sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Acenda o charuto, digo, o farol



A lista das coisas que não consigo entender é extensa. Um sem número de acontecimentos, fenômenos, leis e pessoas passam por mim sem que eu consiga ver neles além da superfície – em se tratando de mulheres voluptuosas, isso me deixa particularmente chateado.

Mas, mesmo com meus parcos recursos, no decorrer dos anos, alguns dos mistérios que me cercam foram desvendados. Sei do que são feitas as nuvens (desisti de me alistar na aeronáutica ao descobrir que não eram de algodão doce), sei quem matou a Odete Roitman (ao contrário das nuvens, essa descoberta não trouxe grandes conseqüências na minha vida), faço idéia de como o rádio funciona (se na época fiquei aliviado por saber que o povo de Liliput não era prisioneiro nos aparelhos, hoje sei que a teoria era furada: afinal, é difícil imaginar alguém confinado num cubículo com disposição para cantar. E mais: como os pequeninos dariam as notícias, se, encarcerados e sem receber visitas, não tinham como saber o que acontece no mundo lá fora?). O fato é que, comparada às coisas que me escapam, a pilha das que domino tem a altura de uma gilete.

Aquela ânsia por respostas, tão comum às crianças, que Sócrates dizia ser essencial ao filósofo, confesso, diminuiu em mim com os anos. Conformado com as coisas sendo do jeito que são por que são, não levo jeito para a filosofia – pelo menos, não até a terceira cerveja. Minha relação com boa parte dos fatos que compõe a existência não vai além dos beijinhos, e não que eu já não tenha tentado colocar a mão por baixo da blusa. Ocorre que, diante das seguidas recusas do universo em se fazer entender, eu simplesmente brochei. Não quero com isso dizer que minha curiosidade deixou de existir. Ainda procuro explicações, mas me resigno quando elas dizem que estão com dor de cabeça.

Houve, no entanto, um camarada que, apesar de velhusco, tinha muito mais tesão que eu. Você talvez já tenha ouvido falar em Sigmund Freud. Sujeitinho buliçoso, não cansava de buscar porquês para tudo, e a maioria dos que encontrava era relacionada ao sexo. Daí dele, cheio de tesão como já disse, não parar de ir atrás deles (porquês). E a libido do velho era tal que ele não perdoava nem a mãe, invariavelmente colocada no meio. Mesmo questionadas até hoje, suas teorias influenciaram não só a psiquiatria, mas todo o pensamento moderno, cristalizando-se num dos maiores clichês de que se tem notícia: o famigerado “Freud explica”.

Já que o careca, mesmo muito depois de morto, continua se oferecendo para explicar o mundo, recorrerei a ele para responder um dos raros dilemas que ainda conseguem me incomodar: por que cacete os motoristas não ligam os faróis quando entram nos túneis durante o dia? E mais: por que diabos muitos não acendem nem mesmo à noite? Para mim, que, ao mínimo sinal de penumbra, já aciono as luzes do possante, é muito difícil de compreender – como, aliás, são todas as coisas que ignoro. Nesse caso, porém, mais do que me intrigar, esse comportamento compromete minha segurança, já que aumentam as chances de acidentes (não que eu precise de ajuda externa para me acidentar no trânsito), e, por isso, recorro ao pai da psicanálise para chegar ao cerne da questão.

Não manjo quase nada (para variar) de psicanálise, mas, lançando mão do conhecimento que qualquer brasileiro médio tem sobre a vertente analítica – ou seja, quase zero -, vou tentar justificar a imbecilidade dos condutores. Como disse anteriormente, a base do pensamento freudiano é a sexualidade. “Farol aceso” é, no Brasil, uma metáfora para a excitação sexual: no populacho, costuma-se dizer de uma mulher com os mamilos enrijecidos que ela está de (faróis acesos). Assim, a relutância do brasileiro em acender os faróis no trânsito remete ao fato de essa praga urbana ser extremamente brochante. No congestionamento das grandes metrópoles, de quilômetros e quilômetros, não há quem consiga ficar “de farol aceso”. Daí, explica-se a recusa em botar as lâmpadas dos veículos para funcionar. Uma explicação bem razoável.

Mas pode ser que não seja. Afinal, o próprio Freud disse que, “às vezes um charuto é apenas um charuto”, negando qualquer relação entre a aparência fálica dos cubanos que sempre fumava e uma suposta homossexualidade. E talvez se desculpando no caso de alguma de suas teses fosse derrubada. Eu, longe da genialidade do austríaco, me antecipo aos críticos: a explicação é furada. Parafraseando o pouca telha, “às vezes um farol apagado é apenas um farol apagado”. E assim, mais um aspecto da nossa mundana existência segue sem a minha compreensão. Tudo bem, já estou acostumado.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Vira-latas jogam vídeo-game durante o carnaval


Quarta-feira de cinzas. O corpo cobrando a fatura dos dias mal dormidos e bem bebidos do carnaval carioca, eu voltava com o Sérgio e o Costela rumo à nossa realidade, nem de longe tão divertida quanto a que abandonávamos. Sentado no banco de trás, folheava o suplemento dum jornal local, quando deparei-me com o clássico “dicas para quem quer ‘pular’ o carnaval” (óbvio, era publicação anterior ao feriado). Depoimentos de gente que tem aversão à folia de momo. Mesmo estando num dos principais focos da festa, essa turma – de pele propositadamente branca, para fugir ao padrão local – adiantava que se refugiaria nos cinemas, nos shows de rock e, meu Deus, até no vídeo-game. Para esse povo, a coisa só começa a ficar boa a partir do fim do desfile das campeãs, quando já não sobrarem nem as cinzas do festerê.

Vendo a expressão de tédio dos entrevistados, aquele olhar ridículo perdido no nada, diversas vezes eu quis soca-los. E diversas eu os soquei – se é que dá para dizer que, socando o jornal, eu os socava. Acabava de passar meu primeiro carnaval no Rio e, mesmo decorrido tão pouco tempo, já o classificava como o melhor de sempre. Assim, como aquele pessoal, de idade e gostos tão próximos aos meus (odeio admitir isso), poderia não curtir aquela bagunça genial? Talvez você também não seja fã de carnaval, eu entendo, mas, antes de resumir o meu ponto de vista à questão de gosto, deixa eu terminar de falar, mal educado.

Se me permite chover no molhado (engraçado: alguém que diz que vai chover no molhado, já o está fazendo antes mesmo de começar), o carnaval é um estado de exceção, é uma licença poética para se fazer o que bem entender. É mais ou menos como uma guerra civil: só que, ao invés de quebrar vitrines e violentar mulheres indefesas, as pessoas só quebram protocolos, e as mulheres, longe de serem indefesas, só se deixam “violentar” por quem quiserem. Homens vestem-se de mulher e, bem, mulheres se vestem de mulher mesmo. É diversão garantida ou seu dinheiro de volta – a menos que você, bêbado, o tenha perdido em meio à balburdia.

Nunca li Darcy Ribeiro ou Sérgio Buarque de Holanda, mas aposto que, em suas obras, fundamentais para o entendimento do “ser brasileiro”, eles referem-se ao carnaval como a expressão máxima da alma nacional. (Se não se referem, poderiam colocar essa minha frase em alguma das revisões dos livros. Juro que não cobraria créditos.) Tanto é assim, que muitos dos lugares-comuns associados ao nosso povo são, de alguma forma, relacionados à essa festa: a mulata, o samba, a alegria, a irreverência, a sensualidade, o requebrado. É verdade também que nem todos os brasileiros correspondem a esse estereótipo – é por isso que tem esse nome, amiguinho. (Eu, por exemplo, manchei a reputação do país toda vez que dancei no exterior.) É uma caricatura da nossa gente, e, como nas ilustrações do tipo, os traços mais marcantes são exagerados – pode não corresponder exatamente à realidade, mas também não se pode ignorar.

Arrisco-me a dizer que a aversão ao carnaval é, de certa forma, aversão ao “ser brasileiro”, e não só ao que isso representa de ruim. Gostar de um país é como gostar de qualquer pessoa: não dá separar só o que interessa. Você convive com os defeitos porque sabe que as virtudes são maiores – ou manda passear porque acha a equação desigual demais. Não gostar do carnaval é assumir o rótulo de “nação de vira-latas” que nos foi conferido há mais de cinqüenta anos por Nelson Rodrigues, outro profundo conhecedor (e crítico) da natureza verde-amarela.

Talvez eu tenha exagerado um pouco nesse meu tratado sociológico. Lendo o que acabei de escrever, achei meio pueril. Talvez você, que não gosta de carnaval, tenha razão. Deve ser questão de gosto. Mas, se é questão de gosto mesmo, você deve ser um chato.