quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Vangelis e o Espírito de Natal



Não gosto de natal. Acho que nunca gostei, nem quando criança, talvez por ter aprendido desde cedo que Papai Noel tem seus escolhidos. O tal verdadeiro significado da data, em tese muito superior às frivolidades relacionadas a ela, também não me comove. Muitos já falaram sobre a hipocrisia de se pregar e praticar a comunhão entre povos, famílias, vizinhos, petistas e tucanos apenas nessa data, por isso não serei mais um. Quem critica essa conduta, costuma dizer que deveria ser assim todos os dias, e é assim, como um dia qualquer, que eu vejo o natal. Se não fosse o feriado a cerrar as portas do comércio, a decoração duvidosa e o próprio “clima natalino”, com todo o sentimentalismo exagerado e forçado, para mim,  24 e 25 de dezembro seriam apenas dois dias absurdamente quentes como todos do verão brasileiro. 

Hoje, porém, admito: fui possuído pelo famigerado Espírito de Natal. Como em todas as possessões, aconteceu de forma inesperada, inusitada, difícil de explicar. O que você vai ler nas próximas linhas é meu esforço para tal. 

Passava das 13h. O sol ria do absurdo da decoração a simular neve. Andando para casa após a corrida, eu derretia, como os bonecos arredondados derreteriam se realmente fossem feitos de sua suposta matéria prima. Nos vidros dos carros estacionados, meu reflexo era tão vermelho quanto a roupa que os bons velhinhos usam para faturar um extra no fim do ano dos shopping centers. A subida por onde se estendem os mais de dois quilômetros entre o parque e minha casa também não ajudava. Mas nem tudo estava perdido: havia a endorfina pós-treino. A substância tentava bravamente equilibrar as coisas, me dar motivos para sorrir. Estava difícil, mas ela não desistia.    

Veio, então, a cavalaria. Veio do passado e do futuro. Veio, não em cavalos, mas num carro voador, pilotado por Harrison Ford. Veio no tema mais famoso da trilha sonora de “Blade Runner — O Caçador de Andróides”, escolhido aleatoriamente entre as músicas armazenadas no meu celular. A obra-prima de Ridley Scott é, seguramente, o filme a que mais assisti na vida. É também um dos meus preferidos. Ao saber que o clássico de 1982 teria uma exibição especial no cinema, não pensei duas vezes. Dividindo a mesma fila quilométrica com nerds a caráter para assistir ao mais recente filme da saga “Star Wars”, eu aguardava para ver uma versão muito mais jovem do intérprete de Han Solo. Seria minha primeira e, provavelmente, última oportunidade.

As mesmas cenas, os mesmos diálogos. O mesmo poder de me causar arrepios amplificado pelas caixas por onde saía a trilha sonora de Vangelis, em áudio remasterizado, impecável. A trama recorre à caça aos replicantes empreendida por Deckard — a origem do título nacional — para falar de questões mais reais e imediatas do que andróides semi-humanos e colônias extraterrestres. É sobre finitude, sobre o medo da morte, que todos temos — e sobre sua certeza, a única que temos. O compositor grego criou a paisagem sonora ideal para tratar desse tema. Há na trilha sonora de “Blade Runner” elementos de um futuro que não chegou e não chegará no 2019 em que o filme se ambienta — a apenas três anos, mas a séculos da nossa realidade. Há uma delicadeza e uma sensibilidade nos dedos deslizando no teclado do piano e pelas cordas do contra-baixo, vestígios de uma humanidade que não se dá por vencida apesar da frieza dos avanços científicos que permitem recriar o homem apenas para escravizá-lo. Humanidade manifesta principalmente nessas réplicas, que se recusam a não ter sentimentos e que, diante da noção da proximidade do seu inevitável fim, rebelam-se contra seus criadores e se mostram demasiado humanos; mais do que eles, talvez.   

Como todos nós, Roy (líder dos replicantes interpretado por Rutger Hauer) sabe que vai morrer. Como a maioria de nós, ele se recusa a aceitar o fato. Como poucos de nós, ele vive cada minuto como se fosse o último. Privado de futuro, a Roy só resta o agora. É no agora que ele corre no meio da chuva, salta de um prédio para o outro e atravessa paredes com seu punho e a força descomunal que o separa daqueles a quem replica. É no agora que ele salva Deckard, seu caçador, da morte certa. Prestes a cair do topo de um prédio, Roy o agarra pelo braço e o puxa. Dá a ele a vida que ele mesmo vai perder em breve. 

Pode ter sido esse o efeito desencadeado em mim por “Love Theme” mais cedo. Bastaram as primeiras notas do saxofone para tudo ao meu redor ganhar outras cores. Cenas banais, como um casal de idosos saindo da padaria ou a mãe e o filho, de mãos dadas, esperando para atravessar a rua, tornaram-se maravilhas como as naves de ataque explodindo em Orion presenciadas por Roy. Numa versão mais modesta do ato salvador do replicante para com seu perseguidor, tive vontade de ajudar os velhos a carregar suas compras ou de fazer os carros pararem para que a  mulher e o menino pudessem atravessar a rua. 


Não fiz nada disso, claro. Mas me senti em comunhão com eles, com todos, como os cristãos se pretendem em tempos de natal. Mais que uma conversão tardia, uma reafirmação da minha fé no poder da música, no poder do cinema, no poder da arte.