quinta-feira, 20 de março de 2008

Sem remetente


Invariavelmente cansado e faminto, ao chegar do trabalho, mal dava atenção à correspondência. A fatia de pizza de sábado e o sofá afundado, por pouco sedutores, ainda eram mais atraentes que as contas, imensa maioria dos envelopes na sua caixa de correio. Pelo menos, o móvel destruído e a portuguesa congelada não lhe cobravam nada. Quer dizer, as sobras da redonda pediam alguns minutos no microondas e o Marabraz de três lugares exigia um substituto. Mas essas cobranças, ao contrário das que lhe chegavam via carteiro, ele podia ignorar tranquilamente.

Àquele dia, entretanto, sentiu-se estranhamente atraído pela caixa de correio. Estranhamente, porque a causa do interesse era estranha, não que fosse estranho interessar-se por uma caixa de correio naquelas circunstâncias. Afinal, que atenção não se voltaria a um depósito de cartas irradiando brilho dourado pelas frestas? Um brilho intenso, ofuscante. Poderia, quem sabe, cegar quem travasse contato sem a proteção adequada. Foi esse pensamento que o levou a refrear seus impulsos gananciosos (“Será que é ouro? Mas ouro só brilha desse jeito em desenho animado.”) e pôr os óculos escuros antes de abrir a caixa.

Pretensamente protegido pelas lentes vagabundas do Ray-Ban de camelô, rumou à caixa. Os cinco passos na direção do objeto deram-lhe tempo suficiente para analisar o brilho um pouco melhor e perceber nele uma semelhança com outro: não era assim que brilhava a Arca Perdida, aquela do primeiro filme do Indiana Jones? Peraí: seria uma versão reduzida do artefato? Se fosse, poderia estar rico, mesmo que o conteúdo não fosse ouro, como chegou a cogitar antes de se dar conta de que, na vida real, o precioso mineral não brilha assim. Pelo que se lembrava do longa-metragem, a urna continha algo muito valioso, que despertara a cobiça de muitos. O problema é que assistira ao filme fazia tempo, e o que se lembrava dele era quase nada. “Foda-se.” Foi lá e abriu.

Entre as muitas malas-diretas e as contas ainda mais numerosas, estava um envelope dourado, o responsável pelo brilho. Tirando isso, não era grande coisa. Para falar a verdade, era até cafona. A aparência pouco impressionante, arrefeceu sua curiosidade, e, por não estar mais tão ansioso por saber o que continha, calmamente virou-o à procura do remetente. A ausência do remetente, porém, fez a curiosidade voltar aos níveis iniciais, e ele se apressou em rasgar o envelope. Dele, tirou um terço, desses comuns, que vivem nas mãos das senhoras de preto que freqüentam igrejas em tardes de terça-feira. Como o próprio envelope, nada digno de nota.

Ele não quis saber do crucifixo. Nunca fora religioso, e não seria um brilhozinho mequetrefe que o converteria. No dia seguinte, encontrou a vizinha, uma dessas velhinhas que vão igrejas às terças, deu-lhe a peça e desejou-lhe melhoras – câncer, em estado avançado. Só não esperava que, em poucos dias, ela realmente se curasse.

quinta-feira, 6 de março de 2008

Isso é um trabalho para o Superego



À distância, vejo o semáforo abrir, mas, quando me aproximo, ele já está vermelho. É a deixa para um “desempregado, pai de família, vendendo estas balas para sustentar meus filhos” jogar seu produto sobre o meu retrovisor, sem aviso além do texto contido no papel que acompanha os confeitos. O discurso é o mesmo de todos os dias e os doces, provavelmente também. Olho para eles com nojo, imaginando quanto tempo ficaram expostos ao sol, que é o mesmo para todos – homens, mulheres, crianças e balas. Minha análise sanitária é interrompida pelo “desempregado, pai…”, que retira o saquinho do meu retrovisor tão bruscamente quanto colocou, e pelo uníssono de buzinas, a me avisar que o farol abriu. Após mais uma ameaça de ataque cardíaco, engato a primeira e arranco.

Das irritações que me são proporcionadas pelo trânsito, sem dúvida, a buzina é a pior. Os quilômetros de congestionamento, os radares de velocidade, os motoristas barbeiros e o pessoal da CET se esforçam, mas as buzinas são imbatíveis. E não só pelo seu barulho estridente. A questão é que, ao contrário de outros fatores que tornam o tráfego urbano o conhecido inferno, as “paquerinhas” e similares estão sob o nosso controle. Você sabe, eu sei, todos sabem: buzinar não vai melhorar em nada a lentidão de nossas ruas. Mas, ainda assim, não hesitamos em meter a mão no meio do volante por qualquer motivo, indo de encontro ao que diz a legislação e o bom senso. O meu, aliás e para ser franco, também tem suas panes, porém, graças ao fato da buzina do meu carro estar quebrada e requerer força extra para ser acionada, consigo conter meus ímpetos perturbadores. Como sei que o meu bom senso continuará avariado, mantenho a buzina do mesmo jeito.

Sempre que ouço um buzinar inútil (como são todos que não tenham o objetivo de avisar algum cachorro desavisado de que você está a caminho) sinto ganas de matar o autor do atentado aos meus tímpanos. Os homicídios que imagino cometer em ocasiões assim nunca se resumem a simples tiros. Envolvem torturas requintadas, como retirar toda a pele do corpo do camarada e, amarrado a um poste, deixá-lo ao sabor do sol e dos pombos. Tais pensamentos nunca passam de pensamentos porque as panes do meu bom senso também não passam de panes, e fazer um troço desses requer total ausência de noção. Além de demandar um tempo que eu, geralmente atrasado para o trabalho, não tenho.

As restrições morais que me impedem de castigar severamente os impacientes buzinadores, no entanto, não são muito relevantes para o protagonista de uma matéria a que assisti no noticiário matutino de ontem. Imagens impróprias para o horário (para qualquer um, na verdade), que, em outros tempos, o apresentador sugeriria que se crianças e cardíacos não presenciassem. Captada pela câmera de segurança de um posto de gasolina, a cena é grotesca. Diante das insistentes buzinadas de um cliente ainda não atendido, outro freguês não teve dúvida: foi em sua direção, despejou sobre ele o conteúdo do galão de gasolina que carregava e ateou fogo. Em chamas e obviamente desesperado, o camarada correu para fora do carro e teve o seu incêndio pessoal apagado pelos funcionários. Até ontem, estava na UTI, com queimaduras de terceiro e segundo grau no rosto e no peito.

Sigmund Freud (que você conheceu no meu último texto) estabeleceu como três as etapas do processo comportamental. No “id”, pensamos toda espécie de absurdo, sem medir muito as conseqüências. Aí vem o “superego”, responsável por estabelecer os limites, a censura. O “ego” é o resultado da ação do “superego” sobre o “id”, quer dizer, o que acabamos por fazer. (Peço desculpas aos possíveis leitores terapeutas, ou que simplesmente entendam mais de psicanálise do que eu, por um eventual erro de enunciação. Não consultei o Google.) Acontece que o superego de muitos não faz jus ao sufixo “super”. São essas pessoas que invadem quadras de tênis peladas e, quando acordam com o pé esquerdo, ateiam fogo em quem buzina além da conta.

Então, aí vai o meu conselho: tire a mão da buzina. Vai que você encontra um maluco desses no caminho. Que posso ser eu mesmo, de mau humor.