quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Quem vai ficar com Morrissey? (trecho)

(Acabo de terminar o 5º capítulo. Como diria o Morrissey, "it's a miracle I even made it this far". Comemorando o tal milagre, mais um trecho, extraído desse próprio capítulo. Achou vago? Opa, é essa a intenção.)

A espera telefônica, na qual se ouvia a programação da Antena 1, emputeceu Fernando mais ainda. Mais ainda por ter de ouvi-la por seis minutos, e não um, como lhe prometera a inexpressiva voz do outro lado. Air Supply e Luiz Miguel, desde sempre insuportáveis, nunca foram tanto. Tinha certeza de que Peçanha antevia essa reação e, por isso, prolongava o seu tempo ali, no equivalente auditivo à ante-sala do inferno. Fernando até conseguia vê-lo cortar os pelos do nariz com uma daquelas tesourinhas, cuidadosa e demoradamente, deliciando-se com o insistente tocar do seu ramal. Quando finalmente terminou seu pequeno trato de higiene pessoal – na verdade, cortava as unhas – atendeu.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Quem vai ficar com Morrissey? (trecho)

(Hoje é meu aniversário, mas quem ganha o presente é você. Trechinho que acabo de escrever, inspirado nas minhas bodas -- uma das palavras preferidas do Lucas Celebridade. Se não gostar, não me conte. Ou espere até amanhã.)

Adormeceu pensando ser o garotinho que passara as quase três horas do filme de Bertolucci dormindo. Sentiu-se terrivelmente velho ao acordar. Os 30 anos biológicos, acrescidos do desgaste emocional e do alcoólico, valiam por 80, pelo menos. Ancião, desceu da cama com dificuldade, tendo de segurar-se na prateleira sobre ela para não se estatelar. Com custo, arrastou-se até banheiro. A força levada pela juventude, não foi fácil abrir a torneira do chuveiro. Remoçado 30 anos pelo banho, pensou em tomar mais um. Desistiu. Muito tempo sob a água enrugaria sua pele e o faria voltar as casas que avançara no jogo da vida. Durante o dia, talvez conseguisse atingir a casa dos 30, se não, usaria a sabedoria dos 50 para entender o que se passava.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Quem vai ficar com Morrissey? (trecho especial)


(Não pretendia postar mais um trecho tão cedo, mas, devido à morte de John Hughes, diretor de "Curtindo A Vida Adoidado", decidi mudar meus planos. Uma pequena homenagem ao responsável por este e outros filmes muito importantes na minha infância: "Mulher Nota 1000" e "Clube dos Cinco".)

Pense num típico adolescente dos anos 1980. Digamos que o icônico Ferris Bueller simbolize bem os púberes daquela década. Pense no protagonista de “Curtindo A Vida Adoidado” pegando seu telefone transparente de teclas – “descolado” hoje, “transado” na época. Agora, imagine-o ligando para uma rádio e pedindo uma música que fala de “pessoas que se sentem tão sozinhas que só querem morrer” e dos monstros insensíveis que riem delas. Pouco provável? Quem sabe, se a canção tivesse uma melodia dançante, ele pudesse ignorar a letra e concentrar-se em testar os limites da flexibilidade das calças semi-bag – o que, aliás, não exigiria grande concentração. Mas, supondo que a repetição contínua de “chute-os quando caírem” não fosse suficiente para enfatizar a humilhação dos pobres-diabos, a atmosfera das guitarras em fade out hipnotizaria o ouvinte e daria conta do recado. Não exatamente o tipo de coisa em que alguém que canta num carro alegórico gosta de pensar, certo? Se ligasse para uma rádio, Ferris preferiria pedir “Twist and Shout”. Estava longe de ser um lançamento, mas também estava longe de fazer pensar, sobre gente infeliz ou sobre qualquer coisa.

Em 1985, essa conjectura, a qual chamaremos “Conjectura Ferris Bueller”, não deve ter ocorrido aos executivos da gravadora londrina Rough Trade. Compreensível, o filme seria lançado apenas no ano seguinte. Só isso explica a crença de que “That Joke Isn’t Funny Anymore” seria um bom single. Nas filas que se formavam em frente às lojas a cada lançamento de um compacto, dos Smiths ou de qualquer grupo badalado, sem dúvida haveria “chutados”, mas não em número para fazer um disquinho como aquele alcançar uma posição sequer razoável nas paradas britânicas. Foi o segundo maior fracasso entre os singles lançados pela banda de Morrissey e Marr.

Seis anos depois, “Curtindo A Vida...” já era o favorito de legiões moleques, incansáveis espectadores de suas reprises. Fernando era um desses legionários, para quem Ferris Bueller representava, mais que um personagem, um modelo. Inspirados nele, milhões de garotos por todo o mundo empenhavam-se na cabulada de aula perfeita. Muitas vezes, até conseguiam simular uma dor de barriga, mas não eram deixados em paz pelas mães, preocupadas ou desconfiadas. Nos casos em que, como os do ídolo, os pais iam trabalhar e os deixavam sozinhos em casa, os meninos tentavam seguir fielmente os passos do mestre. Cantavam no chuveiro e, com a ajuda do xampu, faziam penteados moicanos. Depois, dançavam alegremente enquanto se vestiam. O problema era a parte de ligar para o melhor amigo tímido, cujo pai deveria ter uma Ferrari na garagem. Apenas 0,03% dos fãs tinham um camarada que se encaixasse nesse perfil. (Desses 0,03%, apenas 5% conseguiam convencer o amigo a sair com o conversível. Desses 5%, 98% se contentavam com uma volta no quarteirão a 20 km/h, e os 2% mais ousados, que se aventuravam pela cidade, acabavam pegos pela polícia, e essa, antes de chamar os pais, se divertia muito dando-lhes um susto.) 99,97% se davam por satisfeitos passando o dia em casa a ler gibis, jogar vídeo game e assistir à Sessão da Tarde. Com sorte, poderiam até pegar uma das reprises do seu filme preferido.