domingo, 30 de dezembro de 2012

Enjoy the silence


Já era por volta do meio-dia quando abri os olhos. Mas meus ouvidos é que  pareciam ter se fechado. As vias movimentadas, de trânsito intenso mesmo nos finais de semana, audível até com a janela fechada no 21º andar em que moro, não emitiam nenhum som. Abri a janela, e os poucos carros que pude ver estavam estacionados. Nenhuma viva alma andava no meu campo visão. “É isso”, pensei. “O apocalipse que anunciaram para dia 21 veio com oito dias de atraso.” Teria sido um armagedon diferente do imaginado, sem cometas caindo, sem que o chão se abrisse e engolisse os carros – afinal, ainda havia alguns ali, parados. Era um outro tipo de fim de mundo, mais como o descrito por Cormac McCarthy em “A Estrada” (confesso, só vi a adaptação para o cinema), em que a vida terrena é dizimada por uma súbita e desconhecida praga, poupando inexplicavelmente apenas alguns infelizes, como o Virgo Mortensen e eu.
Podia me ver fugindo das tribos de canibais nômades, lutando contra um ímpeto de sobrevivência animal que me impelia a mim mesmo ao canibalismo, quando me lembrei: “Putz, é dia 29 de dezembro.” Todo mundo, inclusive o Virgo Mortensen, tinha ido para a praia. São Paulo tinha ficado só para mim – e para uns outros que, por uma razão ou outra, não engrossaram o trânsito da Imigrantes e da Anchieta. Mandei mensagens para alguns desses remanescentes, convidando-os para almoçar, e saí para as ruas desertas, sem levar o celular. Na volta, resposta nenhuma. Só o silêncio. 
Banho tomado, voltei para o deserto asfaltado. Decidi, então, falar algumas das primeiras palavras do dia. Liguei para o meu pai, com quem nunca há conversa rápida. Passados dez minutos, voltei ao silêncio. No metrô, meu vagão estava vazio. Vazias também estavam as caixas de som que anunciam as estações. “Qual a necessidade de avisar algo para ninguém?”, talvez tenha pensado o condutor do trem. Desci na Consolação e a Augusta. Lá, com os primeiros pingos de chuva caindo, encostei num boteco qualquer para almoçar. Antes que o prato chegasse, liguei para o meu irmão. Só não foram mais dez minutos de conversa  porque o bife acebolado que pedi nos interrompeu. Como viria a saber depois, quem queria conversar comigo era ele. (Ficamos conversando até a noite, quando ele me disse: “Não precisa jantar, não. Eu ainda tô aqui.”) 
O plano que tinha traçado era ir até a Alameda Itu comprar material para desenhar na Casa do Artista e, depois, buscar meu carro, que tinha deixado na Vila Madalena na noite anterior, mas a chuva borrou tudo. O boteco em que estava não era tão ruim, mas, almoço terminado e sem expectativa de beber, não tinha muito o que fazer por lá. Resolvi me arriscar na chuva a caminho do Espaço Unibanco (para mim, sempre terá esse nome) e, uma vez lá, me arriscar em qualquer filme cuja sessão começasse logo. Às 16:00, tinha “As Quatro Voltas”, filme italiano do qual, meio desatualizado que estou, não tinha ouvido falar. Se tivesse, talvez não me aventurasse. Coerente com o meu dia, a película não tinha uma palavra sequer. Além de palavras, também não tinha sentido. Sim, leitor cabeçudo, eu sei que tinha sentido. Me refiro mais à pretensão de se fazer enigmático, não-linear... ZZZZZZ. Quase, por muito pouco, não dormi. Só não saí no meio da sessão por três razões: 1º) a única vez que fiz isso foi anos atrás, no mesmo Unibanco, numa sessão de “O Segredo”, na qual entrei igualmente desavisado; 2º) queria ver se, no final, quem sabe, se revelaria algum sentido para o filme (sim, se revelou, mas não ajudou muito); 3º) ainda podia estar chovendo. 
Saí do cinema para me molhar um pouco mais, novamente até o metrô, no qual, agora, tinha companhia. Fui até a estação Sumaré e de lá peguei um táxi até a Vila Madalena. No trajeto de pouco mais de cinco minutos, o motorista contou uma história longuíssima, atropelando palavras para que ela coubesse no tempo da viagem. Chegando ao meu carro, não me deixou sair até terminar. Feliz por voltar ao volante e ao silêncio, fui, aí sim, para a Casa do Artista, verdadeiro – desculpa o clichê – playground de artista. Canetas, lápis e papeis comprados, a programação para a noite já estava providenciada. 
Passei a noite de ontem absorto nos desenhos. À medida em que ia dando forma a eles – e a mim mesmo, já que um deles era um autoretrato –, a necessidade de contato com o mundo externo diminuía. Tudo bem se não tivesse quase ninguém em São Paulo. Naquele momento, por mim estaria tudo bem se não tivesse ninguém no mundo. (Opa, bate na madeira.) Voltei a me comunicar com pessoas que não saíram das minhas canetas apenas mais tarde, quando entrei no Facebook para criar uma nova página de divulgação dos meus desenhos. (Para conhecer, é só clicar aqui.
É, amigo. Assim, encerro minhas contribuições para este blog por 2012. Espero que, em 2013, o silêncio não seja tão freqüente por aqui.

sábado, 22 de dezembro de 2012

Who Loves The Sun?


O sol queimava a pele das suas costas como se ele não tivesse vestido a camiseta que as cobria. A leveza do fino tecido mostrava-se, então, traiçoeira: tendo motivado a escolha da camiseta para suportar aquele dia quente, permitia, quase sem filtro, a passagem dos impiedosos raios. Sentia-os torrar seus ombros, quem sabe aumentando as já numerosas sardas que os marcavam. O sol não ignorava somente sua roupa. Passava por cima também dos seus sentimentos, para os quais mais adequados seriam o céu encoberto, a chuva fina, o frio. Andando pela rua Vergueiro, se dirigia ao metrô Ana Rosa. No subterrâneo, em algum tempo, estaria protegido da inclemência solar.
Apenas um quarteirão o separava da estação, quando parou na padaria. Já um tanto exausto, precisava daquilo que lhe justificava a falta de fôlego. Pediu no caixa um Marlboro vermelho, de caixinha, e um isqueiro. Pagou e saiu. No reencontro com o sol, maldisse a lei antifumo e, antes dela, as restrições higiênicas que o impediam de degustar o tabaco nas dependências da panificadora. Parado na calçada, tirou um cigarro da caixa. Antes de pegar o isqueiro, divertiu-se imaginando: quente como estava, o sol poderia tranquilamente providenciar o fogo. “Mas nada que viria do sol seria em meu beneficio”, constatou em seguida, solapando com este o primeiro pensamento leve que tivera desde que acordara. Os pensamentos ruins, por outro lado, puseram-se em ação antes mesmo da consciência.
O sono intermitente, pleno de pesadelos, teve fim com o sol entrando pela janela, esquecida aberta, trazendo a reboque os resmungos do trânsito. A luz o forçou a abrir os olhos e, quando o fez, se deparou com o vazio, que preenchia o outro lado da cama e sua vida. Esticou o braço, buscando a caixa de cigarros sobre o banco plástico que fazia as vezes de criado mudo e a descobriu vazia. Foi isso, mais do que o relógio lhe indicando o atraso, o que o fez se apressar em ganhar a rua. Precisava ter no peito algo além da tristeza, e não conseguia pensar em nada melhor que a fumaça dos cigarros.
O fumo, dizem os médicos, mata neurônios. O álcool, cujo consumo ele intensificava desde algum tempo, também. Mas as células cerebrais sobreviventes desse massacre sistemático, como numa resistência subversiva, pareciam trabalhar em dobro para dar conta justamente das sinapses que ele se esforçava por evitar. Parado na calçada, atrapalhando a passagem de pessoas apressadas, fumava alheio a tudo que não fosse o cigarro e as lembranças. Envolvidas agora pela fumaça, as cenas aleatórias da felicidade passada ganhavam ares de flashback de cinema. Em meio a esse nevoeiro, caminhavam sem pressa por ruas estreitas de Paris, espremiam-se no pequeno sofá para assistir a seriados por horas a fio, faziam amor demoradamente em manhãs de domingo, tinham conversas intermináveis ao sair do cinema. Cigarro entre os dedos, ele se dava conta de que o esforço dos dois para prolongar aqueles momentos tinha sido bem sucedido, e de que isso estava longe de ser algo positivo. Agora, ele sabia: eternizar o que viveram representou sua condenação perpétua.
Foi então que outro incômodo, físico, devolveu-o ao presente. Vindo do topo da sua cabeça, após uma pequena parada nas sobrancelhas, o suor atingiu seus olhos, indiferente ao que pudesse estar interrompendo. Trouxe ardor e um lembrete: além do passado, ele tinha outro verdugo. Sim, o metrô lhe daria asilo do sol. E foi exatamente por isso que resolveu submeter-se a ele por mais um tempo. Gostava de saber que, se quisesse, pelo menos do sol ele poderia fugir.