domingo, 30 de dezembro de 2012

Enjoy the silence


Já era por volta do meio-dia quando abri os olhos. Mas meus ouvidos é que  pareciam ter se fechado. As vias movimentadas, de trânsito intenso mesmo nos finais de semana, audível até com a janela fechada no 21º andar em que moro, não emitiam nenhum som. Abri a janela, e os poucos carros que pude ver estavam estacionados. Nenhuma viva alma andava no meu campo visão. “É isso”, pensei. “O apocalipse que anunciaram para dia 21 veio com oito dias de atraso.” Teria sido um armagedon diferente do imaginado, sem cometas caindo, sem que o chão se abrisse e engolisse os carros – afinal, ainda havia alguns ali, parados. Era um outro tipo de fim de mundo, mais como o descrito por Cormac McCarthy em “A Estrada” (confesso, só vi a adaptação para o cinema), em que a vida terrena é dizimada por uma súbita e desconhecida praga, poupando inexplicavelmente apenas alguns infelizes, como o Virgo Mortensen e eu.
Podia me ver fugindo das tribos de canibais nômades, lutando contra um ímpeto de sobrevivência animal que me impelia a mim mesmo ao canibalismo, quando me lembrei: “Putz, é dia 29 de dezembro.” Todo mundo, inclusive o Virgo Mortensen, tinha ido para a praia. São Paulo tinha ficado só para mim – e para uns outros que, por uma razão ou outra, não engrossaram o trânsito da Imigrantes e da Anchieta. Mandei mensagens para alguns desses remanescentes, convidando-os para almoçar, e saí para as ruas desertas, sem levar o celular. Na volta, resposta nenhuma. Só o silêncio. 
Banho tomado, voltei para o deserto asfaltado. Decidi, então, falar algumas das primeiras palavras do dia. Liguei para o meu pai, com quem nunca há conversa rápida. Passados dez minutos, voltei ao silêncio. No metrô, meu vagão estava vazio. Vazias também estavam as caixas de som que anunciam as estações. “Qual a necessidade de avisar algo para ninguém?”, talvez tenha pensado o condutor do trem. Desci na Consolação e a Augusta. Lá, com os primeiros pingos de chuva caindo, encostei num boteco qualquer para almoçar. Antes que o prato chegasse, liguei para o meu irmão. Só não foram mais dez minutos de conversa  porque o bife acebolado que pedi nos interrompeu. Como viria a saber depois, quem queria conversar comigo era ele. (Ficamos conversando até a noite, quando ele me disse: “Não precisa jantar, não. Eu ainda tô aqui.”) 
O plano que tinha traçado era ir até a Alameda Itu comprar material para desenhar na Casa do Artista e, depois, buscar meu carro, que tinha deixado na Vila Madalena na noite anterior, mas a chuva borrou tudo. O boteco em que estava não era tão ruim, mas, almoço terminado e sem expectativa de beber, não tinha muito o que fazer por lá. Resolvi me arriscar na chuva a caminho do Espaço Unibanco (para mim, sempre terá esse nome) e, uma vez lá, me arriscar em qualquer filme cuja sessão começasse logo. Às 16:00, tinha “As Quatro Voltas”, filme italiano do qual, meio desatualizado que estou, não tinha ouvido falar. Se tivesse, talvez não me aventurasse. Coerente com o meu dia, a película não tinha uma palavra sequer. Além de palavras, também não tinha sentido. Sim, leitor cabeçudo, eu sei que tinha sentido. Me refiro mais à pretensão de se fazer enigmático, não-linear... ZZZZZZ. Quase, por muito pouco, não dormi. Só não saí no meio da sessão por três razões: 1º) a única vez que fiz isso foi anos atrás, no mesmo Unibanco, numa sessão de “O Segredo”, na qual entrei igualmente desavisado; 2º) queria ver se, no final, quem sabe, se revelaria algum sentido para o filme (sim, se revelou, mas não ajudou muito); 3º) ainda podia estar chovendo. 
Saí do cinema para me molhar um pouco mais, novamente até o metrô, no qual, agora, tinha companhia. Fui até a estação Sumaré e de lá peguei um táxi até a Vila Madalena. No trajeto de pouco mais de cinco minutos, o motorista contou uma história longuíssima, atropelando palavras para que ela coubesse no tempo da viagem. Chegando ao meu carro, não me deixou sair até terminar. Feliz por voltar ao volante e ao silêncio, fui, aí sim, para a Casa do Artista, verdadeiro – desculpa o clichê – playground de artista. Canetas, lápis e papeis comprados, a programação para a noite já estava providenciada. 
Passei a noite de ontem absorto nos desenhos. À medida em que ia dando forma a eles – e a mim mesmo, já que um deles era um autoretrato –, a necessidade de contato com o mundo externo diminuía. Tudo bem se não tivesse quase ninguém em São Paulo. Naquele momento, por mim estaria tudo bem se não tivesse ninguém no mundo. (Opa, bate na madeira.) Voltei a me comunicar com pessoas que não saíram das minhas canetas apenas mais tarde, quando entrei no Facebook para criar uma nova página de divulgação dos meus desenhos. (Para conhecer, é só clicar aqui.
É, amigo. Assim, encerro minhas contribuições para este blog por 2012. Espero que, em 2013, o silêncio não seja tão freqüente por aqui.

sábado, 22 de dezembro de 2012

Who Loves The Sun?


O sol queimava a pele das suas costas como se ele não tivesse vestido a camiseta que as cobria. A leveza do fino tecido mostrava-se, então, traiçoeira: tendo motivado a escolha da camiseta para suportar aquele dia quente, permitia, quase sem filtro, a passagem dos impiedosos raios. Sentia-os torrar seus ombros, quem sabe aumentando as já numerosas sardas que os marcavam. O sol não ignorava somente sua roupa. Passava por cima também dos seus sentimentos, para os quais mais adequados seriam o céu encoberto, a chuva fina, o frio. Andando pela rua Vergueiro, se dirigia ao metrô Ana Rosa. No subterrâneo, em algum tempo, estaria protegido da inclemência solar.
Apenas um quarteirão o separava da estação, quando parou na padaria. Já um tanto exausto, precisava daquilo que lhe justificava a falta de fôlego. Pediu no caixa um Marlboro vermelho, de caixinha, e um isqueiro. Pagou e saiu. No reencontro com o sol, maldisse a lei antifumo e, antes dela, as restrições higiênicas que o impediam de degustar o tabaco nas dependências da panificadora. Parado na calçada, tirou um cigarro da caixa. Antes de pegar o isqueiro, divertiu-se imaginando: quente como estava, o sol poderia tranquilamente providenciar o fogo. “Mas nada que viria do sol seria em meu beneficio”, constatou em seguida, solapando com este o primeiro pensamento leve que tivera desde que acordara. Os pensamentos ruins, por outro lado, puseram-se em ação antes mesmo da consciência.
O sono intermitente, pleno de pesadelos, teve fim com o sol entrando pela janela, esquecida aberta, trazendo a reboque os resmungos do trânsito. A luz o forçou a abrir os olhos e, quando o fez, se deparou com o vazio, que preenchia o outro lado da cama e sua vida. Esticou o braço, buscando a caixa de cigarros sobre o banco plástico que fazia as vezes de criado mudo e a descobriu vazia. Foi isso, mais do que o relógio lhe indicando o atraso, o que o fez se apressar em ganhar a rua. Precisava ter no peito algo além da tristeza, e não conseguia pensar em nada melhor que a fumaça dos cigarros.
O fumo, dizem os médicos, mata neurônios. O álcool, cujo consumo ele intensificava desde algum tempo, também. Mas as células cerebrais sobreviventes desse massacre sistemático, como numa resistência subversiva, pareciam trabalhar em dobro para dar conta justamente das sinapses que ele se esforçava por evitar. Parado na calçada, atrapalhando a passagem de pessoas apressadas, fumava alheio a tudo que não fosse o cigarro e as lembranças. Envolvidas agora pela fumaça, as cenas aleatórias da felicidade passada ganhavam ares de flashback de cinema. Em meio a esse nevoeiro, caminhavam sem pressa por ruas estreitas de Paris, espremiam-se no pequeno sofá para assistir a seriados por horas a fio, faziam amor demoradamente em manhãs de domingo, tinham conversas intermináveis ao sair do cinema. Cigarro entre os dedos, ele se dava conta de que o esforço dos dois para prolongar aqueles momentos tinha sido bem sucedido, e de que isso estava longe de ser algo positivo. Agora, ele sabia: eternizar o que viveram representou sua condenação perpétua.
Foi então que outro incômodo, físico, devolveu-o ao presente. Vindo do topo da sua cabeça, após uma pequena parada nas sobrancelhas, o suor atingiu seus olhos, indiferente ao que pudesse estar interrompendo. Trouxe ardor e um lembrete: além do passado, ele tinha outro verdugo. Sim, o metrô lhe daria asilo do sol. E foi exatamente por isso que resolveu submeter-se a ele por mais um tempo. Gostava de saber que, se quisesse, pelo menos do sol ele poderia fugir.

sábado, 1 de setembro de 2012

Enduro




“Anda, Playboy! O bar tá cheio! Tá cagando ou tá parindo?”, gritou o chefe.
“Já tô terminando”, respondeu o Marcelo. “Baiano filho duma puta”, acrescentou, baixo.

O chapeiro Marcelo tinha traços refinados, pele e cabelos claros. Somados ao vocabulário estranhamente rebuscado para alguém na sua função, lhe renderam o apelido bradado com gosto por Ivanilson: Playboy. Dono do boteco infecto na região da Augusta, o sergipano usava a alcunha com a entonação mais ofensiva possível, um instrumento de legitimação de sua superioridade perante o funcionário, como o domador mostrando ao leão que, apesar da vantagem física do animal, é ele quem está no comando. Marcelo imaginava que aquilo, a inversão dos papéis tradicionais, representava para Ivanilson sua maior conquista de retirante, mais até que o próprio bar ou o Ômega 2004 tunado. Chegou à conclusão naturalmente, já que para ele mesmo, Marcelo, ter de se subordinar a um sujeito que, se muito, seria faxineiro no seu antigo prédio era o fim. 

O fim: olhou ao redor de si, o banheiro imundo e mofado, e se perguntou se não era exatamente daquilo que se tratava. Estava lá ele, serviço já feito, prolongando ao máximo o contato gélido e desconfortável de suas nádegas com a louça sanitária desprovida de assento. O improvável prazer extraído da situação evidenciava seu desespero. Era aquilo ou, de volta à chapa de lanches, as queimaduras com a gordura e o excesso de pedidos, acompanhados da gritaria dos clientes e dos constantes e irritantes “Playboy, Playboy” do maldito baiano. Ali, lugar onde normalmente se prende o fôlego, Marcelo recuperava o seu. Naquele exato momento, olhava para o rodo e para o balde encostados no canto, à espera dele mesmo para usá-los na limpeza do fim da noite, e tentava ver em si as qualidades de um personagem de Hermann Hesse. 

Se a vocação para a servidão levou o humilde José Servo à condição de manda-chuva em “O Jogo das Contas de Vidro”, quem sabe ele teria sorte semelhante se também baixasse a cabeça e ignorasse as provocações, do chefe e da vida. Na fantasia do escritor alemão, o jogo exercia um papel semelhante ao da religião e os jogadores, ao do clero. Os cotovelos apoiados nos joelhos, o olhar no tabuleiro de azulejos rachados como que a pensar na próxima jogada diante do xeque-mate iminente, a cabeça de Marcelo foi até a obra de outro escritor europeu relacionada ao jogo. Pelo que se lembrava da leitura feita há anos, ainda estudante de filosofia, em “Homo Ludens” Huizinga teorizava: a vida em sociedade se organiza com base num sistema de regras, como um jogo, e, portanto, o homem é, antes de mais nada, um animal “lúdico” –  a lembrança dessa última palavra, tão comum no seu vocabulário pedante daquele tempo, desenhou nele um sorriso amargo. 

Pelos vidros quebrados da janela do banheiro, além do vento frio, entrava o barulho do trânsito e, com ele, mais memórias. Ao longe, um motor soou exatamente igual a outro, de ainda mais longe: o do carrinho do Enduro. O vídeo-game remontava a um tempo muito anterior a tudo, um tempo em que o pequeno Marcelo formulava teorias ligeiramente parecidas com as de Huizinga – nome do qual ele, criança, acharia graça se tivesse ouvido falar. Enquanto passava sem grandes dificuldades pelas fases do joguinho, o menino via nele um paralelo com o que seria a sua vida. Tiraria tudo de letra e, por fim, conquistaria a riqueza e prosperidade a que se julgava inevitavelmente destinado. O sorriso trazido por essa lembrança foi ainda mais amargo. 

Se a vida fosse mesmo um Enduro, Marcelo estava na fase da pista coberta de gelo e nela derrapava há anos, sem conseguir sair do lugar. E como havia chegado até ali? Onde sua vida tinha dado errado? Como tinha perdido o contato com seus pais, com seus amigos, com seu mundo? De olhos fechados, desejou intensamente que a vida fosse de fato um Enduro. Aí, tudo se resolveria puxando o interruptor do reset no lindo console negro do Atari.  

“Playboy, se tu não sair daí já, vai sair direto pro olho da rua!”, gritou Ivanilson socando a porta.

Marcelo ergueu-se da privada e puxou a cordinha da descarga. Era seu reset.



sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Love in the elevator


Antes que a porta do elevador se fechasse, saiu dele uma mão, que a segurou. A gentileza respondeu ao pedido não feito por Felipe. Contrariando o costume, jamais se afobava diante de metrôs prestes a partir ou elevadores semicerrados. Não havia pressa maior que sua paciência para esperar os próximos. O anônimo, imaginou, devia ter visto seu reflexo se aproximando no espelho do elevador ou, quem sabe, apenas teria ouvido seus passos, lentos, mas pesados o suficiente para serem notados daquela distância.

“Obrigado”, disse Felipe. Recebeu de volta um meneio, sinônimo mudo de “não há de quê”. Engraçado lembrar, uma ex de muitos anos usava o gesto da mesma forma, também em resposta a agradecimentos. E, é certo, aquela seria a única semelhança entre Andressa e a gorducha quarentona com quem agora dividia o elevador. De cabeça inteiramente raspada, a não ser pelo chumaço comprido e descolorido na base da nuca, alargadores em ambas orelhas e tatuagens a cobrir toda a pele dos braços deixada à mostra pelas mangas arregaçadas do moletom, a figura esquisita e modernosa em nada se parecia com seu antigo amor. Quer dizer, em nada além dos olhos, que Felipe descobriu escondidos sob os óculos de grau vermelhos. Na nada atraente mulher, as esferas castanho-esverdeadas eram um oásis de beleza do qual ela não parecia se orgulhar, condenando-as à grossa armação.

Andressa, por sua vez, não poupava artifícios para evidenciar os olhos. Os benefícios de uma visão perfeita não a convenciam a tirar os óculos da gaveta, e ela nunca saía de casa antes de passar rimel, lápis e sombra. Do mesmíssimo castanho-esverdeado dos olhos da gorducha, os seus eram exibidos ostensivamente, como mísseis nucleares sobre carros alegóricos em desfile organizado por alguma ditadura asiática. Se nesse caso as ogivas serviam apenas para intimidar, no de Andressa as armas de destruição em massa eram usadas sem pudor. Com o olhar, furava filas, conseguia descontos, vencia discussões perdidas. Com o olhar, se quisesse, interromperia guerras. Com o olhar, mesmo sem querer, conquistou Felipe. Com a falta do olhar, causou a ele estragos semelhantes aos das tais ogivas quando acionadas. Convertida em Hiroshima, sua vida levou anos para desintoxicar-se de Andressa.

Felipe olhava para o outro lado do elevador, para a dona daquele outro par de olhos, e se perguntava: teria ela já causado tamanha dor a alguém? Algum dia, era possível, seus atrativos não se resumiram àqueles disfarçados pelos óculos. Nesse tempo, sua cabeça tinha sido preenchida por cachos dourados e sedosos como os de Andressa. No lugar das múltiplas tatuagens, nesse passado, apenas uma suave penugem cobria seus braços. Os muitos quilos excedentes não deformavam um corpo talvez perfeito, de pin-up cinquentista. Nessa época, Felipe teve certeza, os olhos da desconhecida foram capazes da mesma devastação proporcionada pelos de Andressa.

Faltavam dois andares até o de Felipe, quando a estranha tirou os olhos do celular e levou-os aos dele. Um olhar com o poder de gelar seu sangue, de acelerar seus batimentos. De interromper guerras, se quisesse. Foi quando abriu a boca:
 
“Que trânsito hoje, hein?” 

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Perigo: famosos a bordo


Para muitos, o atraso daquele voo da ponte aérea não foi suficiente. Mochila no bagageiro, cinto de segurança já afivelado, eu desligava o celular e o iPod – para mim, continuam a ser aparelhos distintos –, enquanto observava, impaciente, a entrada dos retardatários. Recriminava-os em silêncio, como deles fosse a culpa pela hora acrescida à previsão de chegada ao Rio de Janeiro. O ódio dirigido aos empata-foda intensificava-se ao lembrar-me que,  enquanto a maioria já estaria entregue aos chopes de fim de noite ou, quem sabe, à foda propriamente dita, a minha e a de outros infelizes continuaria empatada. A Antiga Capital seria apenas uma escala no meu caminho à Nova, um incômodo resultante da minha ânsia por economizar. Invejando seus hipotéticos chopes sem colarinho, fiz a nota mental para a próxima compra de passagens para Brasília: vinte ou trinta reais não valem o tempo de perdido.
Os atrasados já haviam nos alcançado – afinal, não é tão difícil alcançar alguém sentado –, e a sofrível pronúncia inglesa comum aos pilotos se fazia ouvir pelos auto-falantes do avião onde não havia quem não falasse português. Havia ainda, porém, o último retardatário, de uma falta de pressa incompatível com sua impontualidade. Grandalhão, ele curvava-se em sorrisos para a aeromoça, ainda mais sorridente, a lhe indicar seu lugar. Não o reconheci de imediato, mas os dentes expostos da funcionária e o protocolo quebrado para permitir sua chegada davam a entender: o cabra era famoso. Intrigado, procurava nos dele traços familiares, torcendo para não encontrar nenhum. Na hora, me veio à cabeça algo que vi num filme ou num livro, um personagem que se recusava a pegar o mesmo voo que alguém famoso – eram, segundo ele, esses os voos que caíam. O sorriso provocado pela lembrança se desfez com o reconhecimento: debaixo da touca que lhe encobria as sobrancelhas, estava o rosto de Thiago Lacerda. Relegado a papéis secundários, o galã pode já ter conhecido melhores dias, mas ainda arrancava suspiros balzaquianos de comissárias de bordo e, pelo menos ali, para elas, seria o protagonista. Tanto pior para mim. Já podia ler os jornais – que, morto, não leria – falando da morte de Thiago, tão precoce e trágica, nos quais a menção à minha morte – tão precoce e trágica quanto – não ultrapassaria o número total de vítimas, no qual eu estaria incluído. Sorri mais uma vez, tentando disfarçar para mim mesmo um nervosismo imbecil, fundamentado simplesmente na  coincidência e na ficção.
Durante o voo, John Fante veio em meio socorro. “O vinho da juventude” tomou todas as minhas atenções. A Denver do livro só lembraria Thiago Lacerda se eu tivesse estabelecido relação entre a colônia italiana da cidade e o imigrante interpretado pelo global em “Terra Nostra” – o que, por sorte, não aconteceu. Foram trinta páginas e quase quarenta minutos sem sobressaltos. Até que eles vieram, físicos, assustadores. Solavancos violentos como não me lembro de ter enfrentado antes em anos de vida aérea relativamente ativa. Como aqueles carimbos de cartório, o medo estampado nos rostos ao meu redor reconhecia e dava fé ao referido – não, eu não estava exagerando. Poltronas a frente, pude ver Thiago Lacerda agarrado aos braços da sua, tomado pelo mesmo sentimento. Talvez fosse pior no caso dele. Talvez, tendo visto o mesmo filme (ou seria livro?), estivesse se sentindo culpado por causar a morte de tantos inocentes que nunca tiveram suas fotos na capa da Capricho ou seus nomes nos créditos da novela da oito. Talvez Thiago Lacerda usasse seus últimos minutos para um discurso, um pedido de desculpas a todos os presentes por não ter perdido o voo, por ter usado sua celebridade para não perder a passagem e, consequentemente, nos condenar. Mas não. Ele permanecia quieto, absorto em preces como todos os religiosos e recém-convertidos ali presentes.
Décadas se passaram até a aterrisagem, de morte, mas não mortal. Chegando ao chão, estávamos todos vivos. Alguns pálidos, outros borrados, muitos enjoados, mas vivos. Thiago Lacerda, inclusive. Fez uso, mais uma vez, de sua fama – e, principalmente, de sua estatura – para abrir caminho e ser dos primeiros a sair. De longe, vi o ator desaparecer na turba. Torci para jamais encontrá-lo num voo novamente. Já a periguete sentada ao meu lado tinha outra vontade. “Ai, cadê ele? Queria tanto tirar uma foto…”

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Revival












Ao meu lado, tirado do pulso, um relógio prateado digital Cassio indica a passagem das 15:00h. Com a reedição do modelo, muito popular nos anos 1980, veio enfim a satisfação de possuir tal relógio, desejo antigo como o tempo em que ele era a última moda. Próximo a esse clássico, outro. Preferidos de Bob Dylan e dos Blue Brothers, os Ray-Ban Wayfarer confirmam: o melhor do design está no passado. Na minha opinião, evidentemente.

Os acessórios, companheiros de todos os dias, hoje ganham significado diferente. Mais que apontar o revival como uma (ironicamente, já antiga) tendência de estilo, me dizem: “a gente já sabia”. Enquanto escrevo meu primeiro texto para o redivivo Morfina, olho para relógio e óculos e os vejo como indícios incontestáveis de que o site voltaria de qualquer jeito.

O ressurgimento do Morfina me lembra, também, outro: o de vídeo-games que tanto nos divertiram na infância e adolescência. Os gráficos do então hiper-moderno Neo Geo já não impressionam, mas ainda são capazes de encantar. Fazem lembrar a época em que sonhávamos ter dinheiro para jogar em casa com a mesma qualidade do fliperama, e essa simples memória já vale a compra do novo modelo – light, com console e joystick integrados e metade do tamanho do console antigo.

O Morfina, também, já não é o mesmo. Antes acalentávamos “sonhos de fama e fortuna com a literatura” e pensavámos no site como plataforma para torná-los reais. Agora, mesmo aqueles com maiores pretensões literárias – eu, por exemplo – encaram o Morfina de modo menos sério. O novo Morfina é “moleque”, e nele os colaboradores não têm dias definidos para postar. O atual formato blog é testemunha do descompromisso. Remonta à pré-história do Morfina, aos selerepes Veríssimos e Morfina da Vanessa, que deram origem (e no caso do blog da Van) nome ao outro Morfina.

Ao meu lado, o simpático relógio avisa: são quase 16:30h, hora de voltar ao trabalho. Mas a gente vai se reencontrar outra hora, nesse revival.

(Texto publicado originalmente ontem no Morfina. De certa forma, tem a ver com o tema do post anterior.)

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Nostalgia




Li em algum lugar: crianças e adolescentes raramente usam email. Preferem a praticidade do Facebook e, com uma noção bastante diferente das gerações anteriores a respeito de privacidade, muitas vezes mandam seus recados de forma pública, para todos verem. Telefone (desnecessário o complemento “celular”, eles desconhecem os fixos), também, só para mensagens de texto. O que há para ser dito pode ser resumido em poucas palavras, e essas palavras, por sua vez, podem perder letras e também ser resumidas.
Quando era eu o adolescente, a internet era recém-nascida, um conceito quase abstrato. Computadores (sem conexão), só nas casas (não muito) mais abastadas, e a minha não era uma delas. Os anos eram os 1990, e minha comunicação com primos e amigos distantes se dava por cartas, escritas às custas de muitas esferográficas e folhas de caderno – mais pela minha incapacidade de síntese do que pela quantidade de assunto. Nos anos seguintes, já com internet à mão, insisti nas cartas, sempre volumosas.  Só as abandonei há menos de 10 anos, e mesmo assim não por completo. Uma ou duas cartas (de amor, evidentemente) foram escritas pelo meu próprio punho, que, não por coincidência, dizem ter o tamanho do coração.
Nessa rapidez cretina da obsolescência, eu já olho de forma nostálgica para blogs como este, veículos arcaicos de textos excessivamente longos que ninguém lerá.  Saudosista assumido, insisto na sua manutenção, apesar de mal alimentá-lo. E ele, qual faquir, mantém-se vivo, mesmo à míngua. Gosto disso, de pensar neste blog como o depósito eventual de algo que me pareça relevante. Meio como aquela academia, à qual você mal vai, mas continua pagando. É bom ter lugar para exercitar irregularmente meus músculos (quase) literários.
Mas este blog não é o cúmulo da minha nostalgia: o exagero tem a forma de um calhamaço de mais de 200 páginas. Não dá para definir de outro jeito o sentimento que me impulsionou por tanto texto, por tantos anos – três, no total. E que me faz, passado exatamente um ano da sua conclusão, querer publicar este livro em apresentação física. Proliferam-se ipads e kindles, a publicação virtual possibilita quase tudo, mas foda-se. Quero que você lamba as pontas dos dedos para virar as páginas de “Quem vai ficar com Morrissey?”. Quero o meu livro lido como leio o do Jonh Fante – agora sentado no banco de plástico branco promovido a meu criado mudo. Lá, esteve antes um do Philip Roth, meu pessimista e, no momento, escritor favorito. Em Roth, o pessimismo transborda da temática dos livros e aponta para o seu próprio futuro – o dos livros. Para quem quiser ouvir, ele não cansa de dizer: seu ganha-pão está com os dias contados. Segundo ele, a mesma realidade de jovens se comunicando por não-palavras, de excesso de informação, de dispersão, condena ao fim certo os romances. Quem tem tempo de lê-los? Quem QUER lê-los?
Discordo sutilmente do Sr. Roth. Penso que os livros não terão o mesmo fim das cartas. Para eles, imagino um panorama semelhante ao dos discos de vinil. As tiragens serão a cada vez menores, mas se manterão. Os mesmos saudosistas que compram álbuns (entre os quais, claro, me incluo) continuarão adquirindo volumes sem ter lugar para guardá-los em seus minúsculos apartamentos (entre os quais, incluo o meu).
É para esses saudosistas que escrevi meu livro. É por acreditar na sua existência que produzi o vídeo acima – a única modernice a que me permito em se tratando da minha obra. Inscrito no concurso Escritores in Progress, do SESC SP, o book trailer pode me colocar, se escolhido, ao lado de outros dois escritores não publicados e do poeta Fabrício Carpinejar numa mesa de debate na Bienal, fim de semana próximo. (Se quiser me ajudar, clique aqui para votar.) Se rolar, imagino, vai dar uma força para promover o livro, ajudá-lo a chegar ao seu criado mudo. Afinal, se você leu isto tudo, de certo modo, também é um saudosista.
PS: Nunca é demais agradecer ao talento e amizade do Marcelo Machado e da Renata Sette. Responsáveis pelo sensacional “A luta continua – Um documentário em 12 rounds”, eles emprestaram o mesmo talento que contou a história do primeiro medalhista olímpico do boxe brasileiro para me ajudar a contar a minha. Tem noção de como fiquei honrado?

sexta-feira, 13 de abril de 2012

100 anos, 3 tios


Eu, tio Gusto, Rogério e tio Luiz. Ficou faltando o tio Paulo.

Jogo da penúltima rodada da fase de classificação do Paulista, São Caetano x Santos não valia muita coisa. O alvinegro já estava garantido nas quartas. A irrelevância da partida era ressaltada pelos absurdos 60 reais do ingresso, fruto de uma iniciativa de lucro oportunista do time da casa, e pela promessa de chuva do céu, trajado de preto e branco como o visitante. Nem a anunciada escalação titular, com Neymar e Ganso, me faria trocar o sofá pelas enferrujadas arquibancadas do precário Anacleto Campanella, de visualização infinitamente inferior à proporcionada pelas várias câmeras da TV.

Minha cidade natal não fica tão longe da minha atual casa, é verdade, mas seria necessário um exército para me convencer a me abalar até lá. Ou quase isso, afinal, a numerosa tropa responsável pela minha ida ao estádio nada tinha de beligerante. Reunidos, tios, primos e agregados somavam 13 pessoas, e eram apenas um resumo da representação santista entre os meus. O belo gol de Neymar não foi suficiente para mascarar a surpreendente apatia da mesmíssima equipe que havia jogado muito contra o Internacional, em Porto Alegre. Acabamos perdendo de virada.

Nem esse resultado, nem o absurdo pago no ingresso, nem as toscas instalações do Anacleto, nem a chuva, que, felizmente, acabou sendo breve. Nada disso fez com que eu me arrependesse de ter ido. Freqüentadores de estádios nos anos 1960, 1970 e 1980, meus tios afastaram-se dos campos motivados pelas notícias de violência e, vai, pela preguiça que nos é comum. As oportunidades de me reunir nas arquibancadas com os três, grandes responsáveis por eu ser santista, são raríssimas. Que me lembre, antes disso, a última vez que assistimos a um jogo juntos havia sido em 1995, também no ABC, também com resultado decepcionante: um 2 a 2 contra o Juventus, no Bruno Daniel, em Santo André.

Em tempos de Neymar, difícil é convencer uma criança a não torcer pelo Santos. Como indica a predominância moicana, as cabeças da molecada já estão feitas. Mas, entre fins dos anos 1970 e princípios de 1980, período de baixa alvinegra, a lavagem cerebral requeria camisas, bolas e, claro, toalhas de banho. Abnegados, o tio Gusto, o tio Paulo e o tio Luiz lançaram-se na minha catequese. Aproveitando-se da pouca importância que meu pai dava ao futebol, repetiram comigo o método já posto em prática com o Rogério, meu irmão, e os primos mais velhos. (Desses, apenas o César não foi arrebanhado, convencido pelo pai palmeirense, que o batizara com o nome do atacante Maluco. Já com o Alan, o tio Alírio não teve a mesma sorte.) Mantiveram o processo a cada vez que a família aumentava, com os filhos e, depois, os netos. No geral, tiveram sucesso. Outras poucas exceções à parte, o crescimento da família santista correspondeu ao da nossa.

Se hoje eu, meu irmão e primos agradecemos aos tios pela doutrinação, ao longo da infância e adolescência o sentimento era outro. Passada a memória do titulo paulista de 1984, com a qual nos escudávamos da gozação, não havia como nos livrar da zombaria dos torcedores de outros times, na escola e, depois, no trabalho. Até o Palmeiras, de fila mais antiga que a nossa, voltou às conquistas no começo dos anos 1990, deixando-nos, santistas, como alvos únicos da galhofa adversária, da qual passaram a engrossar o coro. A arbitragem não quis, e Giovanni e seu duvidoso esquadrão – o mesmo que eu e meus tios vimos empatar com o Juventus da rua Javari – não evitaram a maioridade de nosso jejum, tampouco as conseqüentes piadas envolvendo títulos de eleitor e carteiras de motorista. Mas a ironia quis, e um moleque com a mesma idade de nossa escassez de títulos decretou o seu fim. Como o lateral corintiano Rogério, ninguém esquece das oito pedaladas do Robinho. Essas finais de 2002 eu presenciei in loco. Também estava lá na conquista de 2004, na de 2007, em um dos jogos da final Paulista de 2010 e na da Libertadores do ano passado.

Sou sócio do Santos e vou a quantos jogos puder, inclusive aqueles na Vila Belmiro, no meio da semana. Aos que me acusam de “neo santista” – gracinha recorrente entre rivais que, agora que ganhamos tudo, têm mesmo de arranjar novos temas para o humor – costumo dizer que, se estive ao lado do time nos piores momentos, não participar de sua boa fase agora seria o mesmo que largar a namorada gorda que emagreceu. Esta, aliás, é uma disputa recorrente nas filas de estádio, entre torcedores. Enumerando jogos traumáticos ou obscuros em que marcou presença, um quer provar ao outro que ele, sim, apoiou mais o time. (Mais ou menos o que, sem me dar conta, acabo de fazer.)

Os 100 anos do Santos encontram o time redimido com os títulos e a torcida. E meus tios, redimidos comigo. Afinal, se tenho o “orgulho que nem todos podem ter”, é graças aos irmãos da minha mãe. Parabéns, Santos. Parabéns, tio Gusto, tio Luiz e tio Paulo. E saibam: se eu tiver um ataque cardíaco a qualquer hora, a dona Mercês vai querer acertar as contas com vocês.

PS: Na contramão da influência, até meu pai, palmeirense pouco convicto, converteu-se. Usando um expediente semelhante ao dos tios, eu e o Rogério lhe pagamos sorvetes quando ele nos acompanha aos jogos.

domingo, 11 de março de 2012

“You’ll never walk alone”



À certa altura, no meio de “Speedway”, as luzes do palco se apagam e a banda fica muda. Mais uma vez, a sensacional – porém esperada – pausa dramática que acompanha a canção? Ouvimos, então, a voz de Morrissey entoando versos que não são de “Speedway”, nem ao menos de sua autoria. “When you walk through a storm, Hold your head up high, And don't be afraid of the dark.” Era “You’ll Never Walk Alone”, conhecida na voz de Elvis Presley e na da torcida do Liverpool, que a adotou como hino. Assim, o cantor endossava as palavras do meu texto sobre sua apresentação no Rio; sobre suas apresentações, de modo geral. Elas não se confundem.

Alguns elementos, é verdade, estavam novamente ali, como as críticas à família real inglesa, pegando carona na estada de Harry em nosso país – e não é que o moleque perseguiu o Moz até São Paulo? – e as camisas “Assad is shit”, também usadas pela banda em Belo Horizonte. O setlist também permaneceu inalterado desde o começo da turnê brasileira. Mostrando-se, ao contrário do que se alardeia, sensível às críticas, depois da recepção fria em Buenos Aires, Morrissey optou por um repertório mais amigável. Amigável também manteve-se ele. Começou com uma saudação à “Sampa” – que é como se refere a São Paulo, numa tentativa de intimidade, apenas quem não é daqui –, depois agradeceu a um “presente” (é, em português), um LP do New York Dolls dado por um fã, e, ao longo do show, fez graça com a platéia. Sempre irônico, claro, para não deixar dúvidas de que a Inglaterra é sua e continua a lhe dever uma vida. Não azedou sequer quando uma das caixas de som estourou, já no fim do show, em plena execução da hipnotizante “How Soon Is Now?”. Ignorou o problema técnico e continuou cantando. (Ah, se fosse o João Gilberto...)

Vi o show da famigerada pista VIP, mas a uma distância semelhante de onde assisti ao concerto carioca – as dimensões da Fundição Progresso são menores que as do Espaço das Américas, lugar, diga-se, muito bacana, limpo, organizado, mas que carece de um ar condicionado decente. Aqui, cabe um comentário sobre essa aberração da organização moderna de espetáculos. Os melhores lugares deveriam, sempre, pertencer àquelas figuras que aparecem no Jornal Nacional acampadas nas filas, dias antes dos shows, e não a quem, como eu, paga mais – ou quem, como conhecidos, ganhou a vantagem com o ingresso. Mas, enfim, minhas convicções sobre isso não me impediriam de comparecer ao show, nem de dispor de mais grana para me posicionar melhor. Embora entenda a postura de um amigo que, diante da divulgação de que até no show do politizado cantor haveria o tal espaço, resolveu não ir. Afinal, se o cara tem o poder de vetar a comercialização de derivados de carne nos seus concertos, também poderia opor-se à área VIP, não? Mancada, concordo, mas não me penitenciaria por isso.

Mas o que fez deste meu sexto show do Morrissey realmente especial – e aqui você vai ter que me desculpar a cafonice – foi a presença de pessoas que para mim também o são. Estavam lá meu irmão, alguns dos meus grandes amigos e a minha namorada. E, mesmo sem o Rogério e muitos dos camaradas presentes por perto – a Débora, sim, não saiu do meu lado –, só o fato de saber que eles estavam lá, compartilhando comigo um momento tão único, me emocionou tanto quanto ouvir ao vivo as minhas músicas favoritas. (OK, não me emocionou tanto assim.) Mantenho-me carnívoro, mas dos ensinamentos do bardo de Manchester sigo à risca o “hold on to your friends”. Enquanto eu os tiver, nunca andarei sozinho. E, quando eles não estiverem por perto, sempre haverá um iPod com algumas centenas de músicas de um certo senhor charmoso.

sábado, 10 de março de 2012

“The pleasure and the privilege is mine”



A visita do príncipe Harry ao Rio de Janeiro coincidiu com a passagem da verdadeira realeza britânica pela cidade. Mais do que uma piada fácil – que provavelmente já deve ter sido feita por alguém da crônica musical – a frase que escolhi para começar o breve relato do quinto show de Morrissey a que tive o prazer e o privilégio de assistir dá a real dimensão da relevância dos dois ingleses. Enquanto o jovem farrista é o representante menos representativo de uma monarquia cujo maior poder é o de atrair turistas para Londres, o cantor prestou tamanhos serviços à cultura pop que só não foi declarado Sir porque, bem, dificilmente a tal rainha sem poder daria esse reconhecimento a alguém que gostaria de vê-la morta. Talvez o filho da Diana não soubesse da presença de um de seus súditos mais ilustres na cidade, mas esse súdito, nada orgulhoso, fez questão de mencioná-lo. E as palavras usadas, claro, foram pouco elogiosas.

Talvez Harry não gostasse de tê-lo ouvido ontem, mas Morrissey levou a platéia da Fundição Progresso, formada por centenas de pessoas sem sangue azul, à loucura – principalmente, claro, nas músicas dos Smiths. Quando Moz e sua banda tocaram “There Is A Light That Never Goes Out”, “Please, Please, Please..” e “How Soon Is Now?” o que se via poderia perfeitamente ilustrar o verbete “catarse” de qualquer enciclopédia. Por todos os lados, pessoas de olhos fechados e mãos levantadas lembravam os fieis de cultos evangélicos e faziam jus à experiência, verdadeiramente religiosa. Mas só nessas músicas. No resto do show, o que se viu – e, pior, se ouviu – foi o completo desrespeito típico das platéias brasileiras, seja de shows ou de cinema. A escumalha não cala a boca. Parece que estão tratando de assuntos como, sei lá, a liberação de um novo pacote de auxilio financeiro à Grécia ou uma intervenção militar na Síria. Só isso explicaria a impossibilidade de adiar o falatório. Em “I Know It’s Over”, Morrissey afirma que é fácil amar e odiar, mas é preciso força para ser gentil e amável. Foi justamente com a música ao fundo que eu lhe dei razão. Cansado do incessante blá-blá-blá, me virei para os boquirrotos e gritei para deixarem o papo para outra hora. A Grécia ou a Síria poderia esperar o fim do show.

Adaptando o repertório para uma platéia pouco acostumada a vê-lo, numa generosidade incomum em astros da sua envergadura, Morrissey substituiu novas (e excelentes) canções, como “Action Is My Middle Name” e “People Are The Same Everywhere”, por mais músicas dos Smiths. E quem, como eu, não foi lá só para ouvir os hits da banda extinta (não duvido que boa parte dos presentes só a tenha conhecido com o filme “500 Dias Com Ela”), além do inconveniente palavrório dos imbecis, não teve do que se queixar. Mesmo com a ênfase maior nos álbuns mais recentes, não faltaram clássicos como “Alma Matters” e “Everyday Is Like Sunday”. E de “Vauxhal And I” (1994), veio “Speedway”, em execução arrebatadora como pede a música. Por mais de um minuto, cantor e banda se silenciam, as luzes do palco se apagam, e só quem tem alguma familiaridade com o tema entende o que está acontecendo. Passada a pausa, ao som de uma motosserra, a música recomeça, e os pelos se arrepiam.

Na letra da mesma “Speedway”, o mancuniano declara sempre ter se mantido fiel a alguém. Quando ele canta, “Speedway” e todas as outras, percebemos que esse alguém é ele mesmo. Ao vê-lo interpretar sua obra, mesmo a parte mais antiga dela, o verbo distancia-se das artes cênicas. A emoção trazida em sua voz nos faz sentir o tal medo que se apossou dele no momento em que faria o pedido, mesmo depois de mais de 25 anos da composição de “There Is A Light...”. E, com a bagagem que os cinco shows me deram, garanto: Morrissey pode repetir o setlist – não que costume –, mas nunca se repete.

Cada apresentação sua é única, e em cada uma ele nos reserva uma surpresa. Algumas bizarras e hilárias, caso da banda de cuecas – exceção feita ao rotundo guitarrista e co-compositor Boz Boorer, para o qual o chefe escolheu figurino composto de peruca e vestido, esse sim repetido. Outras polêmicas, como as declarações recentes sobre as Falklands (que ele fez questão de, como os argentinos, chamar de Malvinas) e as mais antigas, referindo-se aos chineses como sub-raça. O tipo de contundência possível graças à manutenção do status “indie” – que aqui refere-se mais à independência do que ao estilo –, impensável para bandas como o contemporâneo U2, hoje convertido em trilha sonora de jogging de classe média, de espetáculos grandiosos, pirotécnicos e mecânicos.

Por isso, é com um sorriso no rosto que me lembro: amanhã vou reencontrar Morrissey mais uma vez. Vai ser a sexta, e vai ser bem diferente das outras. Mais um puta show que o pobre príncipe Harry não vai ver.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Pouco mais de 20 anos



Faz pouco mais de 20 anos. Em 1991, moleque de catorze anos incompletos, escutei Morrissey pela primeira vez. Claro, antes disso, lembro de já ter ouvido sua voz, nas músicas dos Smiths que eventualmente as rádios tocavam. Mas só no comecinho da década de 1990 escutei mesmo, prestei de fato atenção no que e em como ele cantava. Junto com “Bona Drag”, seu segundo álbum solo e o primeiro da minha coleção, foi lançado também o meu real interesse por música.

Gêmeos univitelinos, meu recém inaugurado gosto musical era quase – afinal, ainda ouvia Guns n’ Roses, Faith no More e afins – indistinguível do disco, que à época me aproximou das melancólicas bandas inglesas da década anterior. E que, anos depois, me levaria a comprar discos e ingressos para shows de descendentes – diretos e indiretos – como The National e PJ Harvey. Para além das fronteiras da música – ou dentro delas, já que, na minha vida, tais fronteiras ultrapassam os limites sensatos –, não é exagero dizer que o contato com a obra de Morrissey mudou tudo. Se não me tornei vegetariano ou celibatário como muitos dos seus seguidores, atribuo parte significativa do meu bom humor, otimismo e simpatia à sua influência. Não se ouvem aos catorze anos versos que conclamam o apocalipse impunemente.

Faz pouco mais de 20 anos. Mas não posso dizer que minha espera por Morrissey no Brasil, encerrada com o anúncio de suas apresentações em março, tem a mesma idade. Primeiro, porque ele já esteve por aqui – em 2000, em momento bem menos prestigiado de sua carreira, cantou para um Olympia lotado, onde ainda hoje me arrependo de não ter estado. Segundo, porque, em 1991, eu sequer sonhava com isso: para o pirralho de expectativas tão baixas, esse show era mais improvável que um mísero olhar da menina mais bonita da classe. Depois de muitas especulações e frustrantes e infalíveis negativas – como em 2004, quando foi à Argentina e nos ignorou solenemente –, conclui que talvez aquele moleque pessimista não estivesse completamente errado. Sim, ele havia estado aqui em 2000, mas, contrariando as inscrições sagradas, não haveria uma segunda vinda.

Fazia justamente 20 anos quando, ano passado, numa comemoração involuntária da efeméride, fui a Dublin para, finalmente, ver Morrissey pela primeira vez – de forma decente. Antes, já o tinha visto no Coachella 2009, mas não valeu: ele tinha tocado para uma platéia impaciente e desrespeitosa, como são as de todas atrações que antecedem a principal em grandes festivais. Bem diferente dos poucos mais de mil reunidos àquelas noites de fim de julho no pequeníssimo Vicar Street. Imbuídos de um fanatismo que os empurrava brutalmente contra a grade em frente ao palco, não foram poucos os irlandeses que tentaram ocupar os lugares onde eu o meu amigo Rodrigo estávamos, preservados com igual fanatismo e (sabe-se lá como) maior força física. Além de alguns hematomas, a loucura nos rendeu uma visão do palco que só os seguranças, se pudessem se virar, teriam. E, para mim, a chance de segurar na mão de Deus – que não me importei de dividir com outros retardados que se atiraram para pegá-la, quando ele a estendeu. Repetido o arrojo no dia seguinte, na mesma casa dublinense, decidimos encerrar a turnê de forma mais pacata uma semana depois, em Londres. Na legendária Brixton Academy, presenciamos o milagre a uma distância segura, mas, ainda assim, algumas vezes, tivemos de suspender a folga dos músculos para evitar o atropelamento.

Agora, Morrissey vem tocar aqui, há poucos quilômetros da minha casa. Na próxima Barra Funda, no vizinho Rio de Janeiro, na encostada Porto Alegre – comparada à distância de Londres, até a da capital gaúcha é pequena. E eu vou, claro. Vou a quantos desses shows conseguir ir. Vou aproveitar. Até porque, segundo um pivete pessimista que eu conheço, acho que, depois dessa, ele não volta.

PS: A peregrinação temática do ano passado – além dos shows, a viagem incluiu uma passagem por Manchester, com direito a um tour por lugares históricos para Morrissey e os Smiths – tornou-se ainda mais marcante porque, durante ela, na noite anterior ao show de Londres, terminei de escrever “Quem vai ficar com Morrissey?”. Espero publicar este ano. E espero que você compre.

domingo, 1 de janeiro de 2012

Como pretendo viver o último ano da minha vida

Li pouco o Daniel Piza. Esse pouco se manteve assim porque não foi o suficiente para me tornar admirador do seu trabalho. Noticiada ontem, a morte do jornalista me chocou como chocam todas as precoces e repentinas, de nomes minimamente conhecidos. Teria ficado nisso, apenas no “coitado... agora vamos ler o esporte”, se minha namorada e ele não fossem próximos. Não íntimos, próximos fisicamente mesmo: colegas de Estadão, a mesa da Débora fica em frente à sala que Piza ocupava.

Assim, naturalmente, tivemos a companhia do Daniel Piza ao longo do último dia do ano. Memórias das conversas durante os eventuais cafés que tomavam juntos, comentários lamentosos sobre uma planejada mudança da família – deixou esposa e três filhos – para Nova York que jamais aconteceria, e as inevitáveis considerações sobre o sentido da vida. Se soubesse que morreria tão cedo, será que ele teria vivido de outro jeito? E eu, como aproveitaria meus anos, se fosse avisado de que me restariam poucos?

Para responder às perguntas da Débora – e mesmo às minhas – tomei como ponto de partida o verso de uma música que, já há dias, não me saía da cabeça. Em “Beautiful Boy”, John Lennon define: “a vida é o que acontece enquanto fazemos outros planos.” Talvez a vida realmente tenha outros planos para nós, e, mesmo que entre eles esteja a morte, não podemos deixar de fazer os nossos próprios. Sem imaginar que os dele seriam interrompidos aos 41 anos – um a mais que Lennon –, Piza se preparava para essa nova etapa, nos Estados Unidos. Eu teria feito exatamente o mesmo.

O clichê “viver cada dia como se fosse o último” nos remete a imagens igualmente percorridas, de gente pulando de pára-quedas ou sentada no topo de uma montanha admirando o pôr do sol, perpetuadas por comerciais e filmes de baixa qualidade. Já minha tradução para a máxima é outra, bem menos empolgante. O último dia da minha vida pode ser passado na cama, lendo um livro, de ressaca ou apenas com preguiça demais para me levantar – até mesmo para abrir a janela e ver o pôr do sol.

O último dia da minha vida deve ser como qualquer outro, uma extensão dela, vivido de acordo com meus próprios princípios e convicções. Desapontando algumas pessoas, mas tentando não fazer isso comigo mesmo.