domingo, 22 de novembro de 2015

Morrissey Football Club

Esta foto, claro, não é de ontem.
Você vai ao estádio assistir a um jogo do seu time e, por engano, acaba no setor reservado à torcida adversária. Você olha ao redor, percebe o erro, pensa em sair dali e procurar sua torcida, mas não tem jeito: o seu ingresso é para aquele espaço mesmo. Claro, não é a mesma coisa que ver o jogo com seus torcedores — afinal ninguém canta o hino do seu time, ninguém torce quando ele faz gol e você ainda corre o risco de apanhar —, mas você vai ter que se contentar. 

Mesmo nunca tendo passado por essa situação, sem dúvida você me entende. Foi exatamente assim que me senti ontem, na pista comum do Citibank Hall, durante o segundo show do Morrissey em São Paulo nesta turnê. Com repertório pensado para fãs da carreira solo, especialmente os familiarizados com o último álbum, do qual ele tocou nove faixas, Moz não fez o show que a maioria do pessoal ao meu lado — que tinha ido ver “aquele cara dos Smiths” — queria. Cantou para os fãs hard-core, o pessoal do meu time, que ocupava a pista premium, onde eu também deveria estar se já não tivesse gastado uma grana para ver o show de terça-feira. 

Com oito shows dele no currículo até ontem, eu sabia: cada um é único. Ao contrário dos shows milimetricamente estudados e coreografados — vide U2 — que se tornaram comuns, nos dele nem repertório nem palavras se repetem. Mas, se isso te dá a oportunidade de ver duas apresentações completamente diferentes no intervalo de poucos dias, também abre espaço para oscilação. E, fazendo referência ao título de uma faixa instrumental dos Smiths, desta vez a o oscilação foi selvagem. Que me perdoe a torcida do Morrissey Football Club, meu time de coração: o show de ontem foi bem inferior ao do Teatro Renault.

Igual ao show de terça mesmo, só as duas primeiras (“Suedehead” + “Alma Matters”) e últimas (“I’m Throwing My Arms Around Paris” + “The Queen Is Dead”) músicas. O repertório apresentado mostrou-se carente não apenas de sucessos dos Smiths (do qual só tocou as panfletárias “Meat Is Murder” e a já citada “The Queen…”, além da sensacional mas pouco popular “What She Said”), mas de hinos da carreira solo, como “Irish Blood, English Heart” e “First Of The Gang To Die”. Dava a impressão de que, por algum erro, haviam trocado o setlist do Citibank Hall pelo do Teatro Renault e vice-versa: o de ontem caberia mais num show para iniciados, como pareceu o caso da plateia da bela casa na Brigadeiro Luís Antônio.  

Isso se refletia, claro, na reação da plateia, muitas vezes indiferente. De onde estava, vi várias pessoas conversando durante as músicas e de braços cruzados ao fim delas, ao invés de aplaudir. Mais que indiferença, teve humor mal educado, quando alguns fanfarrões gritaram por “picanha” e mandaram a clássica “toca Raul”. A grosseria chegou ao auge quando um sujeito gritou qualquer coisa durante a execução da intimista “Smiler With Knife”: Morrissey interrompeu a música no meio e perguntou se deveria parar de cantar. Conhecendo a fama do cantor, um João Gilberto britânico, tive medo que ele de fato encerrasse o show ali. Quando o intervalo para o bis se prolongou além do habitual, esse receio voltou. 

Ontem, mais uma vez, Moz estava falante. Falou entre quase todas as músicas, falou tanto que a torcida adversária talvez tenha achado demais. Mas não estava simpático como terça, embora tenha feito novo elogio a São Paulo, ao grafite local. A plateia reagia negativamente ao repertório, Morrissey reagia negativamente à plateia. 

Mas era meu nono show do Morrissey, e eu estava feliz por ver coisas novas, diferentes do que já tinha visto. E ouvir também, claro. Se terça ele tocou “Reader Meet Author”, ontem foi a vez das para mim inéditas ao vivo e lindas “Yes I’m Blind” (me transportou diretamente a 1991, ano em que me tornei fã) e “Jack The Ripper”, uma das minhas preferidas. Poder abrir os braços e cantar junto “crash into my arms, I want you” já paga o ingresso. 

No fim do show, que vi com o camarada João e, em parte, com o casal Ed e Lilian, tentei encontrar outros amigos também presentes. Não consegui. Os encontros que aconteceram, porém, menos prováveis, foram muito bacanas. Um deles foi com a Camila, leitora carioca, que me mandou mensagens dias antes pedindo para eu autografar sua cópia de “Quem Vai Ficar Com Morrissey?” depois do show. Na frente do Citibank Hall, entre tantas pessoas, ela conseguiu me achar e se apresentou. Infelizmente, a Camila tinha esquecido sua cópia do livro, mas me deu a honra de autografar seu ingresso. É uma menina muito sensível, ainda estava tremendo de emoção após o show. Disse que veria o Moz novamente no Rio e, depois, para a minha surpresa, no Paraguai. Eu nem sabia que o Morrissey ia tocar lá.

Depois, mais inusitado ainda, foi encontrar a Débora, outra leitora. Se com a Camila eu tinha meio que combinado, com ela foi completamente por acaso. Estava tomando uma cerveja com o João quando ela me abordou, perguntando se eu era, bem, eu. Eu também a reconheci na hora — coisas de fotos de Facebook. Estava acompanhada do Jorge, seu filho de quinze anos, a quem ela transferiu a genética e o gosto musical. Depois me contou que o Jorge estava na sua barriga quando ela assistiu ao show do Morrissey em Porto Alegre em 2000, e tudo fez sentido. Os dois tinham chegado ao lugar às 10:00 da manhã e, como recompensa, conseguiram ver o show colocados na grade. Ela me disse que se identificou muito com “Quem Vai Ficar Com Morrissey?” porque, além de ser grande fã do cantor, já tinha vivido uma história parecida — como, aliás, a Camila também viveu. Débora me disse que se viu na Lívia e, como provam as tatuagens do Morrissey e dos Smiths que carrega no braço, ela ficou com as músicas. 

Na saída do show, ouvi comentários do tipo “pô, faltou Smiths”, “Smiths é Smiths”. Por outro lado, a Camila, a Débora e o Jorge me disseram que adoraram o show. Eu, no final das contas, também gostei. Mas tenho certeza: teria gostado mais se tivesse assistido com a minha torcida. 

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

“l'll never make that mistake again.”

Um sortudo teve seu "Viva Hate"  autografado
Ouvi a frase na última terça, durante o show do Morrissey. Mas não veio da boca do ex-vocalista dos Smiths, cantando "Girl Afraid”, sucesso de sua antiga banda. Quem falou foi meu amigo Rodrigo. Ao meu lado na plateia do mezanino do Teatro Renault, ele se lembrou dos shows que tínhamos visto em Dublin, quatro anos antes, quando segurei a mão de Deus, e ele, a de Bozz. Quem leu “Quem Vai Ficar Com Morrissey?” conhece a história dos shows que vimos em Dublin, no minúsculo Vicar Street, narrada por mim na introdução do livro. Era àquela experiência que o Rodrigo comparava o lugar de onde assistíamos ao primeiro show do Morrissey em sua atual turnê brasileira. 

Diferente dos seguintes, esse show também era mais restrito, e nossos ingressos, mesmo não sendo os mais privilegiados, haviam sido bem caros. De onde estávamos, tínhamos uma excelente visão de Moz e sua banda, mas faltava aquela proximidade vivida em terras irlandesas, de que os felizes compradores de ingressos nas primeiras fileiras puderam desfrutar. Foi a inveja dessas pessoas, dentre as quais o sortudo que conseguiu entregar um LP "Viva Hate" para ser autografado por Moz em pleno palco, que levou meu amigo a citar o single dos Smiths. O erro que ele jamais cometeria de novo seria assistir a um show do Morrissey de tão longe.

Mas, para nós, Morrissey nunca esteve longe. Se o sentimos próximo mesmo quando está em outro continente, naquela noite não poderia ser diferente. Como ele estava à vontade no palco, o único lugar onde diz ser feliz de verdade. Como estava simpático, conversador como nunca o tinha visto antes, nem na sua Inglaterra, que lhe deve uma vida e fala seu idioma. Como parecia cantar com vontade, mesmo aos 56 anos, mesmo após mais de 30 anos fazendo aquilo, mesmo estando a enfrentar um câncer. 

Foi de se aplaudir em pé, mas não só. As cadeiras numeradas e confortabilíssimas do teatro tornaram-se inúteis para mim e meu amigo assim que o show começou. Perto de nós, ao contrário dos felizardos da plateia inferior, a maioria só se levantava nos maiores hits: no avassalador começo com “Suedehead” e “Alma Matters”, depois com “This Charming Man”, “How Soon Is Now?”, “Everyday Is Like Sunday”. Eu e o Rodrigo, não: “Porra, assistir show de rock sentado? Não tem cabimento”, dizíamos um para o outro, nos recusando ao conforto que os joelhos cobravam. 

À nossa frente, a única exceção próxima: uma menina adolescente, com camiseta do Morrissey, cantando todas as letras, dançando o tempo todo, em transe. Ao contrário da amiga — ou irmã, sei lá — ao lado, a garota não encostou no celular: assistiu ao show como se fazia na época em que isso era mais importante do que mostrar para os outros que se estava assistindo, como se deve fazer. Por isso, e pela devoção demonstrada, foi a responsável por me fazer recuperar parcialmente a fé no futuro.  

Bem jovem, Morrissey abandonou o nome de batismo e passou a ser conhecido pelo sobrenome do pai, de quem ironicamente nunca foi próximo. Odeia o nome Steven, coisa que qualquer fã sabe. Mas terça, mais uma vez, provou que com a versão hispânica a história é outra: “Soy Esteban”, se apresentou em espanhol, depois de toda a banda, em mais uma prova de bom humor. Disse para os presentes ter andando de carro por São Paulo, “uma cidade muito bonita, cheia de gente bonita”. Disse que somos sortudos por morar aqui. (Quem, como eu, mora a pouquíssimos quilômetros do lugar daquele show, não tem a menor dúvida disso.) Contou, também, ter sido chamado para participar de “um programa de televisão chamado Fantástico” e perguntou se deveria aceitar o convite. A resposta veio em vaias, que, como lembrou uma leitora-amiga, só faltou virem acompanhadas do coro “o povo não é bobo, abaixo a rede Globo”. Se cantassem isso, estariam errados: o povo (ali presente) é bobo, sim. Sendo no Fantástico ou em qualquer outro programa, seria bacana ver nosso ídolo na TV brasileira. 

O repertório foi tão bom quanto se podia esperar, a menos que você não fosse fã e não soubesse como funcionam seus shows. Ainda produtivo e inspirado, Moz não vê sentido em saudosismo, seus concertos não são celebrações de um passado glorioso. Como diz a letra do hino do meu time (para quem não sabe, o Santos), a carreira de Morrissey é “um passado e um presente só de glórias”. Por isso, embora tenha começado com seu primeiro e maior hit solo e tenha incluído algumas clássicas dos Smiths, o setlist contemplou boa parte do seu último disco e diversas faixas mais recentes, como as lindas “I Will See You Far Off Places” e “I’m Throwing My Arms Around Paris” — esta, revestida de outro significado desde os recentes atentados terroristas à capital francesa, tocada já no bis e ovacionada. 

Ainda sobre o repertório, destaco a linda versão de “The First Of The Gang To Die”, em que a história do pobre Hector ganhou uma sonoridade country, e “Reader Meet Author”, do subestimado “Southpaw Grammar”. Tenho um apreço especial por essa segunda, principalmente depois de ter publicado “Quem Vai Ficar Com Morrissey?”. É a ela que me refiro quando, numa entrevista contida no livro, o editor Marcelo Viegas me pergunta que música toca na minha jukebox mental quando penso no lançamento. A canção é uma série de alfinetadas na imprensa musical britânica, que, segundo Moz, apenas ouve o jeito como sua triste voz canta e começa a imaginar coisas. Para mim, entretanto, trata de encontrar leitores, algo que sempre gosto de fazer, seja virtual ou pessoalmente. Até porque todos gostam de Morrissey, e não conheço quem goste e não seja gente boa.   


Ao fim do show, a certeza de ter visto algo memorável e único, mesmo se tratando da oitava vez  em que tive a honra e o privilégio de ver Morrissey ao vivo. Seguramente, uma das melhores. Só não se compara aos shows de Dublin porque, bom, nada se compara. Sábado, a catarse vai se repetir. Mas, infelizmente, vou cometer mais uma vez o erro a que o Rodrigo se referia. Já tendo gastado bastante no ingresso de terça, comprei o do show de sábado para um setor mais popular — leia-se longe do palco.