sábado, 25 de março de 2017

Reencontro com Renton


Sequências de filmes existem muitas. (Com a falta de roteiros originais realmente originais, aliás, é o que mais existe.) Mas nenhuma, entre tantas, é capaz de despertar sensações e sentimentos equivalentes aos provocados por "T2", continuação do clássico "Trainspotting", de 1996. Filmado por Danny Boyle vinte anos depois do primeiro, leva a inevitáveis comparações, envolvendo os filmes, os personagens e até nós mesmos. Muito aconteceu neste intervalo de duas décadas e, sendo o primeiro filme tão icônico, é fácil usá-lo como marco, fazer-se aquelas perguntas comuns a eventos transformadores, do tipo "onde você estava quando isso aconteceu?". 

O primeiro "Trainspotting" pode não ter abalado o equilíbrio geopolítico como o 11 de setembro, mas, da mesma forma que os aviões que atingiram as Torres Gêmeas não foram só algo que passou no noticiário, não foi apenas mais um filme que esteve em cartaz. Coloca-se ao lado de "Pulp Fiction" como uma das obras que definiram uma década e -- até mais que a obra máxima de Quentin Tarantino -- uma geração. Muita gente hoje na faixa do trinta e muitos aos quarenta e tantos se vê representada ali, mesmo que o contato mais próximo que tenha tido com a heroína tenha sido por meio da música do Velvet Underground. Quem não quis ser Mark Renton, ainda que isso implicasse em ser um drogado fodido, tentando se livrar do vício, da polícia e das porradas do Begbie? A graça de "T2" está em reencontrar o anti-herói e sua turma depois de tanto tempo, ver o que os anos e as escolhas fizeram com cada um. O que talvez seja um problema é que isso pode levar você a fazer isso também consigo mesmo. Aconteceu comigo. Falo disso mais para frente.

Assistir "T2" é como conversar com alguém há muito afastado: ouvem-se algumas novidades, mas o que dá sentido ao papo é o passado comum. Exatamente como numa conversa desse tipo, o filme faz sucessivas referências ao antecessor, seja por meio de flashbacks, de cenas novas que mais parecem reproduções de takes hoje históricos (a cena em que Renton sai da privada, por exemplo) ou mesmo de diálogos. Por isso, quem assistiu "Trainspotting" nos anos 1990 e tem uma relação afetiva com o filme vai, sem dúvida, se divertir e se emocionar muito mais com "T2". Foi para essas pessoas, os antigos amigos, que o filme foi feito. 

Na ida para o cinema e, principalmente, na volta, não conseguia deixar de pensar na minha versão de dezenove anos, a que assistiu a "Trainspotting" pela primeira vez. Duro, solitário, angustiado, ansioso pelo futuro -- não por esperar muito dele, mas por não gostar daquele presente e querer me livrar dele o quanto antes. Com um milhão de coisas passando pela cabeça, pelo coração e fracassando a cada tentativa de transformá-las em palavra escrita. Lembro das minhas tentativas de texto. Se já eram capazes de me envergonhar na época, sem chegarem a ser lidas por ninguém, agradeço por, naquele tempo, a Internet ainda não ter se popularizado. Para minha sorte, nenhum desses registros sofríveis está disponível. Ufa.

Há meses dos 40 anos, consegui me livrar de quase todos os adjetivos que me descreviam na juventude. A ansiedade sobre o futuro quase nula, substituída por um certo medo pelas próximas gerações. O por vir não é um lugar que eu esteja louco de vontade de conhecer. A principal diferença, no entanto, entre meus 19 e meus 39 está no fato de, por fim, ter encontrado minha voz. Além deste modesto blog, tenho um livro publicado e outro pronto, à espera de uma editora.

Não deixa, também, de ser simbólica a coincidência: bem no dia em que reencontrei Renton, Spud, Sick Boy e Begbie, dei início aos trabalhos do meu terceiro romance. Seria esta a principal novidade que teria para lhes contar, caso os encontrasse no pub do Sick Boy. "Escolha a vida. Escolha trabalhar mais de 10 horas por dia e, nas horas vagas, continuar trabalhando em coisas que ninguém vai ler", diria o Renton, com aquela sinceridade a que só os velhos amigos têm direito.

quarta-feira, 8 de março de 2017

Hopper em São Paulo


Sentada a uma das mesas postas na calçada, ela contrastava com os outros frequentadores do boteco. Não fazia parte de nenhum grupo ruidoso, não tinha sequer companhia. 

     Seu humor também era outro. A noite agradável de fim de verão não era o bastante para deixá-la animada, nem acompanhada da cerveja gelada que o clima pedia. Olhar fixo no nada, entediada, alternava tragos no cigarro e goles na Brahma. Seus traços nada tinham de notável, e a roupa, igualmente sem graça, ornava à perfeição. 

     Camuflada involuntária, passaria despercebida por todos, não fosse por eu passando por ali, voltando do trabalho. Encantado por seu desencanto, guardei sua imagem por mais tempo do que a vi. Mas não me ocupei em tentar criar uma narrativa que justificasse sua solidão, ou em sondar, também por meio da invenção, o que lhe passava pela cabeça. Talvez estivesse somente entretida com seu tédio, cheia do seu vazio, muito bem acompanhada por ninguém. Poderia estar ocupada não de uma saudade, não de uma desilusão qualquer. Quem sabe pensasse mesmo em nada, que é em que essas coisas afinal resultam. 


     Sorvia a fumaça e o álcool sem saber que continuaria fazendo aquilo por muito mais tempo, na minha memória. Eu ainda a apreciaria sem pressa, como a um quadro. Um de Hopper, de cuja obra ela parecia ter saído, protagonista solitária de um melancólico quadro urbano.

segunda-feira, 6 de março de 2017

"Moonlight" e a bondade


Sou um notório ranzinza, famoso pelo mau humor. Daí, muitos confundem esta acidez com pessimismo. Mesmo não sendo bem o caso, admito que não sou dado a declarações públicas de fé na humanidade, como uma que fiz esses dias, no Facebook. Falava sobre como existe "gente boa neste mundo, né?" e era motivada por um ato gratuito de generosidade feito por alguém que conheço unicamente através da rede do Zuckerberg — o post era motivado também, claro, pelas cervejas carnavalescas.

     Admito que, depois de ter escrito aquilo, já inteiramente sóbrio e sem considerar a humanidade tanto assim, me deu uma certa vergonha. O post depunha contra minha má fama, tão bem cultivada diariamente, à custa de uma profusão de censos franzidos e palavrões. Mesmo assim, decidi não apagar a frase poliana. Da mesma forma, mantive minha opinião: tem muita gente boa, sim, neste mundo. 

     A comprovação veio ontem, quando fui ao cinema ver o vencedor do Oscar de melhor filme, "Moonlight". Escolhi os lugares, comprei os ingressos no totem de auto-atendimento e coloquei o comprovante no bolso. Fomos tomar um café antes do filme começar e, ao procurar o papel... É, mais uma para a longa lista de coisas perdidas em todos estes anos de desleixo. Antes de ficar (ainda mais) puto comigo mesmo, cabia uma tentativa, uma aposta nas tais pessoas boas que, de acordo com o meu post, tem aos montes por aí. Vai que o gerente do cinema fosse uma delas, né? Vai que, ao ouvir minha história, ele acreditasse na minha sinceridade? Afinal, não deveriam ser tantos os picaretas que o abordam dizendo ter comprado ingressos e perdido o papelzinho. Desses, se houver, quantos afirmam se lembrar dos números dos assentos? Não custava tentar. Já não tentar me custaria os quase 50 paus pagos nos ingressos.

     Fui falar com o cara, sem acreditar muito nas chances de êxito, apesar de toda a racionalização tentar apontar o contrário. A experiência me dizia: "Pequenas autoridades vão exercer seus poderes em seu detrimento sempre que possível, Leandro". Mas não àquele dia, pessimismo. Mal terminei de falar, o sujeito já estava orientando a bilheteira a liberar nossa entrada. Não teve nenhuma bronca, do tipo "mas é só dessa vez, hein?", nenhuma ênfase exagerada no fato de que estava quebrando o protocolo e o meu galho. "Bom filme", foi tudo o que disse. 

     E o filme, de fato, era bom. Era excelente. Depois da confusão na cerimônia do Oscar, em que, antes de "Moonlight", o prêmio de melhor filme foi dado por engano a "La La Land", longe de ser um blockbuster como o de Demien Chazelle, o filme independente de Barry Jenkins foi beneficiado pela publicidade adicional. Que história seria aquela, envolvendo negros, homossexualidade e drogas, que havia tirado a estatueta careca do musical, limpinho, bem feito, saudável, entretenimento para toda a família?

     "Moonlight" joga luz sobre a trajetória de Chiron, garoto preto como tantos ao seu redor, solitário como nenhum. Incapaz de se encaixar no ambiente hostil que o cerca, ele cresce à revelia do machismo, da violência e da pobreza. Cresce isolado em si mesmo, estabelecendo contato com poucos, com poucas palavras. Negando sua verdade sem sequer conhecê-la. Criado pela mãe drogada, encontra no traficante que lhe abastece o vício uma improvável ajuda, o modelo masculino determinante para toda sua vida. Quase toda a bondade que Chiron recebe ao longo da vida é assim: vem de poucas pessoas e é dúbia. Seu único amigo homem além de Juan é outro exemplo. Confortável no ambiente que oprime Chiron, Kevin o acompanha pela vida e pelas três partes do filme, lhe oferecendo apoio e conselhos. Mas, incapaz de se rebelar contra o contexto, para manter-se inserido nele, acaba traindo sua confiança. Há bondade incontestável na trajetória protagonista, mas ela vem de apenas uma pessoa: Teresa, namorada de Juan, a figura materna a preencher a gigantesca lacuna deixada pela mãe. Essa bondade incerta e escassa, porém, é o que faz Chiron sobreviver. É ela que alimenta sua essência, mas, por ser tão pouca, engrossa  sua casca e permite que ele prossiga. 


     Por isso, apesar de retratar a intolerância, "Moonlight" é a confirmação do otimismo do meu post. Sem as pessoas boas que há no mundo, ainda que não sejam a maioria, não existiriam histórias como a de Chiron. É preciso ter bondade, também, para se contar uma história assim, com tamanha poesia e sensibilidade. Bondade foi necessária, inclusive, para a equipe de "La La Land", que, mesmo depois do discurso de dois dos três produtores, ao tomar conhecimento do engano, humildemente entregou o Oscar diretamente nas mãos dos responsáveis por "Moonlight". É preciso acreditar na bondade — talvez sendo um tanto Poliana, como posso parecer — para ver na confusão da entrega do prêmio um simples erro, e não um esquema hollywoodiano qualquer.