segunda-feira, 21 de agosto de 2017

40

Estava na cara que eu vinha. Na sua cara. Eu me anunciei primeiro com discrição, da qual fui abrindo mão na medida em que os fios brancos se avolumavam no cabelo que perdia o volume. Nas rugas tímidas mas contundentes em torno dos seus olhos e nos próprios, que voltaram a ser míopes anos depois de operados. Tudo o que você viu, aliás, também era um prenúncio da minha chegada. Tanta gente, tanta história, tantos lugares, tantas coisas inimagináveis. Como, se não com os anos, para se acumular essa experiência? 

Esse, aliás, outro nome que se dá à idade. Gosto de ser chamada assim, mas não quando é como eufemismo. Eufemismo é para coisas que não se assumem, e eu, ao menos em você, gosto de ser o que sou. Você também, mais e mais, tem se apreciado. Tem buscado se aproximar da sua essência, abraçar sua estranheza. Isso tem a ver comigo. Aprofundar-se em si mesmo, mas sem se isolar. Procurar entender o outro, mesmo quando não parece haver o que entender. Conceder o benefício da dúvida, eu lhe ensinei, pode ser mais benéfico a você do que a quem o recebe. 

Conforme me aproximei, os impactos se suavizaram, mesmo os maiores se diluíram. Você aprendeu que, dentre esses, não há nenhum capaz de decretar o fim. Quando vier o derradeiro, vai ser inédito e inevitável, isso você também aprendeu. E, por ter aprendido, deixou de temer. Mas você não quer esse fim para tão logo. Eu também não. 


Nossa relação há de se intensificar. Quero me fazer sentir em você, no cinismo, na ironia, nas limitações físicas que lhe empurram mais e mais para o abismo. Porque o abismo é tão profundo e interessante quanto você for. E é essa a expedição que você deve empreender até o último fôlego.

Leveza

Meu pai sempre foi uma pessoa leve. Talvez seja sua principal característica, que se reflete em todas as outras. Leve no sorriso, leve no humor, no otimismo, no jeito como viveu e ainda hoje vive. Já o vi preocupado muitas vezes. Coisas graves lhe tiravam o sono, mas nunca a leveza. 

Mal interpretada, essa leveza pode dar a impressão errada a respeito dele. Meu pai não é bobo, tampouco inocente. Se sorri para quem quer seja, é por escolha, por julgar ser isso o melhor que tem a oferecer. Assim, ele desarma oponentes, os faz mudar de lado. Quem conhece meu pai melhor sabe de sua sabedoria. Não aquela sabedoria entre aspas, vazio disfarçado por uma pretensa erudição. Homem de pouca instrução e muita vivência, ensina antes pelo exemplo do que com palestras, mas não nega conselhos. 

Esses dias, ele me deu alguns. Nessa conversa, falou justamente da importância da leveza. De não guardar rancores, mágoas. De saber entender e perdoar. Atribuiu a essa conduta sua boa saúde aos 75 anos e disse que é por meio dela que chegará aos 120. (Meu pai, que nunca buscou a riqueza, nisso é bem ambicioso.) Me aconselhou a deixar ressentimentos do passado por lá mesmo e a não alimentar os do presente. 

Quando lhe contei sobre alguns casos em que havia agido dessa forma, ele se mostrou orgulhoso: "Está vendo, meu filho? Amadurecer é isso." Pois é, pai. É assim que pretendo passar os próximos 40 anos. Leve como você.

Meu pai, eu e minha mãe, em 1980.