quinta-feira, 10 de julho de 2014

Eterno 7x1

No campeonato brasileiro de 2005, o Santos levou a sua mais humilhante goleada – o “eterno 7x1” ainda hoje lembrado pela torcida do Corinthians e por faixas que sempre levam ao estádio quando os times se enfrentam. Estava num churrasco na casa de um amigo – “corintiano”, mas felizmente entre aspas –, e não havia nenhuma televisão ou rádio ligado transmitindo o jogo. Não ouvi rojões – surpreendentemente, já que estávamos em Diadema, região de predominância da torcida adversária –, então, só soube do resultado no carro, a caminho de casa, quando liguei o rádio. Minha namorada ficou assustada com a minha reação. Espumando, quase perdendo o controle da direção, eu me perguntava como os caras podiam ter feito aquilo à história do Santos. Depois, com a queda do técnico Nelsinho Batista, ficou claro o objetivo escuso dos jogadores. O único que parecia não compactuar com aquilo era Giovanni, indignado com o placar e com a atuação dos colegas, preservando-se como o ídolo que sempre foi.

Depois daquilo, presenciei duas outras goleadas históricas sofridas pelo Santos, ambas para o Barcelona. Na primeira delas, na final do campeonato mundial, o time de Neymar e Ganso, campeão da Libertadores, foi atropelado pelo esquadrão de Messi, tido como um dos melhores de sempre. Alvinegros entraram em campo respeitando (leia-se temendo) demais os espanhóis e, mesmo os jogadores de quem mais se esperava, não corresponderam ao mínimo. Na época, levantou-se a hipótese de nosso principal jogador já ter entrado em campo pré-vendido aos adversários. Pouco mais de um ano depois, quando Neymar foi de fato negociado com o time catalão, esse detalhe subterrâneo e antiético foi confirmado. Havia um dinheiro envolvido no negócio desaparecido, mas, ainda que a tal quantia fosse recuperada, o orgulho da torcida jamais seria. Sempre há, no entanto, como se mostrou depois, um jeito de se piorar as coisas. Parte da pagamento pelo maior jogador surgido nas últimas décadas em nosso país envolvia duas partidas entre seu antigo time e o novo. Era parte de uma estratégia de marketing para reposicionar o Santos no cenário internacional, orgulhava-se a diretoria. No primeiro jogo, sem fazer muito esforço, o Barcelona enfiou o dobro de gols que já havia feito menos de dois anos antes. Como desculpa, podemos dizer que o Santos de então era um time em formação, a imensa maioria garotos inexperientes. Mas usavam a camisa do Santos e, portanto, eram o Santos, porra! O que eu e tantos santistas estávamos pensando foi expressado por Coutinho, um dos maiores ídolos do Santos, com quem tive a oportunidade de conversar àquele dia, no bar onde foi organizado um evento para a transmissão do massacre. O ex-jogador, cuja habilidade, mais do que o físico, o fazia ser confundido com Pelé, fez uma análise parcial e mal humorada como não costumamos ouvir de alguém na sua posição.

Aí, menos de um ano depois, um vexame ainda maior, desta vez, não do Santos: do Brasil, único time para o qual torço além dele. Veio com os mesmos números que ficaram estampados na faixa corintiana e na triste memória santista. Outro 7x1, e esse 1 não pode ser chamado de gol de honra, como gosta o jargão futebolístico. O empenho de Oscar, recompensado com o gol solitário, não foi suficiente para recuperar os brios da Seleção, assim como o chute de Geílson em nada aliviou a humilhação imposta ao Peixe por Tevez e sua turma, em 2005. Ao lembrarmos do Santos naquele ano, podemos usar como duvidoso atenuante a intenção do jogadores de derrubar o técnico. Se a derrota em questão for a de 2011 para o Barcelona, sempre se pode culpar a submissão com que a equipe jogou. Se falarmos da atropelamento do ano passado, a responsabilidade pode ser atribuída à inexperiência do elenco – ou, ainda, à inconsequência da diretoria, que, querendo, poderia ter evitado aquilo. Nenhuma dessas explicações, porém, serve para o que aconteceu ao Brasil há dois dias. Felipão tratava os jogadores como filhos, e nenhum dos “Scolaris” parecia ter vocação ao parricídio. Nossa Seleção não se julgava absolutamente inferior à alemã. E mesmo que houvesse alguns jovens na escalação, não dá para defini-los como inexperientes.

Mas, se a diretoria da CBF, ao contrário da do SFC, não tinha como evitar o confronto, isso não a exime de culpa. Um antigo chefe dizia: “a culpa é de quem contrata”. E foi a diretoria da CBF quem contratou Felipão, um técnico ultrapassado, e toda a sua comissão técnica, ainda mais ultrapassada – entre idas e vindas, Parreira faz parte dos quadros desde 1970. Por sua vez, foi essa comissão que contratou (convocou) todos os jogadores e os preparou (mal) para a Copa: o choro descontrolado no jogo contra o Chile era o prenúncio do outro, muito mais justificado, que viria após o flagelo alemão. Foi essa comissão que não cansou de bater no peito e se autoproclamar favorita, desafiando os códigos do futebol, que pregam a humildade – mesmo que falsa. Foram eles, diretoria e comissão, que cometeram tantos erros que hoje você pode ler em qualquer coluna esportiva, num tom de já “eu já sabia”.

Eu também já sabia. Como também sabia que o Santos não seria capaz de vencer o Barcelona na final de 2011, como suspeitava da goleada que viria no “amistoso” (por acaso existe espancamento amistoso?) de 2013. A Seleção não estava jogando nada e, se com Neymar as chances não eram boas, sem ele a coisa certamente pioraria. Mas acreditava – ou queria acreditar – que a inferioridade tática e técnica, a falta de preparo adequado e a falta do craque podiam ser preenchidas com outros excessos – de garra, de doação, de comprometimento, de todos os clichês da autoajuda esportiva. Torci e torci muito, mais do que normalmente. Sabia que, enquanto estiver vivo, dificilmente terei a oportunidade de presenciar o Brasil conquistar a Copa em casa. Não foi desta vez. Tudo o que eu e você já sabíamos abriu caminho para que apenas um dos times da grande final dos sonhos estivesse realmente presente nela: nosso maior rival, a Argentina.


Mas ainda continuo torcendo. Para que os 7x1 sejam sempre lembrados, e que, com a cabeça eternamente inchada por esse placar, venham as mudanças radicais de que a CBF e todo o futebol brasileiro tanto precisam. Como também torço para que aconteça com o Santos. Para que os dois, Santos e Seleção, não dependam da sorte que, vira e mexe, lhes fornece jovens talentos, capazes de vencer o misto de desonestidade e incompetência com que essas instituições são geridas. 

domingo, 6 de julho de 2014

O esporte número 1 do Brasil

Por onde se vá, você vê gente praticando esse esporte. Raros, porém, são os casos de talento natural – a maioria de pernas pau joga por e com paixão. Mesmo quem não leva jeito para a coisa se vê no direito de brincar, e aí é que está a graça da modalidade, democrática como poucas. Para participar, não é preciso muito – nem informação, nem discernimento –, basta uma conexão de internet. O esporte chama-se “emitir opinião” e é popular nos Estados Unidos há muito mais tempo do que o segundo esporte mais praticado por aqui.

Se os campinhos de terra estão desaparecendo do panorama urbano, o mesmo dificilmente acontecerá às redes sociais, que, nesse particular, funcionam de forma cíclica. O tema da vez, não podia ser diferente, é o futebol. A Copa que acontece por estas bandas parece ter entregado a todos, mesmo àqueles nada afeitos ao jogo, diplomas de especialistas no assunto. Nesse capítulo, a subdivisão “falta que tirou Neymar da Copa” está bastante em voga. Todos têm algo a dizer sobre a “entrada criminosa” – como se diz no jargão futebolístico –, e milhões de brasileiros – mesmo os que acabaram de ser apresentados ao termo –, compartilham da mesma opinião. Muitas vezes, o fazem de modo literal, reproduzindo links de matérias e atualizações de status e tweets de formadores e (com o perdão do trocadilho) deformadores de opinião. Entre os que emitem seu parecer sobre o caso, há aquela sub-raça hidrofóbica que é geralmente vista nos comentários de sites noticiosos. Essa escumalha se vale do anonimato digital para fazer ofensas racistas e ameaças de morte ao zagueiro colombiano Zúñiga e até – puta que o pariu – dizer que a pequena filha do jogador merecia ser estuprada. Eu, que não sou pai mas tenho sobrinha bebê, fico arrepiado só de pensar em tamanha atrocidade.

Na noite de ontem, troquei algumas mensagens com um amigo colombiano – pessoa que respeito e de quem gosto – sobre o tema. Abalado com as ameaças feitas ao compatriota – das quais eu ainda não sabia –, ele, que mora por aqui, não hesitou em taxar a todos nós, brasileiros, como uma massa de ignorantes. Daí a responsabilizar a Dilma por isso, foi um pulo. Diante da minha constatação de que ela não pode ser culpada por um estado de coisas que vem de muitíssimo antes de sua gestão, ele sacou outra generalidade, dessas “opiniões” que lemos diariamente em espaços digitais: somente um povo ignorante como o nosso para eleger uma presidente como a que temos. Eu disse que, da mesma forma que ele havia me explicado detalhadamente a questão das FARC, se quisesse, eu poderia falar-lhe a respeito da política local – dando a entender que ele, em menos de um ano no Brasil, não tinha como conhecê-la em profundidade. Sua mensagem seguinte retribuiu minha proposta com outra, para falarmos de “violência real”, e foi então que soube pela primeira vez da ameaça de estupro à filhinha do jogador colombiano. Ainda tentei argumentar que esse absurdo não era suficiente para emitir um parecer tão negativo quanto a todo um povo, mas o “vai tomar no cu”  que li em seguida acabou com toda a conversa e, possivelmente, com a nossa amizade.

A Colômbia atravessa um momento político histórico, quando se negocia a trégua com as facções criminosas que há décadas sitiaram o país. As últimas eleições definiram a manutenção do presidente Juan Manuel Santos, que deu início às negociações e elegeu o tema como bandeira. É um país em busca de uma saída. Fora do seu país ou ao acessar as redes sociais, os colombianos têm que conviver com estereótipos travestidos de piadas, envolvendo consumo de cocaína, assassinatos e sequestros – e, pior do que as piadas, têm que conviver com a inspiração delas, a triste e infeliz realidade, que tem sido remediada ao longo dos anos. Pelo contato que tive com esse amigo colombiano, pude perceber o quanto a campanha da seleção do país é importante para o resgate da auto estima do pessoal de lá. Tão apaixonados por futebol quanto nós, não participavam de uma Copa desde 1998, e não estavam apenas participando desta. Tinham o artilheiro e um dos melhores jogadores do torneio, James Rodríguez (que, ao lado de David Luiz, protagonizou uma cena extremamente oposta à de Neymar e Zúñiga: nosso zagueiro o vê chorando ao fim do jogo e o consola, em mais um momento – positivamente – memorável da competição), tinham o jogador mais velho a já atuar numa partida de Copa, o goleiro Mondragon, de 43 anos. Tinham um belo time.

De certa forma, entendo a reação excessiva do meu (ex?) amigo e a defesa que fez de Zúñiga – que ele insistia em afirmar não ter agido de propósito – como a defesa não apenas do zagueiro ou da seleção daquele país, mas de toda a Colômbia. Mas não admito o “vai tomar no cu”, no meio de uma conversa que eu julgava civilizada – ainda mais por Whatsapp, mídia que permite pensar bem e desdizer o que se disse antes de fato dizer. Assim, meu amigo colombiano se iguala aos outros ignorantes a quem tão duramente criticou, que, ao ver as barbaridades escritas por eles mesmos sobre e para Zúñiga, também poderiam apagá-las antes de postar. Falta bom senso aos comentaristas de redes sociais, sem dúvida. Mas ter que lidar com eles praticando o esporte mais popular do país é um pequeníssimo preço a se pagar pela democracia. Espero que a modalidade se popularize ainda mais, mas que isso seja acompanhado também do entendimento pleno de suas regras. A maioria dos praticantes joga o tempo todo em posição de impedimento.



sábado, 5 de julho de 2014

Neymar

Atendi, durante um ano, uma das contas publicitárias que têm Neymar como garoto propaganda, o que me deu a oportunidade de conhecê-lo. Foi na gravação de um vídeo publicitário – um tutorial, o conhecido "passo-a-passo", não um comercial propriamente dito. Foi num estúdio improvisado, no prédio de uma faculdade em Santos, para atender as exigências da lotada agenda do jogador. Ele chegou tarde da noite, mas foi pontual. Cumprimentou todos os presentes, que não eram poucos, individualmente, com um aperto de mão. Depois, mantendo o profissionalismo, repetiu o texto quantas vezes pedimos. Com o fim da gravação, quem não foi profissional foi a própria equipe de filmagem: todos, sem exceção, foram importuná-lo em seu camarim (também improvisado) com dezenas de camisas para serem assinadas. Eu também levava algumas, mas não quis me juntar àquela gentalha. Preferi respeitar o espaço do craque. Alguém ali, além dele, tinha de ser profissional. Embora tivesse treino com o Santos na manhã seguinte e já fossem mais de 2:00h, ele não se negou a estender um pouco mais sua permanência ali e também gravar a voz para outra peça. Nesse momento, ao ver as camisas que trazia comigo, ele me perguntou se queria autógrafos e os deu, cansado, mas mantendo a sua simpatia profissional. Agradeci, não apenas pelos garranchos, mas por tudo o que ele já havia feito pelo meu Santos.

Quando ele se transferiu para o Barcelona, não nego, fiquei magoado. Sim, ele ficou no meu time por muito mais tempo que expoentes bem inferiores a ele costumam ficar nos seus antes de se mandar para a Europa. Não, ele não saiu do Santos rumo a um Betis da vida, simplesmente por dinheiro. Mas quem é que gosta de ser abandonado, mesmo sabendo que a ex vai se casar com um cara muito mais legal, bonito, inteligente, rico e bem-dotado? A mágoa, porém, não durou muito. A transação foi feita de modo escuso, como se revelou depois, houve troca de ofensas entre o ex-presidente santista e o pai do Neymar. Mas o craque, num novo exemplo do seu costumeiro profissionalismo, não disse uma palavra que pudesse desabonar seu histórico brilhante com a camisa mais importante do futebol mundial – sou torcedor do Santos, esqueceu? Então, como não faria com nenhuma ex, torci para ele ser feliz, como fez a mim e à toda torcida do Santos. E, principalmente, para que ele continuasse fazê-lo a mim mesmo, agora como torcedor da Seleção Brasileira (sempre com letras maiúsculas, que é assim que tem que ser). E que isso, claro, acontecesse este ano, na Copa do nosso país.

E assim estava sendo. Ele começou arrebentando, liderando a Seleção, estabelecendo-se entre os melhores jogadores e artilheiros deste torneio, trilhando um caminho – bem esburacado, é verdade – rumo ao hexa. Mas havia uma pedra no meio do caminho. Pior, havia um joelho. Um joelho que não foi apenas desastrado: foi mal intencionado, mal fadado, mal interpretado pelo juiz, que manteve o seu dono, o carniceiro Zúñiga, em campo. Acabou com as chances do Neymar de se confirmar como o craque e artilheiro do torneio – e talvez com chances do Thiago Silva erguer a taça por nós. Acabou também com a graça dos que acusavam o moleque de cai-cai. Neymar já vinha sendo caçado há vários jogos – como, aliás, sempre foi –, mas ontem foi, finalmente, abatido. Estou vendo agora um vídeo que foi exibido exaustivamente ao longo do dia, mas que não tinha conseguido ver direito, em que o moleque, com os olhos inchados de chorar, tenta consolar a Nação pelo próprio infortúnio. Mais uma prova do seu incontestável profissionalismo.       

Por triste e dramático, o lance com Neymar é mais um dos que fazem esta Copa memorável como poucas – a Copa das Copas, como pretendia o profético slogan criado pela presidente Dilma. E não é bizarro e risível como o da mordida do uruguaio Suárez no italiano Chiellini – que, no fim das contas, não passa disso mesmo; bizarra e risível. A joelhada de Zúñiga é dos maiores crimes já cometidos dentro de campo em uma Copa do mundo, algo que, usando uma expressão que detesto, “ninguém merece”. Muito menos um moleque tão talentoso e... profissional (acho que já disse isso, não?) como Neymar. Um moleque que acompanho desde antes do primeiro jogo no time principal do Santos -- contra o Mogi Mirim, no Campeonato Paulista de 2009, ao qual compareci -- e espero acompanhar por muito tempo. 

PS: Na foto, tirada no nosso encontro, ao contrário de mim, Neymar está em sua melhor forma.