sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Murakami x Galinha Pintadinha


Os óculos escuros escondiam parcialmente o cenho franzido. A reprovação dirigia-se àqueles cujo barulho, naquele momento, o impedia de existir. Não havia exagero na afirmação: confinado num avião a centenas de quilômetros de velocidade e do chão, Pedro só via justificativa para si nas próximas duas horas se pudesse ler ou dormir. Ao entrar no avião, embora tivesse se deparado com diversas crianças pequenas e a promessa de perturbação trazida por cada lindo sorriso banguela, tentou fechar os olhos, apenas para descobrir que a ameaça se cumpriria.

Como se suas cordas vocais tivessem sido acionadas pelo mesmo mecanismo responsável pelo cerramento das pálpebras dele, todos os bebês presentes começaram a abrir o berreiro. "Por que não dormem e me deixam fazer o mesmo?", pensava, com a inocência de quem finge não saber do imponderável da condição infantil. Conformado com o fato de que o sono era um luxo ao qual não teria direito durante a viagem, abriu o livro que levava consigo. Desta vez, a criança responsável pela mudança de planos estava bem quietinha, entretida pelo tablet e pelo vídeo da Galinha Pintadinha, esse sim de músicas extremamente ruidosas. Os pais, observava a distância, sorriam satisfeitos com o sorriso conquistado às custas do alheio. "Murakami e a Galinha Pintadinha são habitantes de realidades paralelas, de coexistência impossível", concluiu conformado, antes de fechar o livro.


Ao seu lado, o ressonar da namorada fazia pouco da algazarra geral. Além de causar-lhe inveja, fez Pedro pensar se não teria sido o caso dela ter se dopado ou, ainda, se Valentina não teria, de alguma forma, entrado em estado de animação suspensa. Nesse segundo e improvável caso, ela despertaria somente no destino, sem ter envelhecido um segundo sequer. "O melhor jeito de viajar, já diria a Sigourney Weaver em Alien". Pedro olhou o relógio e calculou: faltava ainda uma hora para chegar em Recife. Ligou o smartphone, abriu o precário editor de texto e resolveu passar o tempo restante escrevendo.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Mais mexerica, menos tangerina

Minha família é de Pernambuco. Eu não nasci lá, mas morei no Estado durante boa parte da vida. Sete anos não parecem tantos quando se tem 36, mas, se levarmos em conta que esse período compreendeu parte da minha infância e quase toda minha adolescência, 7 anos são, sim, uma boa parte da vida – e, por que não dizer, uma parte boa. Os quase 20 anos que se passaram desde o fim da minha temporada pernambucana, acredito, não diminuíram a propriedade que tenho para falar sobre a terra e seu povo. Além de, de certa forma, me considerar parte desse povo, visito Pernambuco com alguma frequência e mantenho importantes vínculos afetivos com o Estado. Além de parte da família – inclui meu pai, que tem endereço local –, tenho por lá grandes amigos.

Por tudo isso, digo sem medo de errar: Pernambuco não é lugar de frescura. E isso não tem nada a ver com o outro sentido que a palavra tem por aquelas bandas, onde sujeitos efeminados são chamados pejorativamente de “frescos”. (Contrariando o estereótipo já em desuso, há tantos homossexuais naquele Estado quanto em qualquer outro do Nordeste e de outras regiões do Brasil.) Refiro-me ao modo direto como tudo geralmente é tratado. As coisas por lá recebem o nome que têm. Se um amigo botar a churrasqueira na laje, nunca vai te convidar para um churrasco na sua “varanda gourmet”. Também não é costume local essa história de “happy hour”: em Pernambuco, depois do trabalho – e, às vezes, durante –, o pessoal “toma uma”. Cordeiro? Ôxe, por lá o que se come é bode! (Sim, sei que são animais diferentes, e a principal diferença é que o bode é o cordeiro sem frescura.) E nunca, nunca, você vai tomar suco de “tangerina” em Pernambuco, que lá a gente chama essa fruta é de mexerica, seu cabra. Pelo menos, era o que eu pensava.

Não tinha medo de errar ao dizer que em Pernambuco não tinha frescura. O que é ótimo, já que o erro veio, e eu nem me assustei com ele. Há bem pouco tempo, na passagem de ano, estive lá e constatei, decepcionado: a demão de verniz pseudo sofisticado que se derrubou sobre o país cobriu até mesmo a terra dos meus ancestrais. Num restaurante em Tamandaré, litoral do Estado, me deparei com um cardápio que tinha, entre as opções de sucos, o de tangerina. Sim, de “tangerina”, e não de “mexerica”, que sempre chupei quando lá vivi, e que continuo chupando. Minha decepção léxica se traduz na prática. Ao perguntar sobre sucos de frutas regionais – a saber: siriguela, umbu, cajá, mangaba etc. – ouvi: “Olha, natural, só de laranja e limão. De outras frutas, só de polpa.” Eita, bixiga! Se não posso tomar um suco natural – ou uma caipirinha – de frutas típicas de Pernambuco em Pernambuco, onde mais? Temi pela essência de Pernambuco, diluída como a polpa dessas frutas, para dar origem a sucos sem graça. 

Exagero? E as pizzarias ocupando o lugar de restaurantes nordestinos? Claro, pernambucanos têm todo o direito de comer pizza – por borrachudas que as que comi por lá sejam –, mas à custa do que o Estado tem a oferecer de melhor em matéria de culinária? Sei lá. Talvez seja um jeito de se preparar para o turismo burro dos que, ao viajar, não procuram sequer conhecer a cultura local, buscando de cara sabores e experiências já conhecidas. Gente que vai para resorts e, se possível, não sai deles. 



É, talvez seja mesmo exagero. Só fiquei decepcionado ao constatar que Pernambuco não é o foco da resistência contra a frescura que imaginei ser. Lá, hoje há as mesmas “varandas gourmet” e “paletas de cordeiro” que existem nos bairros endinheirados e sem alma de São Paulo. Lamentável. Vô Zezé, nascido e “morrido” em Caruaru, também ficaria aperreado. Vô Zuzinha, “morrido” por aqui mas sem nunca ter se dobrado à frescura, vixe nossa senhora.