 30



"É minha última semana na casa dos vinte". Diante desse comentário, a amiga da Carol que estava no carro com nós dois, a quem eu tinha conhecido ontem mesmo, disparou: "Ué, mas você não acabou de se mudar para lá?" Entre gargalhadas, minhas e da nossa amiga em comum, expliquei à inocente moça que a tal casa não era o recém alugado quarto no apartamento que divido em Lisboa. Antes fosse. Quis dizer que, domingo, farei trinta. E não serão 30 flexões de braço, 30 origamis ou 30 jogos na Mega Sena. São 30 anos, mesmo. (Sempre existe o risco de mais alguém me interpretar errado.)

Os 30 anos são como a AIDS, o seqüestro relâmpago ou pegar mulher bonita: vocâ acha que só acontece com os outros. Eu também pensava assim, por isso, nem me previni. Ao invés de me trancar em alguma câmara de animaçâo suspensa, fui simplesmente vivendo. No mínimo, me esforcei para fazer isso da melhor maneira. Errei e acertei em proporções parecidas, aproveitei e disperdicei oportunidades, fiz amigos e inimigos. Claro, me arrependo de muita coisa - não vou cair no clichê do "só me arrependo do que não fiz". Mas quem mandou querer ter livre arbitrío? Escolher é tentativa e erro, e quem não souber disso é porque não leu as letras miúdas do contrato.

Me sinto um pouco cretino fazendo uma dissertação sobre os 30 anos, quando tudo o que o mundo menos precisa é de mais uma.Mas, francamente, se eu quisesse fazer algo de que o mundo realmente precisa, teria estudado medicina - ei, não quero ressucitar esse tópico sobre as "profissôes importantes e as desprezíveis"; sou um porco capitalista publicitário, e o emprego em que começo segunda-feira indica que o serei por mais um tempo. Escolhi o tema porque, bem, estando diante de idade tão emblemática, digamos que o tema me encurralou num beco sem saída e, com um soco inglês na mão, exigiu que eu o escolhesse.

Inclusive, fazer crônicas sobre os 30 e outras as coisas sem se preocupar com o que os outros vão pensar - não é, Sartre? - é algo que alguém nessa idade já deveria ter aprendido. Mas essa é mais uma das supresas que o fim da segunda década de vida nos ensina: você não chega aqui tão realizado e livre de paranóias e questionamentos como imaginava que estaria. Não sei você, mas, quando criança (e, portanto, idiota), acreditava piamente que minhas angústias se resolveriam magicamente aos 18 e, lá pelos 30, já teria alcançado o primeiro milhão - que nem sei se um dia alcançarei -, dinheiro que, supunha, daria para comprar a mansão que dividiria com minha linda família e minha Ferrari, mais linda ainda. Ao invés disso, estou em outro país, praticamente recomeçando minha carreira. Tenho sim uma linda namorada, mas só vejo Ferraris nas lojas da Avenida Europa - ou, mais recentemente, nas ruas do continente que deu nome à avenida paulistana.

Mas esses 30 anos me ensinaram, sim, um bocado de coisa. Apesar de continuar a aceitar doce de estranho e a atravessar sem olhar para os dois lados, aprendi a confiar mais em mim mesmo, para dizer o mínimo. (E é o mínimo mesmo que vou dizer, porque quero terminar isso antes de se acabarem os minutos a que tenho direito nesse cybercafé.)Aprendi, também, a deixar certos preconceitos de lado. Opa, opa, estou falando da aversão que sempre tive aos best sellers. Presença constante nas mesas das secretárias e divindido suas prateleiras com os volumes do Paulo Coelho, "O Caçador de Pipas", de Khaled Housseini, tem sido uma excelente surpresa. Comecei a ler ontem e, desde então, aproveitando meus últimos dias de vagabundagem, mal parei.

Agora há pouco, estava numa praça lisboeta, absorto no romance ambientado na capital do Afeganistão, quando sentou-se ao meu lado uma senhora muçulmana envolta em lenços, e seu filho, que trouxe à mente os protagonistas da história. "Só pode ser um sinal" - dessa vez, não consegui fugir ao lugar-comum. Era mesmo. Pulando e cantando em árabe com uma vozinha anasalada, o menino me avisava: "Você está cada vez mais velho e sem paciência." Bem-vindo à casa dos 30.

quinta-feira, 2 de agosto de 2007

De baixo do meu nariz




Todo mundo conhece alguém que, hoje moreno, diz ter sido loiro na infância. Já vi, inclusive, gente de coloração muito próxima à do Kunta Kintê jurar isso de pés juntos. É a mesma coisa com os olhos, que todo mundo já teve azuis ou verdes. Nesse caso, acho mais fácil de acreditar, vide o Hélio de La Peña, do Casseta, ou a minazinha indiana daquela capa clássica da National Geographic.

Se há um período da vida para alguém ser de fato e naturalmente ariano, essa fase é a meninice. É a ordem natural das coisas, em se tratando de cachos e pupilas: escurecem à medida que você envelhece e, depois que tiver envelhecido, voltam a ficar claros. Cabelos ficam brancos e olhos, por efeito da catarata, também.

Sou das poucas pessoas que nunca tiveram nem olhos nem cabelos claros - apesar de, quando pequeno, ter sido chamado de "galego" por um senhor de quem os Alcóolicos Anônimos devem ter desistido. Ao contrário do meu irmão que, de fato, já teve madeixas aloiradas, sempre fui moreno. Cabelos e olhos castanhos-escuros - talvez pretos, mas modestos demais para se admitirem assim.

Agora, com os trinta, é natural que alguns dos meus fios quase pretos fiquem cada vez mais distantes dessa cor (maldita ordem natural das coisas). Mas, além desse fenômeno prozáico, está acontecendo comigo outro, que mereceria a análise de cientistas, nem que para isso tivessem de deixar de lado a busca da cura do câncer. Mais de 25 anos depois do que seria comum, estou ficando loiro. Quer dizer, o meu bigode está. Não é branco não, é loiro mesmo. Ao contrário daquele senhor que me chamou de galego, eu sei exatamente como identificar um.

De uns tempos para cá, decidi deixar isso-que-eu-chamo-de-barba crescer. Então, além de trocados de pessoas que me tomaram por mendigo, recebi o convite para participar de um circo de aberrações. Quando pensei terem me confundido com uma mulher e por isso terem me feito a proposta, olhei-me no espelho e dei de cara com o buço loiro. "Coisa horrorosa!", já diria o dublador brasileiro do Gene Wilder. Era um bigode amarelo, tipo o do Leôncio do desenho do Pica-Pau.

Depois de muitas piadas e expressões horrorizadas (inclusive as minhas próprias ao me olhar no espelho), achei melhor raspar tudo. Agora, já consigo olhar o espelho sem me horrizar (tanto). Sinto-me mais jovem. Mesmo assim, penso em cultivar a barba novamente. O desemprego está tornando a oferta do circo de aberrações cada vez mais interessante.

quarta-feira, 25 de julho de 2007

Não existe colher



Apresentou-se ontem em Lisboa a cantora Aimee Mann, expoente americano da "música de adulto". Geralmente, uso o rótulo para bandas e cantores que tocam na Alpha, na Antena 1 e similares: trilha sonora chata de gente ídem, pretensamente madura. Como um antigo chefe, em cujo carro, a caminho de uma reunião, ouvi Light House Family e pensei pela primeira vez no termo. (Pensei também que se aquela merda era o que os adultos ouviam, preferia continuar na minha síndrome de Peter Pan.) Mas, no caso da Aimee, a catalogação assume outro significado. É música de adulto não porque fala de relacionamentos desfeitos ou impossíveis, temas comuns à maioria dos compositores, mas porque o faz de modo belo, triste e sofrido, trazendo os personagens das canções à retina do ouvinte - desde que ele seja, hum, adulto, com quilometragem suficiente para ser sensibilizado pelas letras.

Que o diga Paul Thomas Anderson, diretor de Mágnolia, que concebeu o filme e muitos de seus diálogos a partir das poesias da moça. Mesmo tendo influenciado a tal ponto a obra do cineasta, as composições da senhorita Mann (que, por volta dos 40, só é senhorita ainda porque somos machistas e assim chamamos mulheres solteiras, como acredito ser o caso dela) não emocionaram meus amigos: preferiram a pré-estréia do filme dos Simpsons (vejo semana que vem, sem falta)ao meu convite para o concerto.

A opção dos meus amigos me fez lembrar uma frase escrita por mim recentemente, à qual não tinha dado muita importância."As coisas têm a importância que se dá a elas" estava na resposta ao comentário de uma leitora ofendida por um texto meu publicado no Morfina. Era apenas a conclusão de um racicíonio, um conselho para que ela não levasse tão a sério as bobagens que escrevo. Ao relembrar, no entanto, me dei conta da profundidade dessas palavras despretensiosas e duvidei que de fato tenha sido o seu autor. Mais provável tê-las lido ou ouvido em algum lugar que não me ocorre. Não sou tão sábio assim, não, senhor.

Não é exatamente esta a medida das coisas? Enquanto a música da cantora inspira a um realizador sua obra-prima, faz fãs menos ilustres repensarem suas existências ou, pelo menos, terem um assunto para o jantar depois do espetáculo (que, por sinal, aqui não acontece: as cozinhas fecham às 23h), meus amigos pouco se fodem para ela. Note: não os estou recriminando por terem preferido os Simpsons - eu também teria ido a essa sessão se não tivesse lembrado dos ingressos já comprados. O ponto (um tanto óbvio) que quero defender é que a mesma coisa que faz alguns perderem o sono faz outros simplesmente bocejarem. Tudo depende da importância atribuída.

É assim com a religião, é assim com a política e também com outros assuntos que, ao contrário desses, se discutem. Filatelistas percorrem o mundo atrás do selo que alguém jogou no lixo anos atrás. Adolescentes apanham de seguranças ao tentar chegar ao palco de um show de rock que faz os vizinhos do estádio ligarem para a polícia reclamando dos decibéis excessivos vindos de lá. A deusa que deu um pé na sua bunda vai levar outro de um sujeito que, ao contrário de você, não vê nada de divino nela. Fãs caracterizados dormem frente às livrarias esperando do último volume da série "Harry Potter", enquanto eu não vi nenhuma das adaptações para o cinema.

Também do cinema e responsável por culto nerd, um dos "Matrix" traz uma passagem bem representativa do que digo. Neo, messias dos humanos vampirizados pela inteligência artificial que domina o mundo e mantém suas consciências na nossa realidade, na verdade uma dimensão ilusória (estou explicando para o caso de você estar para "Matrix" como eu para "Harry Potter"), é levado ao encontro de uma espécie de pequeno Buda da Matrix, um ser iluminado ainda na infância. O personagem do Keanu Reeves, perplexo com a capacidade do moleque entortar colheres (plágio do Uri Geller), ouve do talento mirim: "Não existe colher". Quer dizer, ele só consegue entortar o talher porque se dá conta que, de fato, ele não passa de uma ilusão criada pelos robôs, assim como todo o resto. Já a mãe dele, não tão evoluída, devia ficar puta com tanta colher estragada a cada vez que recebiam visita.

"Não existe colher" é outra formulação para "as coisas têm a importância que se dá a elas" - sabia que uma coisa dessas não podia ter saído minha cabeça. Quando você se dá conta disso, passa a ver as coisas de outro modo. Um idiota faz pouco caso do seu currículo numa entrevista de emprego? Não se sinta humilhado. Fora desse contexto, seu entrevistador deve ser um bosta. Só mais um coitado que passa as noites de sábado com um pullover amarrado no pescoço, um copo de uísque aguado em uma das mãos e nenhuma mulher na outra. Pense nisso, e, ao sair da sala, dê a mão e um largo sorriso para o loser.

Depois, no carro, indo para casa, ligue o rádio. Preste atenção na música. De repente, ela pode mudar a sua vida. Só não vai sintonizar na Alpha ou na Antena 1, hein?

Malas e malas


Existem muitas palavras para denominar alguém sacal. Chamar de "porre", por exemplo, eu acho injusto. Deve ser invenção de algum puritano. Todos sabem, ficar de porre é das coisas mais divertidas que existem - se bem que, geralmente, quem fica de porre acaba também ficando um, principalmente para quem não está.

Alguns preferem "pentelho", gíria que tem em Fausto Silva, ele mesmo um dos grandes, o maior difusor. Acho o termo desmerecedor para com os pelinhos escrotais. Em tempos em que homens utilizam de expedientes poucos masculinos, cortar/raspar os pentelhos virou prática recorrente. Eu, a quilômetros de ser metrossexual, conservo os meus por perto, exatamente ao contrário do que faço com os malas. "Mala", aliás, é a minha palavra preferida para referir-me às pessoas incômodas. E aí sim com merecimento, porque mala é mesmo um troço chato do cacete.

Malas são sempre difíceis de carregar. Por mais rodinhas que tenham as modernas, é só levá-las por uma distância um pouco maior para notar que, na verdade, isso mais atrapalha do que ajuda. As alças, que parecem faltar às pessoas a quem a bagagem empresta o apelido, também não aliviam muito. A não ser que você seja algum talento obscuro do halterofilismo, só aumentam as possibilidades de contusões e escolioses.

Também é um saco arrumar as malas. Se você tenta ser minimalista e coloca apenas o essencial, em algum momento da viagem vai sentir falta de alguma coisa, tipo um baralho de mulher pelada (como pôde ter esquecido algo tão imprescindível?). Ser precavido também não ajuda, na medida em que o peso é proporcional ao medo de deixar algo de fora. Em alguns momentos, o carteado de desinibidas parece pesar tanto quanto as próprias em carne e osso.

Mais difícil que preparar as malas na ida, só aprontá-las na volta. Nesse momento, diante de toneladas de roupa, o precavido pergunta-se por que cacete trouxe tanta coisa, como conseguiu fazer caber tudo aquilo e, mais importante, como fazer para repetir o feito. A vida também não é fácil para o minimalista: por menos que tenha trazido, por poucas que tenham sido suas compras durante a viagem, a única recordação adquirida é invariavelmente grande, pesada e torna a mala impossível de fechar. Mas não dá para culpá-lo: como resistir a um barril de chope alemão de 15 litros?

Sem contar o risco das malas serem extraviadas ou até mesmo roubadas. Aí, sorte dos minimalistas, que, se de qualquer forma sentiriam falta das gostosas do baralho, as encontrarão a salvo no fundo do guarda-roupa quando chegarem em casa.

É aí que reside a única infeliz diferença entre os gêneros. Os malas são bem mais difíceis de se perderem. Se não fossem, duvido que haveria alguém nos balcões de reclamação tentando reaver os seus.

quarta-feira, 18 de julho de 2007

Real Man Of Genius


A menos que você seja publicitário como eu (ou more nos Estados Unidos como o Dr Rey, aquele cirurgião plástico brasileiro de ternos bizarros, que tem um programa de televisão), não deve conhecer aquela que talvez seja a melhor campanha de cerveja já feita: "Real Men Of Genius", da Bud Light. Hilários, os comerciais prestam homenagem a tipos ordinários, de valor discutível, como o "Senhor Cara Que Usa Colônia Demais", o "Senhor Inventor da Salada de Tacos" e, o meu preferido, o "Senhor Cara Que Dança Muito, Muito Mal". Esse último, descobri ser de Portugal.

Encontrei-o há poucas horas, e só não pedi autógrafo para não interromper mais uma de suas belíssimas coerografias. Ao contrário do que diziam os cartazes e os ingressos, o show no Coliseu de Lisboa não era do Artic Monkeys; era do gordinho de cabelo encaracolado e camisa pólo à minha frente. Contrariando os manuais de comportamento em shows de rock, nos quais os movimentos masculinos devem limitar-se a sacudir a cabeça, bater o pé e levantar a mão pedindo cerveja, o bolo-fofo parecia possuído. Não parava de estrimilicar-se, balançava os braços e os cachinhos, a seguir um ritmo que deveria estar sendo tocado em alguma festa em Uganda. Espetacular. Tanto que, depois de tê-lo notado, não consegui voltar minha atenção à banda, por mais que tentasse.

Após a última música, nada de bis. A platéia, conformada, não pediu. Eu também não. Com sua forma pouco atlética, o "Senhor Cara Que Dança Muito, Muito Mal" precisaria de bastante de descanso até conseguir repetir a performance.

sexta-feira, 13 de julho de 2007

Bode Japonês


Nunca fui muito chegado a comida japonesa. Mas, temendo a exclusão do convívio social que seguiria a divulgação de tal heresia, nunca tornei pública esta aversão. Em vez disso, para escapar de convites para "japas"- apelidinho que, não gostando e não tendo intimidade com esses restaurantes, nunca me senti à vontade para usar -, eu apelava para o bode.

O bode nunca foi bem visto. Chifrudo e barbudo, sua cara de poucos amigos sempre o fez ser associado ao mal humor - quem está de bode não está a fim de falar com ninguém. Comendo tudo o que vê e cagando em igual quantidade, também originou a expressão "tirar o bode da sala" - você cria um problema (coloca o bode na sala) e, depois de resolvê-lo, percebe que as coisas não eram tão ruins quanto se imaginava. Nem sempre é assim. A minha história com a cozinha japonesa mostra que, algumas vezes, nem é preciso tirar o bode.

Amigos me chamavam para restaurantes japoneses, e eu, para não ser o tosco que não sabe apreciar essas maravilhas, apelava para o caprino: "não é que eu não gostasse, é que eu estou de bode". Estar de bode de comida japonesa é muito mais perdoável do que não gostar, porque estar de bode subentende que você comeu demais e enjoou - já fiquei com bode, por exemplo, de pudim de maria-mole, minha sobremesa favorita. Portanto, mais do que esconder o fato de eu não ser chegado à família do shushi, o bode dava a entender que eu gostava muitíssimo, tanto que comí quase ao ponto de uma congestão. Com a ajuda do bode, me livrei de vários almoços e jantares regados a saquê (que, por sinal, eu até curto) e à pretensa sofisticação que, não sei por que, sempre foi associada a essa cozinha - samurais e ninjas deviam mandar ver no sashimi após cortar as cabeças dos seus inimigos, e duvido que eles lavassem as mãos entre uma coisa e outra.

Ontem, depois de uma folha de honrosos serviços prestados, resolvi aposentar o bode. Diante do simpático convite da Carol para uma noite de sushi com amigos, não tive coragem de apelar para o marido da cabra. Fui lá e bravamente comi. E, sendo a mesa composta por quatro mulheres e apenas dois homens, comi pra cacete - que eu não sou de deixar comida no prato. Entre arrotos de bolinhos de arroz enrolados com alga, decidi: na próxima vez, simplesmente direi que não gosto da comida nipônica. Mesmo que isso me force ao exílio nas florestas, entre ursos, javalis e ogros.

quarta-feira, 11 de julho de 2007

Mens sana em corpore precisando mijar


Ontem, coloquei meu nome ao lado dos escaladores dos montes mais altos, dos maratonistas que percorreram as mais longas distâncias, dos mergulhadores que atingiram as maiores profundidades. (E, como os deles, o meu nome também não será lembrado por ninguém.) A exemplo desses bravos, desafiei os limites da mente e do corpo humano.

Um pouco mais orientado na capital lusitana, aventurei-me por suas ruas em tarefas cotidianas. (Não que trocar traveler cheques e comprar ingressos para shows de Artic Monkeys, Nouvelle Vague e Aimee Mann seja uma coisa que eu faça todo dia, mas certamente há algum maluco que viaja o mundo acompanhando as três bandas, e ele deve agir assim sempre.) Com surpreendente desenvoltura, fui ao banco e depois ao Coliseu, lugar onde seriam dois desses concertos. Entre um lugar e outro, numa parada de horas para ler de graça na Fnac, começou a prova de resistência. Puro espírito olímpico.

Rodeado por quadrinhos de toda parte do mundo, fiz uso de técnicas aprendidas com um sensei oriental - manja o Stick, mestre do Demolidor de Frank Miller? - e suportei a visão do paraíso sem mexer nos euros recém trocados que tinha no bolso. Mas minha força vontade enfrentaria provações mais duras. Ainda na sessão de banda desenhada (como eles chamam os quadrinhos) da Fnac, me bateu o aperto de mijar, confrontado com necessidade rival: a sede. Olha a encruzilhada: tava doido para beber água, mas, se o fizesse, perigava me urinar. Não tinha naquele momento a intenção consciente de me testar - só não atendi minhas urgências porque não encontrei banheiro e bebedouro. Porém, bastou ganhar as ruas e passar por dezenas de bares, onde encontraria o que precisava, para aquilo virar mesmo uma questão de honra. Faria tudo o que tinha de fazer e, só ao chegar na casa de meus amigos, cederia ao luxo de molhar a garganta e a privada. Consegui. E, ao chegar lá, foi como se alcançasse o topo de uma montanha e nele fincasse uma bandeira (se é que isso dá tanto alívio).

Não se impressionou com minha façanha? É, o pensamento vigente não valoriza o verdadeiro heroísmo. Em vez disso, preferimos aplaudir feitos absolutamente inúteis, como expedições a lugares distantes ou quebras de recordes. Se um lugar não tem cerveja gelada ou tv a cabo, por que ir até lá? Prefiro ficar em casa. Para que correr 100 metros em dois segundos? Nada é tão urgente. Agora, resistir à vontade de usar o banheiro, isto sim tem função. Assim, você já está preparado para quando não houver nenhum por perto.

Conseguir não comprar as tentadoras edições de Love And Rockets e American Splendor, apesar de triste, também foi vital. A grana no meu bolso, afinal, era para subsistência. Mas, nesse quesito, ainda preciso de mais algum treinamento. Acabei levando um álbum. Desenhos do Manara e roteiro do Fellini por só 5,50, também já é sacanagem.

segunda-feira, 9 de julho de 2007

Ditaduras loiras


Apesar de muitos condenarem a ditadura cubana, estive lá há alguns anos e não tenho nenhuma crítica em relação ao regime. Claro, é bom ter opção, poder exercer o direito de escolha, mas não vi ninguém reclamar. Portugal, por outro lado, um país supostamente democrático, oprime seu povo de maneira desumana. Opa, quem falou em política? Este texto é sobre cerveja.

Na ilha de Fidel, o dono controla tudo. Se o desemprego é grande, se faltam produtos básicos nos mercados, se o acesso ao mundo exterior é precário, pelo menos na gelada o tiozinho barbudo está mandando bem. Lá só existem duas marcas, ambas de fornecimento estatal: Crystal, suave como sugere o nome, e Bucanero, ignorante como um - graduação alcoólica de mais 5%. Não nos deixavam sentir saudade dos rótulos nacionais (esses que alguns tiram da garrafa e colam na mesa ou no copo, nunca soube exatamente por quê). Só não eram melhores que o rum porque, bem, porque nada em Havana é melhor que o rum.

Quase três anos após minha visita a um dos últimos rincões comunistas, chego a Lisboa em meio a um festival de rock promovido por um fabricante de cerveja local. Como era de se esperar, só se encontrava a marca do patrocinador: Super Bock, bem mais ou menos. Ah, mas os shows eram tão legais que valiam o sacrifício. "Só assim para fazer a galera beber isso aqui", pensei. "Uma estratégia que a Kaiser também poderia adotar. Se bem que, para dar certo, eles precisariam trazer os Beatles." No dia seguinte, não precisaria tomar mais aquele líqüido com gosto de remédio - só o gosto porque, em vez de curar, dava dor de cabeça.

Mal sabia que, como no país caribenho, no ibérico também só há duas marcas. Além da Super Bock, Sagres, que, se não é motivo para contar os minutos para o happy hour, ao menos não faz a cabeça latejar - não se consumida em quantidades modestas. Em qualquer bar que se vá, não tem jeito: ou é Sagres ou Super Bock. Ou, pior, só Super Bock - a marca tem exclusividade em muitos estabelecimentos.

Resumindo: pelo sabor, o melhor seria não tomar cerveja nestas bandas. Por que não substituí-la por vinho, de qualidade e preço muito mais convidativos? Simples: porque sou macho, e macho que é macho bebe cerveja, não vinho.

Se você não for macho o suficiente para encarar Sagres ou (éca) Super Bock, ou se não estiver disposto a abandonar a cerveja - e para abandonar a cerveja, só não sendo macho o suficiente -, sempre existe o aeroporto. Nisso, Portugal leva vantagem em relação a Cuba. Quem não estiver feliz com a ditadura, pode simplesmente deixar o país.

domingo, 8 de julho de 2007

Não há Cristo Redentor que agüente


Celebridades, enormes aglutinações de gente, grandiosidade e estupidez. Como na frase anterior, algumas das coisas que mais repudio estavam reunidas no evento ocorrido ontem em Lisboa. A divulgação do resultado da eleição das "Novas Sete Maravilhas do Mundo" mobilizou todas as atenções na capital portuguesa nos últimos dias.

Não que todos se interessassem por isso. Era mais porque não dava para ligar a televisão ou ler o jornal sem se deparar com algum comercial ou matéria referente ao acontecimento. Até um simples passeio pela rua tornava-se arriscado para quem pretendia evitar essa chatice: a qualquer momento você podia dar de cara com um horrendo painel publicitário relacionando algum produto, até os mais improváveis, a essa cretina votação. (Onde está o Kassab numa hora dessas?) Até a falta de assunto era ameaçadora, já que as maravilhas tomaram o lugar da previsão do tempo e do trânsito como preenchedora do silêncio.

Ainda na Colônia, tinha tomado conhecimento dessa cretinice, também bastante divulgada lá por que tínhamos ("tinhamos"?) um representante entre os concorrentes - o Crishto Redentorrr -, mas fiz o possível para saber o mínimo sobre o assunto. Ato falho. Como dizem as campanhas de prevenção da AIDS e do câncer, a informação é sempre o melhor remédio. Soubesse eu que a divulgação ocorreria em Portugal, teria adiado minha viagem ao País até que o assunto já o tivesse descontaminado. Ao invés disso, cheguei a Terrinha bem na semana do "grande momento". Todos estavam ansiosíssimos, apesar de eu não ter notado olheiras causadas por noites de sono perdidas em ninguém que cruzei. Todos queriam estar lá quando fossem abertos os envelopes, mas estranhamente os caríssimos ingressos estavam encalhados e a organização teve de fazer promoções para diminuir o preju.

A maré de sorte que atravesso confirmou-se quando a Carol, mulher do Fábio, disse ter arranjado convites para a grande noite. Mas, antes que eu pudesse dizer que, infelizmente, tinha esquecido o smoking em casa e não poderia comparecer a um evento de gala como aquele sem um, meus amigos disseram que também não estavam a fim de ir. O pouco que vi na tv confirmou minhas expectativas de que, perdoe-me o trocadilho, não seria nenhuma maravilha. Nem a grande quantidade de vinho que tomei ajudou a melhorar.

Antes de dormir, agradeci a Deus por ter me poupado. Mas notei que ele ficou meio chateado por eu não ter ido prestigiar seu filho.

sexta-feira, 6 de julho de 2007

Naufrágio urbano

Um livro lido na faculdade dizia que, para se conhecer de fato uma cidade, deve-se perder nela. Era uma analogia com a filosofia, não sei bem o propósito, mas isso não vem ao caso. Ocorre que, recentemente, essa passagem me veio à cabeça e, na hora, quis mandar seu autor à merda. Novamente, estava sem rumo numa cidade estranha e, como em todas as vezes que aconteceu, isso em nada me ajudou a conhecê-la.

Ia ao encontro do Fábio, amigo em cuja casa estou hospedado em Lisboa. O trajeto era simples, pouco mais complexo que uma reta, porém, me conhecendo como apenas quase 30 anos de convívio com alguém permitem conhecer, sabia que erraria. Ao invés de combinar um almoço, deveríamos ter marcado um um happy hour ou ainda um jantar - se bem que dois homens jantando, hum, sei não. Se me perco até em cidades onde posso pedir informações, que dizer de uma em que nem minha língua falam? (Como você sabe, o que se fala no Brasil não é português.) Só nos encontramos depois que ele já tinha almoçado, claro. E eu, mesmo com duas pizzas de baixo do braço, tive de procurar um restaurante para comer só.

A falta de senso de direção, aliada ao pouco dinheiro que costumo carregar - a quem chame isso de pão-durice -, já rendeu boas histórias. Em Praga, por exemplo, saindo sozinho de uma danceteria, me recusei a pegar um táxi e fui a errar (em amplo senido) pela cidade. Mas lá, sim, falam minha língua. Parei para pedir informações no único estabelecimento aberto logo na manhãzinha de domingo, e o dono foi muito simpático. Jornaleiro nada. Atrás da máquina de chope, o taberneiro foi logo me oferecendo um -- "café da manhã", segundo ele. Tomei mais uns quatro, todos por conta da casa, honrada por receber um brasileiro em tempos de Copa. Em umas das mesas, um italiano e um mexicano, num idioma primo do esperanto, debatiam sobre o imperialismo americano e envolveram a mim, irmão latino oprimido, na conversa. Papo chato da porra. Tanto, que me fez abrir mão da infindável fonte de cerveja gratuita existente naquele boteco e, novamente, tentar voltar para o hotel. Tarefa que a generosidade do dono do boteco tornara bem mais difícil.

Toda vez que me perco, confesso, chego a imaginar que nunca mais vou me encontrar. Imagino que, cansado de procurar meu rumo, sentarei e ficarei entregue à boa vontade de quem me dê um trocados, até que espalhem cartazes de "desaparecido" com uma foto minha, alguém me reconheça e me leve para casa. Ei, até que não é má idéia.

Anotações mentais com tinta invisível


Sou um observador atento do cotidiano. (Toca uma campainha. Confetes e serpentinas caem sobrem mim. Uma caixa de supermercado aperece do nada: "Parabéns! Você foi o milionésimo ducentésimo vigésimo terceiro pretenso cronista a se descrever como 'observador atento do cotidiano'". Ainda surpreso com o fato de uma caixa de supermercado ter um conhecimento tão bom de numeração ordinal, penso que nem para ser o milionésimo eu tenho competência.)

Na verdade "observador desmemoriado do cotidiano" me descreveria melhor. No dia-a-dia, eu faço aquelas análises espertinhas, até meio inusitadas, dos acontecimentos, como todo pretenso cronista/observador atento do cotidiano. O problema é que, quando me sento para escrever, não consigo lembrar de quase nada, só das partes que não tem lá muita graça. Uma boa explicação para o fato dos meus textos também não terem. (Novamente, toca a campainha. Mais uma vez, caem confetes e serpentinas. A mesma caixa de supermercado aperece do nada: "Parabéns de novo! Você foi o... Você foi o... O pretenso cronista número dois milhões quinhentos e oitenta e três mil trezentos e catorze a fazer uma piadinha auto-depreciativa." Arrá! Sabia que uma caixa de supermercado não podia manjar tanto de numeração ordinal.)