domingo, 10 de abril de 2016

Velhinhas aleatórias

Acontecia, em geral, em manhãs ensolaradas. Bem humorado, decidia dar bom-dia para a primeira velhinha por quem passasse. Os verbos todos estão no passado porque, diante de uma sucessão de recepções carrancudas, abandonei o hábito. Mas nada como uma manhã ensolarada após a outra.
Vindo do parque, eu subia a ladeira. Na direção oposta, duas velhinhas bem velhinhas, ambas um tanto corcundas, andavam de braços dados, apoiadas uma no resto de força da outra. Uma imagem linda, digna de algum post de autoajuda. Mesmo sem ser chegado nessa categoria literária, não sou imune a tamanha ternura enrugada. Abri um sorrisão.
Para minha surpresa, vejo os lábios de uma das senhoras se mexendo em palavras dirigidas a mim. Tiro os fones e ouço o bom-dia anteriormente negado por tantas outras contemporâneas suas. Obviamente respondo:
- Bom-dia!
- Cê viu só? Duas velhinhas passeando!
- Tá certo! Têm que passear mesmo. Bom domingo para as senhoras.
- Pra você também, meu filho!
Elas continuaram o passeio do mesmo jeito trôpego, e eu de outro jeito, muito mais bem humorado. E convencido a retomar o hábito de dar bom-dia para velhinhas aleatórias.

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Objeto não identificado

Eu subia a rua, ela vinha no sentido oposto. Ainda de longe, vi suas mãos ocupadas cada qual com uma coisa. A distância não me permitia identificar esses objetos, mas eu só precisava descobrir o que era um deles. Sempre que alguém tiver duas coisas relativamente pequenas nas mãos, pode apostar, uma delas é um celular. Nesse caso, o aparelho estava na mão esquerda, que permanecia parada enquanto a outra, segurando o que quer que fosse, era levada à boca em intervalos regulares.

Chegando mais perto, entendi aquele quadrado: uma embalagem de Toddynho. Quantas vezes eu mesmo, atrasado demais para tomar o café da manhã em casa, não havia comprado o achocolatado e feito dele um desjejum expresso? Nada digno de nota. 

Não fosse o outro objeto, ainda menor, notado somente ao me aproximar ainda mais. Dividia a mão com o Toddynho um cigarro, que revezava-se com o canudinho na boca da moça. Sem tirar os olhos do celular, talvez ela tenha chegado a confundi-los, sugando um, tragando o outro. Certas pessoas realmente não têm tempo a perder.

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Long time


2004, 2005. Nesses tempos, eu e meus amigos tínhamos um blog de pretensões literárias chamado Morfina. A gente se divertia muito escrevendo crônicas para ele e, principalmente, nas festas que promovíamos com seu nome. Esses eventos quase sempre aconteciam nos fundos da Indie Records (sensacional loja de discos na Vila Madalena, infelizmente finada), onde havia bar, pista e aparelhagem de som. Eram abertos ao público, mas em geral só recebiam os colunistas dos blog e seus amigos e namorada(o)s. A renda arrecadada com a venda de entradas e bebidas mal dava para o aluguel do espaço, e olha que a gente bebia bem. 

O maior lucro era mesmo a oportunidade de juntar a turminha. Graças a uma dessas festas, por exemplo, a maioria de nós conheceu pessoalmente o Daniell, colunista carioca então ainda morador de sua cidade natal, vindo a São Paulo sob esse pretexto. No período de maior empolgação, as festas chegaram a ser mensais, e os colunistas disputavam entre si o privilégio de "pilotar as picapes" (expressão datada, cafona e, por isso mesmo, muito adequada). A cada festinha, dois de nós se responsabilizavam pelo som. Mas não pense que alguém ali era profissional -- exceção feita ao Barizon, mas não me recordo de tê-lo visto "atacando de DJ" (falando em expressões datadas e cafonas...). Nosso som vinha de dois CDs previamente gravados, sendo nosso único trabalho cuidar da transição entre faixas. Mas como era legal ser o DJ da vez. Era só assim que conseguíamos escutar certas músicas em um lugar público, na presença de amigos, e, olha só, ainda sendo os responsáveis pelo feito. Como dependia de uma coletânea já feita, o DJ da vez precisava selecionar a playlist com cuidado -- a música errada podia esvaziar a pista, e a margem de manobra era irrisória; era tocar o que se tinha trazido ou, no máximo, pular uma faixa. Não devia ser tão difícil agradar o público, já tão bem conhecido, mas às vezes rolava uma ou outra bola fora, geralmente quando se queria ser indie em excesso. Muitas músicas eu deixava de tocar por conta disso. Uma delas foi "Long Time Coming", do Delays. Achava que tinha potencial para a pista, mas não quis arriscar. 



Até que, um dia, quando era a vez do Rogério providenciar o som, me espantei ao ouvir justamente essa faixa. Filho da puta! Como ele teve a coragem de tocar a música que EU devia tocar? Exatamente por isso: porque teve coragem. Como esperava, a música nao foi muito bem recebida. Mas eu, em solidariedade com o amigo, me aproximei do DJ e cantei: "How can you grow old? You were my triumph!" Este refrão, que vem sendo tocado pela minha jukebox mental desde ontem, repetidas vezes, deu saudade do Morfina e de suas festas. Deu saudade do Rogério, que hoje mora em Florianópolis. Deu saudade de uma época em que a margem de erro só era pequena nessas ocasiões. Deu saudade.