quinta-feira, 19 de novembro de 2015

“l'll never make that mistake again.”

Um sortudo teve seu "Viva Hate"  autografado
Ouvi a frase na última terça, durante o show do Morrissey. Mas não veio da boca do ex-vocalista dos Smiths, cantando "Girl Afraid”, sucesso de sua antiga banda. Quem falou foi meu amigo Rodrigo. Ao meu lado na plateia do mezanino do Teatro Renault, ele se lembrou dos shows que tínhamos visto em Dublin, quatro anos antes, quando segurei a mão de Deus, e ele, a de Bozz. Quem leu “Quem Vai Ficar Com Morrissey?” conhece a história dos shows que vimos em Dublin, no minúsculo Vicar Street, narrada por mim na introdução do livro. Era àquela experiência que o Rodrigo comparava o lugar de onde assistíamos ao primeiro show do Morrissey em sua atual turnê brasileira. 

Diferente dos seguintes, esse show também era mais restrito, e nossos ingressos, mesmo não sendo os mais privilegiados, haviam sido bem caros. De onde estávamos, tínhamos uma excelente visão de Moz e sua banda, mas faltava aquela proximidade vivida em terras irlandesas, de que os felizes compradores de ingressos nas primeiras fileiras puderam desfrutar. Foi a inveja dessas pessoas, dentre as quais o sortudo que conseguiu entregar um LP "Viva Hate" para ser autografado por Moz em pleno palco, que levou meu amigo a citar o single dos Smiths. O erro que ele jamais cometeria de novo seria assistir a um show do Morrissey de tão longe.

Mas, para nós, Morrissey nunca esteve longe. Se o sentimos próximo mesmo quando está em outro continente, naquela noite não poderia ser diferente. Como ele estava à vontade no palco, o único lugar onde diz ser feliz de verdade. Como estava simpático, conversador como nunca o tinha visto antes, nem na sua Inglaterra, que lhe deve uma vida e fala seu idioma. Como parecia cantar com vontade, mesmo aos 56 anos, mesmo após mais de 30 anos fazendo aquilo, mesmo estando a enfrentar um câncer. 

Foi de se aplaudir em pé, mas não só. As cadeiras numeradas e confortabilíssimas do teatro tornaram-se inúteis para mim e meu amigo assim que o show começou. Perto de nós, ao contrário dos felizardos da plateia inferior, a maioria só se levantava nos maiores hits: no avassalador começo com “Suedehead” e “Alma Matters”, depois com “This Charming Man”, “How Soon Is Now?”, “Everyday Is Like Sunday”. Eu e o Rodrigo, não: “Porra, assistir show de rock sentado? Não tem cabimento”, dizíamos um para o outro, nos recusando ao conforto que os joelhos cobravam. 

À nossa frente, a única exceção próxima: uma menina adolescente, com camiseta do Morrissey, cantando todas as letras, dançando o tempo todo, em transe. Ao contrário da amiga — ou irmã, sei lá — ao lado, a garota não encostou no celular: assistiu ao show como se fazia na época em que isso era mais importante do que mostrar para os outros que se estava assistindo, como se deve fazer. Por isso, e pela devoção demonstrada, foi a responsável por me fazer recuperar parcialmente a fé no futuro.  

Bem jovem, Morrissey abandonou o nome de batismo e passou a ser conhecido pelo sobrenome do pai, de quem ironicamente nunca foi próximo. Odeia o nome Steven, coisa que qualquer fã sabe. Mas terça, mais uma vez, provou que com a versão hispânica a história é outra: “Soy Esteban”, se apresentou em espanhol, depois de toda a banda, em mais uma prova de bom humor. Disse para os presentes ter andando de carro por São Paulo, “uma cidade muito bonita, cheia de gente bonita”. Disse que somos sortudos por morar aqui. (Quem, como eu, mora a pouquíssimos quilômetros do lugar daquele show, não tem a menor dúvida disso.) Contou, também, ter sido chamado para participar de “um programa de televisão chamado Fantástico” e perguntou se deveria aceitar o convite. A resposta veio em vaias, que, como lembrou uma leitora-amiga, só faltou virem acompanhadas do coro “o povo não é bobo, abaixo a rede Globo”. Se cantassem isso, estariam errados: o povo (ali presente) é bobo, sim. Sendo no Fantástico ou em qualquer outro programa, seria bacana ver nosso ídolo na TV brasileira. 

O repertório foi tão bom quanto se podia esperar, a menos que você não fosse fã e não soubesse como funcionam seus shows. Ainda produtivo e inspirado, Moz não vê sentido em saudosismo, seus concertos não são celebrações de um passado glorioso. Como diz a letra do hino do meu time (para quem não sabe, o Santos), a carreira de Morrissey é “um passado e um presente só de glórias”. Por isso, embora tenha começado com seu primeiro e maior hit solo e tenha incluído algumas clássicas dos Smiths, o setlist contemplou boa parte do seu último disco e diversas faixas mais recentes, como as lindas “I Will See You Far Off Places” e “I’m Throwing My Arms Around Paris” — esta, revestida de outro significado desde os recentes atentados terroristas à capital francesa, tocada já no bis e ovacionada. 

Ainda sobre o repertório, destaco a linda versão de “The First Of The Gang To Die”, em que a história do pobre Hector ganhou uma sonoridade country, e “Reader Meet Author”, do subestimado “Southpaw Grammar”. Tenho um apreço especial por essa segunda, principalmente depois de ter publicado “Quem Vai Ficar Com Morrissey?”. É a ela que me refiro quando, numa entrevista contida no livro, o editor Marcelo Viegas me pergunta que música toca na minha jukebox mental quando penso no lançamento. A canção é uma série de alfinetadas na imprensa musical britânica, que, segundo Moz, apenas ouve o jeito como sua triste voz canta e começa a imaginar coisas. Para mim, entretanto, trata de encontrar leitores, algo que sempre gosto de fazer, seja virtual ou pessoalmente. Até porque todos gostam de Morrissey, e não conheço quem goste e não seja gente boa.   


Ao fim do show, a certeza de ter visto algo memorável e único, mesmo se tratando da oitava vez  em que tive a honra e o privilégio de ver Morrissey ao vivo. Seguramente, uma das melhores. Só não se compara aos shows de Dublin porque, bom, nada se compara. Sábado, a catarse vai se repetir. Mas, infelizmente, vou cometer mais uma vez o erro a que o Rodrigo se referia. Já tendo gastado bastante no ingresso de terça, comprei o do show de sábado para um setor mais popular — leia-se longe do palco. 

2 comentários:

Tuani Mallmann disse...

Ótimo texto!
eu fui a sortuda do Viva Hate autografado. Foi um baita presente de aniversário, nunca pensei que ele iria ler meu cartaz e assinar o disco.
grande show, grande dia!

Leandro Leal disse...

Oi, Tuani! Então, você é a maior de todos lucky bastards, hein? Baita inveja! Parabéns duplamente! Beijo PS: Leia meu livro. Acho que você vai curtir.