segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Planos para um sábado à noite


Como bem sabem meu computador, minha TV e meu DVD, manuais não são minha leitura preferida. Agora, quem também sente meu descaso pelas instruções é a solteirice. Sábado desses, ao invés de aproveitar a tal febre noturna desse dia como manda o script dos “entre relacionamentos”, me programei para assistir a um filme que passaria na TV.

E os belíssimos planos de “2046" se mostraram melhores do que qualquer outro que eu poderia ter. Fiquei tão impressionado com a fita que, por uma semana, ela foi todo o meu assunto. Comentários do tipo “que linda a fotografia, que poético o roteiro” povoaram todas conversas que tive no período. Por pouco, quase nada, não mandei um deles ao passar pelo porteiro do meu prédio, mas o clássico “e o seu Corinthians, hein?” ainda me pareceu mais adequado.

Como a maioria do grande público, meu primeiro contato com o cinema de Wong Kar Wai se deu em sua estréia americana, o ótimo “Um Beijo Roubado” – estréia também da cantora Norah Jones como atriz. Pouco depois, aluguei outro filme seu, “Amor à flor da pele”, mas o sono me fez devolvê-lo sem assistir. Para falar a verdade, fiquei com a impressão de que a produção chinesa dele é que era sonolenta. Mas, ao ver as chamadas de “2046” no Telecine Cult, resolvi dar mais uma chance ao china. Não apenas não dormi durante o filme, mas tive certa dificuldade de fazê-lo depois.

O número do titulo se refere a duas coisas: trata-se do quarto de hotel vizinho àquele onde o protagonista, um escritor, se hospeda, e é também o nome do livro que ele escreve. Pelo quarto 2046, passam diversas mulheres com quem ele se envolve, cada uma à sua maneira. No romance, 2046 é o ano para onde, num futuro fictício, um trem leva as pessoas para resgatar memórias que, por alguma razão, lá permanecem intocadas. Nunca alguém voltou de 2046, por isso não se sabe como é o ano. O primeiro a regressar é o personagem principal da trama dentro da trama. As duas se alternam durante o filme, compartilhando personagens, inseridos na ficção pelo autor.

Como eu, Wong Kar Wai parece não gostar de manuais. “2046” escapa da mesmice na narrativa, na estética, nos diálogos, no enredo. “2046” é lindo, é inteligente, é fascinante. Provavelmente, mais do que qualquer mulher que eu conheceria se saísse àquela noite de sábado. É, eu também acho triste.

Pequeno conto de Natal


Na garagem de vagas não demarcadas, estacionava numa péssima, quando notou o vizinho saindo de uma muito boa.

Ao pensar que o outro voltaria em breve e ficaria decepcionado ao perceber sua ótima vaga ocupada, conteve o impulso de parar lá. Movido pelo espírito natalino, abriu mão da oportunidade de colocar seu carro na melhor vaga de todos os tempos. Sorriso fraternal no rosto, esmerou-se para encaixar-se naquela mesmo.

Pouco mais tarde, desceu ao estacionamento e viu um terceiro carro parado na maravilhosa vaga. Ainda repleto da magia do Natal, pegou a chave do seu carro e, com ela, fez um bonito desenho no outro.

domingo, 21 de dezembro de 2008

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Shuffle aleatório



Meu iPod está configurado para o idioma português. E, para o pessoal da Apple, português é o que se fala em Portugal, e não aquele que nós, brasileiros, imensa maioria dos faladores da língua, praticamos. A explicação para isso poderia ser o fato da maior parte dos consumidores da empresa que falam português serem da Terrinha, mas, até por uma questão de disparidade populacional, acho difícil. Mais provável é que os responsáveis pela programação não façam idéia de que existam variações do idioma – já me surpreende saberem que ele existe.

E, por estar programado para o português, no meu iPod, a função “shuffle” ganhou o nome de “músicas aleatórias” (sempre lido com sotaque lusitano, evidentemente). Tendo conhecido o “shuffle” antes de mudar de nome, eu continuo a chamá-lo assim, como acontece com Jorge Benjor e a Sandra de Sá, aos quais me refiro da mesma forma como se chamavam antes da interferência de numerologistas e afins.

O “shuffle”, esse meu íntimo, pega carona comigo todo dia – com quase 13 mil músicas no iPod, se ficasse escolhendo o tempo todo, fatalmente bateria o carro. Também é assíduo na academia – ou, pelo menos, o quanto eu permito que ele seja. Sem me preocupar com a ordem das músicas já é foda me exercitar, e não tenho intenções de aumentar o grau de dificuldade da malhação. Verdade que nem sempre sigo as sugestões do shuffle – Carly Simon depois de Metallica é no mínimo estranho –, mas, no geral, costumo deixar que ele me surpreenda – às vezes, a Carly Simon depois do Metallica até que é legal. Hoje, a caminho do trabalho (onde, aliás, o “shuffle”, como labrador treinado, fica esperando pacientemente do lado de fora), a função beirou a perfeição. Não que tenha tocado apenas canções que eu queria ouvir, mas fez uma seleção muito da bacana. Dá uma olhada:

Lady Godiva (Grant Lee Buffalo)
Whole Wide World (Wreckless Eric)
Runaway (Del Shannon)
I Saw You On TV (Billie The Vision & The Dancers)
Rust (Echo and The Bunnymen)
Forest Fire (Lloyd Cole)
Theresa’s Sound World (Sonic Youth)

Basicamente, a única coisa que une essas melodias, além do meu iPod, é o fato de serem cantadas em inglês. Mesmo assim, gostei à beça. Rock dos anos 50 (“Runaway”) e guitar/noise/alternativo (ou como queira classificar o Sonic Youth) misturado com folk sueco (Billie The Vision) e uma música da trilha de “Stranger than fiction” (Wreckless Eric) foi, de algum modo bizarro e bem-vindo, a trilha perfeita para quem chega ao trabalho tarde e com sono. Então, é assim: quando o “shuffle“ mandar bem, é “shuffle”. Quando não, vou chamar de “músicas aleatórias”, seguindo a técnica das mães que dão bronca nos filhos. Parece justo.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Meu reino

O de Ricardo III vale um cavalo.
Já o de Jeff Buckley, um beijo no ombro dela.
Definitivamente, os preços dos reinos precisam ser tabelados.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

That’s how people grow up

Assim que ela saiu, pensou em encher a cara. Ao invés disso, chupou duas mexericas e assistiu a um documentário do The Who que passava na tv.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Na Vila Mariana

Passando pelo cruzamento da Machado de Assis com a Guimarães Rosa, se deu conta: tudo o que escrevia era uma merda.

terça-feira, 25 de novembro de 2008

terça-feira, 18 de novembro de 2008

I had a dream that I saw Dali

Parado no semáforo em frente ao Ibirapuera, olhei para o lado e vi um sujeito com ares, bigodes enrolados e boina de pintor. Ao vê-lo a dar pinceladas numa tela, conclui: era mesmo um pintor.

O pouco tempo que passei ao seu lado e o ângulo de visão não me permitiram ver o que ele pintava. Mas a forma redonda da tela me deu a certeza de que não podia ser coisa boa.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

A baia é o limite


Pretensamente antenada nas tendências do RH moderno, a diretoria da empresa resolveu pôr fim às baías e, assim, às divisões entre estações de trabalho e departamentos.

No princípio, os funcionários adoraram se livrar do confinamento do MDF, mas esse princípio não durou mais que uma semana. Na segunda, surgiram de toda parte reclamações sobre o fim da privacidade no escritório: todos tinham o que dizer sobre a vida doméstica, sexual e financeira dos outros, e diziam, sendo convidados ou não – geralmente, não eram.

O diretor de RH, então, passou uma circular explicando que a decisão de baixar as baias tinha o objetivo de favorecer a interatividade profissional, além de deixar o ambiente mais agradável. Mas para que fosse agradável mesmo, as pessoas deveriam agir como se as baias continuassem lá. No sentido figurado, é claro.

Após mandar o comunicado, o diretor de RH passeou pelas mesas para verificar seu efeito. De fato, ninguém mais estava se metendo em assuntos alheios. Pareciam mesmo seguir a orientação de agir como se as baias estivessem lá. Principalmente a gordinha da contabilidade, desapontada ao tentar afixar uma foto da afilhada no ar, e o careca de compras, estatelado na mesa após se debruçar sobre coisa alguma.

Então, o diretor resolveu reinstalar as baias. Seria mais fácil do que ensinar àquela gentalha o significado de “sentido figurado”.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

21 gramas

Na farmácia, foi direto à balança. Notou: estava 21 gramas mais leve. Tendo visto o filme, concluiu ter morrido. Do balcão, o funcionário alertou: “Tá desregulada”. Foi a ressurreição mais rápida da história.

O amor nos tempos do cólera

Não sabia que constatação tinha vindo primeiro: a do fim do amor ou a de que ela fazia cocô.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Boooooring

Num mundo tão politicamente correto e chato, não vou me espantar se as pessoas começarem a se comunicar por meio de bocejos.
Cobrindo a boca com a mão, evidentemente.

sábado, 4 de outubro de 2008

A bordo do Aero-trem


Com espaço na propaganda eleitoral limitado e, na maioria dos casos, com verba idem, vários candidatos nanicos abrem mão da credibilidade, que supostamente levaria os eleitores a escolhê-los, e adotam a bizarrice para se fazer lembrar. De tão comum, a estratégia tem efeito inverso: dentre tantos cornos, tantos travestis e palhaços (os de verdade, mesmo) como distinguir um do outro?

Mas houve um tempo em que a seriedade dava o tom das campanhas políticas, embora nunca tenha sido esse o tom da política propriamente dita. Postulantes de pouca expressão usavam seus milésimos de segundo na televisão meramente para, em locução de turfe, comunicar nome e número. Torciam para não serem esquecidos, o que acontecia de forma mais rápida que sua aparição.

No primeiro pleito presidencial pós regime militar – quando elegemos Collor e mostramos como merecíamos recuperar o voto –, surgiu uma geração que, se não mudaria a política, pelo menos tornaria o horário eleitoral menos sacal. Grande serviço à população, que, sem TV por assinatura, tinha aquela como única opção – “desligar a televisão e ler um livro” estava fora de cogitação.

Sem votar por tantos anos, o eleitor não abriria mão de fazê-lo daquela vez. Com tanto voto dando sopa, surgiu nos políticos o sentimento de “e por que não?”. E não só neles, já que, entre os mais de 20 candidatos, até Silvio Santos estava no páreo. Com tantos concorrentes, os de partidos inexpressivos, que normalmente já não teriam muito espaço, tinham menos ainda. Assim, precisavam otimizar (como diria o pessoal da firma) seu tempo.

Nenhum o fez tão bem quanto o até então desconhecido (“meu nome é”) Enéas. Careca, barbudo, óculos fundo-de-garrafa e cara de louco, a promessa de desenvolver a bomba atômica nacional e, principalmente, o bordão gritado o deixaram à frente de muitos políticos consagrados. E, até hoje, mesmo após sua morte, ninguém esquece o nome dele. Talvez porque seus berros agudos e roucos ainda ecoem na cabeça da moçada.

Em meio aos atuais engraçadinhos, resiste um original, surgido mais ou menos na mesma época que o candidato do PRONA. Antes de consultar o Google, apostava que Levy Fidélix, atual aspirante à prefeitura de São Paulo, tinha concorrido à presidência em 1989.Talvez por ser folclórico como os concorrentes de então, talvez por já ter se candidatado tantas vezes a tantos cargos. Fiel às suas origens, nunca abriu mão do Aero-trem, proclamada panacéia para o trânsito de São Paulo. Continua a defendê-lo mesmo depois da eficácia duvidosa do Fura-fila de Celso Pitta, cópia descarada do seu projeto. É um incansável.

Amanhã é dia de eleição, mas não para esse visionário. Duvido que mesmo os participantes da carreata de quatro carros que presenciei sexta votem nele. Como de costume, o seu será dos poucos votos que ele receberá – isso se até mesmo ele não se resolver pelo voto útil. Então, me pergunto: por que ele continua a se candidatar? Talvez, a resposta venha com a inauguração do Aero-trem.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Não requer prática



Morar sozinho é bacana. O problema é que, mesmo sem ser convidada, a fome aparece para dividir o apartamento com você. Mas, além de não ajudar nas contas, ela ainda as aumenta. Você gasta uma grana no supermercado e só compra bobagem. Agora, sem a mãe para pegar no pé pra você se alimentar de forma saudável, latas de cerveja, refrigerante e salgadinhos pulam no carrinho para fazer companhia às bolachas recheadas e aos chocolates. Não por coincidência, só coisas que não precisam fazer escala no fogão antes de ir para a sua pança. Pança, aliás, que tende a aumentar muito se você continuar comendo desse jeito, camarada.

O que talvez você não saiba, e eu também não sabia, é que não é necessário saber cozinhar para fazer um rango minimamente light. Não me refiro a coisas sem sabor, como a maioria das que levam esse rótulo, nem a sanduíches – isso, eu suponho, você sabe fazer. A receita a seguir foi inventada e executada por mim agora, quando cheguei faminto e não queria comer chocolate ou as salsichas ao vinagrete – duas dessas coisas que compramos por que a fome manda e a mãe não está por perto para impedir.

Na última vez que fomos ao supermercado, minha namorada, grande talento na arte de morar sozinha e sem a mesma aptidão para a cozinha, aconselhou: “Compra uma lata de milho verde e uma de ervilha. É sempre bom ter em casa...” Por isso, divido com ela os créditos dessa iguaria. Com ela e com minha inexperiência – além daquelas ao vinagrete, comprei salsichas de peru acreditando que tivessem o mesmo gosto do “peito de”, mas descobri que, se as calorias são quase zero, o gosto também é.

Assim se fez a receita: latas de conserva e um embutido absolutamente sem gosto, misturados à margarina light (claro, o sabor também não é o mesmo), levados ao microondas por dois minutos. Tirei do forno com os dedos cruzados. E não é que ficou bem aceitável? Não, nada como as delicias da Dona Mercês, mas bem aceitável. Só não é melhor porque, depois, vou ter que lavar a louça. (Se bem que, em dois dias, a Lu aparece para dar um trato na bagunça...)

PS: A foto é meramente ilustrativa. A ervilha e o milho que comprei vieram em embalagens separadas. Acredite ou não, eu consegui misturar.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

LP


Um emblemático álbum da banda de sucesso dos anos 80 estampava minha camisa. O moleque percebeu.

- Pô, curto esse disco pra caramba. “Boys Don’t Cry” é da pesada.

O disco da minha camisa era “Meat Is Murder”, dos Smiths, não “Standing On A Beach”, do Cure.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Três letras

No trânsito, seguia a orientação das placas. Mas, para ele, as que indicavam o caminho eram as dos carros. Nas três letras que, ao lado dos números, identificavam os veículos, identificava os desígnios divinos.

Ouviu da chapa CAS: devia comprar uma casa. Depois, as mesmas letras lhe disseram: case. Pensou no ditado e percebeu a relação entre as ordens. Logo em seguida, a chapa o aconselhou a ter um caso. Continuou a achar lógico – para se ter um caso, é preciso estar casado, do contrário, é relação lícita, indigna do rótulo. Orientado por DIE, ia se matar, mas, em seguida, aconselhado por CVV, desistiu. COR lhe disse para pegar uma na praia. Ou será que era para pintar a casa? Na dúvida, fez os dois.

Não contestava a sabedoria das placas, muito mais personalizadas e assertivas que qualquer horóscopo. Nada fazia sem consultá-las. Só foi procurar ajuda médica quando ouviu delas o diagnóstico: TOC.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Em claro

Quando se preparava para dormir o sono dos justos, lembrou-se de ter colocado no subalterno a culpa por um erro que cometera.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Resolução

Decidiu: viveria cada dia como se fosse o último. No primeiro, pediu demissão, saiu de casa, sacou todas as economias e gastou com prostitutas, bebidas e festas. No segundo, sem emprego, sem mulher e sem dinheiro, torceu por um ataque cardíaco fulminante.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

No banco, eu

Como todo brasileiro, penso que sou técnico de futebol. Mas nunca me senti tão capaz de exercer o oficio como esta semana.

Deitado à beira da piscina de uma pousada litorânea, olho para o lado e identifico uma figura familiar. Um sujeito de feições ordinárias, que devem ter passado despercebidas pela maioria dos outros hóspedes. Tratava-se de Mano Menezes, “professor” do Corinthians. Foi quando percebi nosso talento comum: tomo sol tão bem quanto ele. Quer dizer, acho que até melhor. Sim, definitivamente tomo sol melhor que o Mano Menezes.

Agora, só falta algum clube apostar em mim. O time pode até ser rebaixado, mas eu garanto: sempre estarei bronzeado

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Não olhe agora

Todos correram para a janela do escritório, atraídos pelo fenômeno pouco comum: um halo circular com as cores do arco-íris em torno do sol.

A última vez que um desses foi visto foi em outro mundo, pouco antes da chegada de quatro cavaleiros auto-denominados Do Apocalipse.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Mel Gibson, um diretor visceral


Mel Gibson tem milhões de dólares. Mel Gibson tem dois Oscar. E, a julgar pelos filmes que dirigiu, Mel Gibson tem sérios problemas mentais.

Desde que passou para o outro lado das câmeras, o astro de Mad Max – até hoje, sua maior contribuição para o cinema, na minha humilde – revelou gosto pelo sangue de fazer inveja a George Romero e Dario Argento. Transbordando repulsa, suas películas, que só não são catalogadas como de terror por um mero detalhe, superam as fitas do gênero em escatologia. E, para mim, também dão muito mais medo. (Os detratores diriam que isso se deve à sua qualidade, mas meu ponto não é esse.)

Sua primeira aventura na direção, “O Homem Sem Face” não é exatamente uma aventura. Tirando a desfiguração do papel-título, que nem é tão trash assim, não tem nada de grotesco. Enfim, nem sei porque falei dessa bomba. Já na sua segunda incursão como diretor, essa sim uma aventura, o velho Gibson começa a mostrar a que veio. Apesar de um pouco longo demais e mesmo sem ser tão sanguinolento, “Coração Valente” tem boas cenas de porrada e abre o apetite para a hemoglobina que vem a seguir.

No próximo filme, aparece a faceta católica ultra-conservadora de Mel. Fiel seguidor da Bíblia, ele mostra certa obsessão pela parte “o corpo e o sangue de Cristo”. “A Paixão de Cristo” foi boicotado por judeus, evangélicos e críticos, mas só porque o foco deles estava errado. Aqui, o que interessa não são fatos históricos, religiosos ou mesmo a sétima arte. Mesmo sendo tão católico, Mel Gibson não dá pinta de gostar muito de Jesus. Parece extrair prazer do martírio do Messias, da coroação com espinhos ao açoitamento, detalhados com requintes e, claro, muito sangue. Ao fim, temos a impressão de podermos fazer o que quiser sem o risco de ir para o inferno. Sim, porque Cristo sofreu por nossos pecados, e, se sofreu daquele jeito, qualquer pecado já está mais do que previamente perdoado.

Confesso, ainda dou certa importância para as bobagens que os críticos escrevem. Avaliações negativas me fizeram esperar quase dois anos para ver “Apocalypto”, último longa de Gibson. E, mais uma vez confesso, se não estivesse passando ontem na televisão, esperaria mais. Já que estava passando, resolvi saciar a curiosidade despertada por frases como “o pior filme que já vi”, ditas por amigos. Sem pagar nada, me propus a ver se o trono de “Inesquecível” (com Murilo Benício e grande e mal dirigido elenco) estava ameaçado. Não estava, nem de longe. A história do índio que escapa do massacre da sua tribo e do sacrifício num ritual maia é legal, embora não chegue a ser uma obra de arte. Se fosse, com certeza seria uma de Goya. A seqüência do ritual de sacrifício dos amigos do protagonista é emblemática: vemos três corações pulsantes sendo arrancados e o mesmo número de cabeças decepadas, como se já não tivéssemos entendido na primeira. Didática pouca é bobagem.

No fim das contas, “Apocalypto”, o ápice da cinematografia coagulada de Gibson, é um filme bem divertido. E foi essa conclusão que me levou a reavaliá-la. Pode-se dizer que Mel Gibson faz um cinema visceral.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

2/1

Saiu de uma cabine telefônica como entrou. Foi quando descobriu que não era a identidade secreta de nenhum super-herói.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Carpe o quê?

Ao passar pela fresta, o primeiro raio de sol atingiu seu rosto e o fez acordar. O indício de um dia radiante, a ser aproveitado ao máximo. Ou sinal de que a cortina que tinha comprado era menor que a janela?

quinta-feira, 31 de julho de 2008

Tente outra vez


Medida controversa a do governo. Desafiando os crentes e os crédulos, postulou oficialmente a não-existência da vida pós-morte. A conseqüência prática disso foi a criação do programa “Bola Extra”.

O programa funcionava como as máquinas de pinball a cujo o nome fazia referência: se você fosse merecedor, podia tentar de novo. Se você fosse um cara legal, mas, por alguma razão, sua vida tivesse dado errado, teria a oportunidade de recomeçar do zero. Você ganhava novo nome, nova cara, novo endereço e um novo passado, além de uma quantia razoável para dar início à nova existência. Não é preciso dizer que todo mundo quis usufruir do programa. Quando do lançamento, os primeiros inscritos eram aqueles que levaram um pé na bunda e aqueles cujo time tinha caído para a segunda divisão – não à toa, as linhas do serviço de atendimento ficaram congestionadas logo de cara. Mas não era para quem quisesse e quando quisesse. Você precisava se inscrever, pegar uma senha e aguardar a sua vez, o que geralmente levava um tempo. Passada a espera, uma junta analisaria seu caso e determinaria se sua vida realmente tinha dado errado, se não valia a pena tentar mais um pouco, se esse era o momento certo para abortá-la e, principalmente, se você era gente boa o bastante para merecer
mais uma tentativa.

No princípio, houve um certo favorecimento de familiares, amigos e de quem molhasse a mão dos membros da junta, mas não por muito tempo. O esquema foi descoberto e uma nova junta foi formada. Os membros da antiga foram destituídos e não tiveram direito à bola extra. Quando as coisas começaram funcionar como deveriam, chegou-se à conclusão de que poucas vidas realmente deveriam ser interrompidas antes do tempo e, daquelas que deveriam, o percentual de merecedores de uma nova tentativa era ínfimo. Ninguém conhecia alguém que tivesse desfrutado do benefício – o que podia se dever ao fato do programa ser de fato eficiente.

Depois de um tempo, diante das dificuldades de se obter a chance a mais, as pessoas começaram a tentar ser melhores para, assim, ser merecedoras. Como resultado, suas vidas também melhoravam e elas desistiam de candidatar-se ao programa, que, em algum tempo, foi cancelado.

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Deus está nas orelhas de Tatiana

Tatiana tinha 27 anos e nenhum furo além daqueles com que havia nascido. Era a única de sua turma sem orelha furada. Talvez a única de sua geração, marcada pelo sem-número de piercings e brincos nas mais diversas partes do corpo.

Convicta, dizia que, se Deus quisesse que tivéssemos buracos nas orelhas, teria nos dados uns. “Além daqueles pelos quais escutamos, claro”, acrescentava, com o sorriso tímido.

Toda vez que ela entrava na farmácia, o farmacêutico Agenor, reparando nas pequenas orelhas imaculadas, sonhava com o dia em que Tatiana as ofereceria para a sua agulha.

Mas o dia nunca chegou. Tatiana era de fato convicta. Sem saber de sua convicção, no íntimo, Agenor concordou com ela. Deus não ia querer aquelas orelhas com mais buracos do que já tinham.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

A vida em branco

- Oi...
- O-oi...
- Põe a mão aqui. Olha como meu coração tá acelerado... O que o senhor acha que é, doutor?
- Er... e-eu não sou médico...
- Então você é o quê, pai de santo?
- Não, farmacêu...

Antes chegasse às duas últimas sílabas, a bela morena já tinha ido embora. Não deixou rastro, só uma certeza: deveria ter tentado o vestibular para medicina mais uma vez. Mas é que a segunda opção parecia tão boa...

terça-feira, 22 de julho de 2008

Dragão ou injeção?

- No braço?
- Não, na bunda.

- Na bunda?
- Não, no braço.

Cifras

Janes Joplin morreu aos 27. Jimmy Hendrix morreu aos 27. Jim Morrisson morreu aos 27. Kurt Cobain morreu aos 27.

Quatro anos de sobrevida indicam: não nasci para ser roqueiro.

domingo, 20 de julho de 2008

Silent and gray

O domingo chega, preguiçoso.
O domingo passa, preguiçoso.
O domingo vai embora.
Só para isso o filho da puta não tem preguiça.

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Dom

Falava ao telefone com uma amiga, enquanto fazia as unhas.

- Quero uma carreira onde eu possa reunir minhas paixões, sabe?

Quando encontrou a tal carreira, não a largou mais. Faz quinze anos que trabalha no telemarketing de uma fábrica de esmaltes, feliz da vida.

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Suíços não fabricam relógios biológicos

Cismou que tinha que casar. “É o relógio biológico, sabe como é”, limitava-se a responder aos que perguntavam a razão da pressa. Como com o relógio biológico não se discute, ninguém retrucava. Só achavam um pouco estranho aquilo vindo de uma menina de oito anos.

sexta-feira, 4 de julho de 2008

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Cremes faciais resistiriam a um ataque nuclear?


O que pode ser mais abjeto, mais infecto, mais sujo que uma barata? Talvez meu vizinho, que tocava o tema de "Tubarão" peidando, mas, como Alice não o conhecia, chegou à conclusão de que nada era mais repugnante que as cucarachas. Por isso, ao ver uma a balançar placidamente as antenas no seu banheiro, pensou, de modo um tanto elementar, que a forma mais eficiente de liquidá-la seria uma overdose de cuidados estéticos.

Um ser escroto daqueles não resistiria ao condicionador Lancôme e ao shampoo L’Oreal. O quê? Alice espantou-se ao notar que, após o primeiro ataque, o inseto continuou todo serelepe, mexendo as anteninhas em meio às borbulhas. Persistente na teoria, virou todo o creme facial Anna Pegova sobre o bicho: manteve-se lépido e fagueiro, ainda sacudindo alegremente as antenas. Sem se dar por vencida, alcançou o hidratante Clinique e esvaziou-o em cima da barata. Agora, sim, era o fim do inseto, indicavam suas antenas, finalmente imóveis.

Tão feliz por atestar a eficácia de seu método de extermínio de pragas, Alice nem notou que, dali por diante, pequenas quantidades de seus produtos de beleza desapareceriam sempre que deixados abertos.

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Parklife

Procurava vaga no estacionamento já havia muito tempo. Como qualquer estacionamento onde se procura vaga, aquele parecia não ter nenhuma. Não agüentava mais procurar, quando o rádio começou a tocar “Transmission”, do Joy Division. Música boa da porra. Comecei a cantar junto. “Dance, dance, dance to the radio...Dance, dance, dance to the radio...” Foi aí que apareceu aquela vaga e cortou o meu barato.

terça-feira, 24 de junho de 2008

Minutos de sabedoria

Sentado em posição de lótus sob a frondosa árvore, o sábio oriental falou. De sua boca saíram ensinamentos valiosos. Dissertou sobre karma, sobre o caminho, sobre a iluminação. Afortunados os que puderam ouvi-lo.

Pena que, com aquele maldito perdigoto no seu lábio inferior, ninguém conseguiu prestar atenção no que ele disse.

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Parada cardíaca

Situação clássica no trânsito. Ao mudar de faixa, você descobre que a nova está andando menos do que aquela de onde saiu. No íntimo, você sabia que seria assim, e mudou apenas para poder dizer a si mesmo “bom, eu tentei”.

O que você não esperava é que, ao mudar de faixa, fosse parar atrás de um carro com luz de freio em formato de coração. Que, para o seu azar, fica constantemente pressionada.

Então, lhe ocorre: “Não existe situação ruim que não possa ser piorada.”

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Olhe para os dois lados

A setenta por hora, o motorista notou uma pessoa atravessando. O pedestre pisou no asfalto com a maior calma, e, com a maior calma, caminhou em direção ao outro lado, sem se abalar com o carro que vinha ao seu encontro.

O motorista também não desacelerou. Em vez disso, pôs-se a solucionar um daqueles problemas de física.

“O carro vai a setenta quilômetros por hora, o pedestre atravessa a uma velocidade de dois quilômetros. Se a rua tem vinte metros de largura e o pedestre está a cem metros do carro, quanto tempo leva até o carro atingir o pedestre?”

O motorista jamais saberia que o rapaz atropelado era filho da Dona Zureide, sua professora de física do colegial.

quinta-feira, 19 de junho de 2008

O vermelho ou o verde?

- Que tal?
- Se você ficar mais bonita que isso, não deixo você sair de casa.
- Bobo...

Na próxima vez em que se preparavam para sair, ela caprichou ainda mais. E então teve início um caso de cárcere privado, cujo desfecho se daria dezoito anos depois, quando a policia atenderia a uma denúncia anônima.

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Crônico

Os arranhões nos óculos escuros o impediam de ver as coisas com perfeição. Como filtros ao contrário, as lentes danificadas traziam à tona, junto com as suas, as rachaduras do ser humano, que antes lhe passavam despercebidas.

A consciência do imperfeito veio quando os seus óculos caíram e se lascaram. Aí, passou a ver o mundo feio como ele é. Aí, perdeu a fé na sociedade.

Um dia, num assalto, os óculos foram levados.

“Crack nada. Deve ter roubado pra comer, coitado.”

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Hold on

Tentou falar com Deus, pedir para que Ele a fizesse amá-lo.

Ocupado, Deus o deixou na espera. Deus é realmente muito ocupado, e ele passou anos ouvindo “Pour Elise”.

Quando Deus finalmente o atendeu, ele já não conseguia se lembrar o que ia pedir. Disse que tinha discado o número errado e desligou.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Cai, cai

Ao passar em frente ao motel decorado com motivos juninos, teve o estalo: ali renasceria o amor deles.

Os balões na fachada eram um sinal. Se iniciavam tantos incêndios, não teriam dificuldade em reacender o fogo da paixão entre eles. Bastava uma mísera fagulha.

Chamou a esposa e foram ao motel. Antes de entrarem, ao ver os balões, ela não conseguiu conter as gargalhadas.

- Como é que alguém decora um motel com balões, uma coisa que passa pouco tempo no céu e logo cai? Não é brochante?
- E o mais absurdo é que tem gente que não acha isso...

Os balões eram mesmo um sinal, mas ele não soube interpretar. Significavam que, como eles, o seu amor estava fadado às cinzas.

terça-feira, 10 de junho de 2008

Greetings to the new brunette

Abriu os olhos, mas só o quanto a dor de cabeça permitiu. Recobrando os sentidos, além da cabeça, sentiu outra parte do corpo doer. Deu graças a Deus por ser o braço.

Sem entender o bíceps dolorido, abriu os olhos mais um pouco e se deparou com uma tatuagem: o nome da amada dentro de um coração toscamente desenhado.

Lembrou-se, então. Na noite anterior, entre pints, decidiu celebrar seu amor por ela com uma nova tatuagem.

A idéia não seria tão ruim se ele não estivesse apaixonado por uma Gumercinda.

segunda-feira, 9 de junho de 2008

Paixão pra mais de métrica

Apaixonada pelos olhos verdes de Wellington, Joselma escreveu-lhe um poema.

“Galego dos olhos verdes,
Verdinhos da cor de cana,
Um beijo na sua boca
Me sustenta uma semana”

Tocado pelos versos de Joselma, Wellington pediu-lhe em casamento.

Depois, Wellington descobriria: Joselma emprestou seu lirismo de um pára-choque de caminhão. Mas, como o verde de seus olhos também era cortesia da Bausch & Lomb, resolveu manter a data do casório.

Até o amor verdadeiro mente de vez em quando.

sexta-feira, 6 de junho de 2008

Nem de espírito


- O hotel é ótimo, mas tenho uma crítica. Vocês deviam colocar sensores de presença nos corredores. Uma escuridão danada, e não conseguia achar o interruptor...
- Senhor, todos os nossos corredores têm sensores de presença.

O que dizer quando sua insignificância acaba de ser comprovada cientificamente?

terça-feira, 3 de junho de 2008

Sinapses

Tinha lido em algum lugar que um copo de água pela manhã fazia bem ao cérebro. Por isso, não entendia a dificuldade que tinha para raciocinar, mesmo as coisas mais elementares. Todo dia, tomava um copo de água ao acordar. Água-ardente, mas água.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Exupéry

“Palavras são a fonte do desentendimento.”
Ponto para a equipe do maldito Pequeno Príncipe.

sexta-feira, 30 de maio de 2008

Tecnologia a serviço do homem?


Se tem uma coisa que me dá nos nervos, além da expressão “dá nos nervos”, é o uso desnecessário de tecnologia. Essa mania de querer futorizar (no sentido de transformar tal coisa em “tal coisa do futuro”) tudo, invariavelmente coisas que poderiam muito bem continuar da forma como foram criadas, que já era boa o suficiente.

Quando resolveram fazer isso com os patinetes, surgiram as “walking machines”, uma febre na década passada, que, não posso negar, já fez parte da minha lista de desejos. Mas, como lembra o slogan de uma clássica campanha publicitária americana, a tendência do ser humano é sempre voltar ao básico e, após alguns anos, o que passou a estar na crista da onda foi a tradicional versão sem motor, muito mais bacana.

Recentemente, outra dessas modernices idiotas ganhou destaque nos noticiários. O reitor da Universidade de Brasília, sujeito com nome de rua de Los Angeles e filme do David Lych, foi deposto por, entre outras disparates, ter utilizado dinheiro público para comprar quatro lixeiras que se abrem automaticamente, cada uma ao custo de mais de mil pratas. Mil pratas numa maldita lixeira automática! Mais absurdo do que ele ter usado verba do governo para isso, é alguém pagar essa fábula por um negócio tão inútil. Só por isso, o cara merecia mais do que ser exonerado. Tinha que pegar uma prisão perpétua, nem que para isso o código penal precisasse ser alterado – aliás, aí sim uma modernização faria bem.

E o cachorro-robô? Tudo bem, não solta pêlo, não baba, não faz cocô onde não deve (nem em nenhum lugar), mas também não vai buscar bolas e gravetos jogados nem, muito menos, vai lamber sua cara após um dia de merda no trabalho. Alguma duvida que um cão vira-lata é bem melhor que um de lata?

Mas, no topo da lista do uso abusivo da tecnologia, está uma novidade que nem é tão nova assim. Já me fez passar raiva por inúmeras vezes e, sem dúvida, já ter feito o mesmo com você. O secador de mãos é das maiores infâmias produzidas pela civilização ocidental, motivo suficiente para os talibãs da vida atentarem contra as capitais dessa parte do globo. Você coloca suas mãos sob aquele ar quente e sai com elas tão molhadas como quando as tirou debaixo da torneira. Via de regra, se quiser as mãos secas, tenho que passá-las na calça. Nem sei por que o troço leva o nome de secador. Sarcasmo dos fabricantes, na certa. De tanto odiar o pseudo-secador, não imaginava que pudesse haver algo pior que ele. Mas com os fabricantes de engenhocas desnecessárias é assim: quando você pensa que eles não podem criar nada pior, sempre conseguem surpreender. Numa provável joint venture dos criadores do lixo (sim, tá mais pra lixo do que para lixeira) automático e do “secador” de mãos, veio a incrível máquina de papel-toalha com sensor de presença. Em tese, bastaria você posicionar sua mão sob o aparelho para, num passe de mágica, receber o pedaço de papel necessário para enxugar suas patas. Seria o adeus ao esforço sobre-humano empregado para puxar um pedaço de papel-toalha. Mudaria a sua vida, não mudaria? Isso, se funcionasse. Sempre, sempre, sempre que recorro à maquininha, tenho que puxar o papel eu mesmo, porque ela, talvez preocupada com a preservação das florestas, se recusa a me ceder uma folha inteira. E lá vou eu, novamente, secar as mãos na calça.

Se quisessem mesmo ajudar a humanidade, os cientistas poderiam concentrar seus esforços na criação de coisas realmente úteis, como o teletransporte, há décadas prometido pela ficção. Eu e todos que têm de dirigir bêbados ao sair do bar agradeceríamos.

terça-feira, 20 de maio de 2008

Coletivo

Pessoas não são como ônibus: elas não têm o destino escrito na testa.
Pessoas são como ônibus: você pode pegar a errada por engano.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Cut your hair


- É isso. Vou cortar o cabelo. Também vou parar de usar esses brincos. E essas camisetas de banda. E essa camisa de flanela. Quem é que usa camisa de flanela amarrada na cintura hoje em dia? Fala sério. Tem uma hora que a gente precisa amadurecer...
- Tá aqui sua Serra Malte, Kurt Cobain...
- Peraí: do que você me chamou?

E, graças ao garçom, a maturidade de Rogério foi novamente adiada.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Pária

Bêbado e cansado, a testa encostada no frio azulejo do banheiro do boteco, à procura de um ponto de apoio num mundo que insistia em rodar. Os pontos entregues, tudo o que desejava era o calor da cama. A sua, não aquela para onde voltaria. A que passara a ser dele, não a aceitava como tal. O novo leito não era seu, nem de ninguém. Era mais frio que o azulejo onde encostava a testa. Não tinha para onde voltar. Sentindo o mundo girar com ainda mais intensidade, desistiu de procurar por pontos de apoio. Sabia que não encontraria nenhum.

Apenas diga não



Lanchonete Bob’s da Paulista, anos atrás:

- Por apenas mais 2,50, o senhor pode ter a porção extra de presunto, queijo e ovo. Aceita, senhor? – perguntou-me o atendente, sorridente mas sem muita esperança, seguindo o roteiro do seu treinamento.
- Obrigado... – respondi, imaginando o colesterol e a caloria adicionais, plenamente dispensáveis num sanduíche já repleto delas.
- Mas fica uma delícia, senhor... – insistiu, ainda sem botar fé.
- Ah, nesse caso, pode colocar – aceitei, possivelmente fazendo a foto do persuasivo rapaz estampar o quadrinho de “funcionário do mês”. Devo ter sido o primeiro, e talvez único, cliente a aceitar aquela promoção, um verdadeiro atentado contra a saúde pública.

Na hora não percebi, mas um discreto “yes” deve ter saído do lábios do rapaz, ao mesmo tempo em que desferiu o clássico soquinho no ar. Deve ter se sentido o máximo. Coitado. Não sabia que, para me convencer, não é preciso muito. Muitas vezes, aliás, não é preciso nada. Eu, meus amigos, nasci sem o chip do “não”. Uma deficiência séria, gravíssima, mas que, invisível ao olho nu, infelizmente não me habilita a estacionar nas vagas reservadas.

O governo americano, anos atrás, lançou uma campanha de conscientização quanto às drogas cujo slogan era “just say no”. Esperavam que, com uma instrução tão elementar, qualquer imbecil pudesse se livrar dos narcóticos. Raciocínio coerente: “não” é uma palavra simples mesmo para o vocabulário e a dicção não muito favorecidos dos adolescentes. Qualquer um conseguia dizer. Qualquer um que não eu, claro. Se não tenho um triste (e, às vezes, bem alegre) histórico de vício é porque as ofertas foram poucas. Desavisados, os traficantes deixaram de fazer dinheiro fácil com o mané aqui.

A impossibilidade de dizer o pequeno monossílabo já me prejudicou muito. Quantas manhãs de ressaca e cara amassada no trabalho causadas pela incapacidade de refugar baladas-roubadas sugeridas por amigos mais empolgados. Quantas balas sabor abacaxi ou aniz (éca) compradas no farol. Quantos filmes alugados e devolvidos sem ser vistos por não conseguir recusar a proposta do balconista de levar três pagando apenas dois, mesmo que eu só quisesse ver um. Quanto dinheiro emprestado que nunca mais verei – só não é mais porque, para o azar de quem pediu e, principalmente, para o meu, não passo nem perto de ser rico.

Isso sem contar a azia que aquela porção extra de queijo, presunto e ovo do Bob’s me causou. A queimação, que até hoje sinto, ainda deve ser a mesma.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Fragmentos



- Você me faz perder o sono.
- Você também.
- Puxa, eu não sabia que...
- Você se mexia tanto na cama?

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Uma embalagem de camisinhas, outra de chicletes pela metade, um coração. Nada que deixou na casa dela faria muita falta.

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- Você é tão linda e talentosa...
- Suas falas já foram melhores.
- É, as minhas e as do Woody Allen.

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Apaixonou-se perdidamente por uma massagista. Uma paixão arrebatadora. Um amor sem fim. Que terminou com a massagem.

sexta-feira, 2 de maio de 2008

O Fenômeno Falou



Se você é mais ou menos da minha idade, região e nível sócio-econômico, certamente usa a expressão “falou”. Na verdade, você usa a expressão, independente de qual seja sua idade, região ou nível sócio-econômico. Perfeita para encerrar conversas casuais, a gíria é realmente abrangente. Tanto que as pessoas passaram a utilizá-la não apenas para encerrar conversas casuais. O que faz, cada vez mais, reuniões de negócios e primeiros encontros terminarem como uma conversa pós-futebol.

Mais que uma expressão, o “falou” é um fenômeno. Simboliza que a informalidade característica de nosso país chegou a níveis inimagináveis mesmo pelo primeiro português a trocar as vestes pré-coloniais por uma singela sunga. Chegou à Blockbuster.

Talvez você não se lembre, mas a rede de locadoras de vídeo – talvez você também não se lembre que as pessoas alugavam “vídeos” – especializada em sucessos de bilheteria nem sempre existiu em nossas plagas. Quando chegou, seus principais diferenciais eram a grande quantidade de cópias do mesmo titulo e, principalmente, a excessiva educação de seus funcionários. Uma cordialidade exagerada, de sorrisos forçados e simpatia impossível, recheada de “obrigado”, “volte sempre” e “posso ajudá-lo?”. Enchia o saco, incomodava, mas, com o tempo, nos acostumamos. Tornou-se um esteio. Sabíamos que, nesse mundo cão, quando sentíssemos falta de um pouco de polidez, poderíamos sempre recorrer aos balconistas da Blockbuster e ao seu impecável treinamento. Bons garotos.

Outro dia, no entanto, ao sair de uma das lojas da rede americana (que, comprada pelas Americanas, já não é tão americana assim), recebi do atendente a sacola com os DVDs – como os vídeos são chamados atualmente – e agradeci a ele. O sujeito, em contrapartida e para o meu espanto, respondeu: “Falou.” Muito mais do que os aviões que colidiram no World Trade Center, aquilo simbolizou, para mim, a derrocada da civilização ocidental. Se nem o pessoal da Blockbuster é educado, quem será?

Vindo de alguém que trabalha na Blockbuster, é mais chocante, porém o “fenômeno falou” não se restringe às lojas da cadeia e nem à expressão em si. Representa uma nova (falta de) orientação no tratamento entre prestadores de serviço e clientes, entre pessoas em geral. Hoje, é cada vez mais raro receber um “muito obrigado”, um “volte sempre” ou um “posso ajudá-lo?” – se bem que esse último eu até dispenso, já que, quando me perguntam isso, quase sempre tenho que me sair com o clássico “só estou olhando”. Recepcionistas de cara-amarrada raramente me dirigem um “bom dia”, parecendo que dormiram comigo – e, como a beleza também não é mais um requisito para o cargo, raramente desejo que isso tenho de fato acontecido. Manobristas de estacionamento rosnam quando ergo o polegar em direção a eles e, por pouco, não o arrancam fora à mordida.

Não pense que esse modus operandi se restringe a subalternos mal-educados. Faça uma retrospectiva mental e, provavelmente, constatará que, menos e menos, tem usado “bom dia” ou “obrigado”, por exemplo. Ponha a culpa disso na correria do dia-a-dia se preferir. Eu atribuo ao “fenômeno falou”. A famosa informalidade brasileira é a brecha que muitos procuram para dispensar os modos. Sim, porque, atualmente, a boa educação se confunde com a formalidade. Em certo tempo, de tão incomuns, expressões como “por favor” e “obrigado” farão companhia a outras como “vossa excelência” na norma culta das relações. Será tudo “falou”.

E, em mais um pouco, até o “falou” terá desaparecido. Aí, rosnaremos como os manobristas ignorantes, então lembrados como uma espécie de elo perdido.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Get in the ring


Sabe aquela cena do cara colocando a mão dentro de um balde de gelo depois de socar alguém? Sem nunca ter entrado numa briga (as que tinha com o irmão não contavam), nunca tinha entendido aquilo direito. Até outro dia.

Puto da vida com o trabalho e sua inércia (devia estar procurando outro), foi à academia na hora do almoço. Correr e puxar ferro foi bom para descarregar a raiva, mas boa mesmo foi a dica do instrutor quando lhe disse que estava cheio de ódio (meio pesado, mas adequado ao seu estado). O professor mostrou-lhe umas luvas de boxe e o saco de areia, e aí foi fácil fazer a matemática, até para alguém tão tosco na matéria quanto ele. Meteu porrada no troço, cuja forma ajudava a visualizar os culpados pelo meu estado de espírito. Nem precisou de muita imaginação para enxergar no enorme saco as cabeçorras do chefe e a própria. O professor lhe dizia para alternar jabs (socos mais leves) e diretos (que você sabe o que é), mas ele queria ser o Tyson, resolver a luta logo no primeiro round. E tome diretos, com toda a sua força, que, se não era suficiente para derrubar um peso pesado, daria conta tranqûilamente do sobre-peso do seu chefe. "Catártico", como diria o professor (o de ética e cidadania da faculdade, não o da academia - esse, provavelmente, nem sabe o que é isso.)

Ao chegar no vestiário, a adrenalina já baixa, pôde sentir um incômodo nas mãos. Olhou-as e notou hematomas no meio dos dedos, entre o roxo e o vermelho sangue-pisado. Apesar de impressionado, não estava necessariamente dolorido. Sentiu-se, então, imbatível. Mas foi só até a adrenalina já se ir por completo. Então, sentindo os punhos latejar, compreendeu a necessidade daquelas gazes que os treinadores aplicam nos dos lutadores antes das pelejas.

Mesmo assim, estaria disposto a abrir as feridas na cara do chefe se isso, além do emprego, não lhe custasse um tempo no xilindró.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

O mundo é uma grande firma

Os físicos atestam: o tempo não passa de ilusão. Devem dizer isso por não ter espelho em casa. Se têm, passam por ele sem refletir, igual aos vampiros. Caso topassem com seus reflexos, os estudiosos ouviriam deles e de suas rugas e cabelos brancos que, além de existir, o tempo tem judiado deles. A julgar pelas fotos de Stephen Hawking, de Einstein e dos poucos físicos conhecidos do grande público (tem mais algum?), a classe tem mesmo bons motivos para manter distância de qualquer superfície reflexiva. Eu, mesmo não sendo muito mais bonito que o simpático e quase imóvel Hawking, ainda visito meu outro eu que mora sobre a pia do banheiro e nas vitrines da vida. E posso afirmar: o tempo, camaradas, não é uma lorota. A não ser por uma de suas subdivisões, o tempo que se passa fora do trabalho. Isso, sim, é conversa. Você sempre está no ambiente coorporativo.

A cada dia, passa-se mais das vinte e quatro horas num cubículo ou equivalente. O seu emprego, esse que, “se você não quiser, tem um monte de gente querendo”, exige que você se dedique ao máximo, que dê tudo de si – mesmo que seu ofício se restrinja a carimbar documentos. Em “tudo de si”, obviamente, está incluído o tempo, e esse não se restringe às oito horas previstas na CLT, obra de ficção para a maioria dos empregados. Cientes disso, muitas empresas, boazinhas que só, procuram tornar as horas dentro delas as mais agradáveis possíveis. Instalam máquinas de café incrementadas e salas de musculação, fazem vistas grossas ao acesso de sites impróprios (qualquer um que seja pessoal), aos joguinhos de computador e, as mais liberais, até aos affairs nas escadas de incêndio. Tudo para o funcionário saber que, para elas, ele não é só um número – o que, vindo de quem já afirmou que ninguém é insubstituível, é no mínimo contraditório. Vou te contar a verdade por trás dessa benevolência toda, mas não espalha: na real, as corporações querem que você, amiguinho, passe cada vez mais tempo trabalhando sem se dar conta. Funciona tão bem que muitos continuam no trabalho mesmo quando o trabalho propriamente dito já acabou. Nessa hora, acessam sites impróprios, divertem-se com joguinhos de computador e, em alguns casos, comparecem a encontros marcados na escada de incêndio.

Às vezes, mui raramente, você consegue dar conta dos seus afazeres e se desvencilhar do aperto dos braços da sua cadeira – afinal, você precisa tomar banho e trocar de roupa, e nem toda empresa dispõe de chuveiros (ainda). Nessas horas, você aproveita para fingir que tem uma vida e fazer algo que você imagina ser divertido. Sim, porque, depois de tanto tempo confinado, você já não tem certeza do que de fato é divertido. É uma encenação patética. Não saindo da empresa, fica difícil fazer amizades, então, quem você chama para beber? Seus colegas de trabalho, que, como o próprio rótulo indica, não são seus íntimos – embora passem o dia inteiro com você e saibam mais da sua vida do que pessoas que pretensamente o são. Como nem você nem eles saem do escritório, todas as suas experiências se restringem à rotina profissional e às fofocas da rádio-peão. Tudo o que eles sabem você também sabe, e a conversa não passa de uma troca de informações que de troca não tem nada. O humor é sempre proveniente de algum e-mail nomeado como “MUITO BOM!!!!”, que todo mundo já leu, mas não se cansa de comentar a respeito e rir. Isso também vale para os raros encontros com as igualmente raras relações fora da empresa, que, como você, não têm vida além das baias.

A estratégia de que falei lá em cima – a empresas tentando imitar o ambiente da vida real para fazer os peões se sentirem à vontade – tem uma falha. Não que os funcionários não relaxem, não que eles desaprovem. O tanto que eles se excedem além do expediente não deixa dúvidas. O ponto é que a tal vida real está cada vez mais distante do que as corporações buscam simular e muito mais de acordo com o que elas tentam maquiar. Como os chefes, esposas dão bronca nos maridos quando chegam atrasados, quando o desempenho (você entendeu) não está satisfatório. Se no escritório o cara pode entrar no site que quiser, em casa ele está em sérios apuros se a patroa (cada vez mais digna do apelido) descobrir putaria nos últimos acessos. Por isso mesmo, o sujeito ri sem-graça quando um colega, ao vê-lo ficar até mais tarde, pergunta se ele “não tem ambiente em casa” ou se “brigou com a patroa”. Provavelmente, as duas estão corretas.

Agora, que provei por A + B (odeio essa expressão, mas, gozado, gosto de usar algumas expressões que odeio) que o tempo fora do trabalho não existe, fico aqui à espera da indicação ao Nobel. Que, obviamente, deve ser entregue no endereço comercial.

quinta-feira, 20 de março de 2008

Sem remetente


Invariavelmente cansado e faminto, ao chegar do trabalho, mal dava atenção à correspondência. A fatia de pizza de sábado e o sofá afundado, por pouco sedutores, ainda eram mais atraentes que as contas, imensa maioria dos envelopes na sua caixa de correio. Pelo menos, o móvel destruído e a portuguesa congelada não lhe cobravam nada. Quer dizer, as sobras da redonda pediam alguns minutos no microondas e o Marabraz de três lugares exigia um substituto. Mas essas cobranças, ao contrário das que lhe chegavam via carteiro, ele podia ignorar tranquilamente.

Àquele dia, entretanto, sentiu-se estranhamente atraído pela caixa de correio. Estranhamente, porque a causa do interesse era estranha, não que fosse estranho interessar-se por uma caixa de correio naquelas circunstâncias. Afinal, que atenção não se voltaria a um depósito de cartas irradiando brilho dourado pelas frestas? Um brilho intenso, ofuscante. Poderia, quem sabe, cegar quem travasse contato sem a proteção adequada. Foi esse pensamento que o levou a refrear seus impulsos gananciosos (“Será que é ouro? Mas ouro só brilha desse jeito em desenho animado.”) e pôr os óculos escuros antes de abrir a caixa.

Pretensamente protegido pelas lentes vagabundas do Ray-Ban de camelô, rumou à caixa. Os cinco passos na direção do objeto deram-lhe tempo suficiente para analisar o brilho um pouco melhor e perceber nele uma semelhança com outro: não era assim que brilhava a Arca Perdida, aquela do primeiro filme do Indiana Jones? Peraí: seria uma versão reduzida do artefato? Se fosse, poderia estar rico, mesmo que o conteúdo não fosse ouro, como chegou a cogitar antes de se dar conta de que, na vida real, o precioso mineral não brilha assim. Pelo que se lembrava do longa-metragem, a urna continha algo muito valioso, que despertara a cobiça de muitos. O problema é que assistira ao filme fazia tempo, e o que se lembrava dele era quase nada. “Foda-se.” Foi lá e abriu.

Entre as muitas malas-diretas e as contas ainda mais numerosas, estava um envelope dourado, o responsável pelo brilho. Tirando isso, não era grande coisa. Para falar a verdade, era até cafona. A aparência pouco impressionante, arrefeceu sua curiosidade, e, por não estar mais tão ansioso por saber o que continha, calmamente virou-o à procura do remetente. A ausência do remetente, porém, fez a curiosidade voltar aos níveis iniciais, e ele se apressou em rasgar o envelope. Dele, tirou um terço, desses comuns, que vivem nas mãos das senhoras de preto que freqüentam igrejas em tardes de terça-feira. Como o próprio envelope, nada digno de nota.

Ele não quis saber do crucifixo. Nunca fora religioso, e não seria um brilhozinho mequetrefe que o converteria. No dia seguinte, encontrou a vizinha, uma dessas velhinhas que vão igrejas às terças, deu-lhe a peça e desejou-lhe melhoras – câncer, em estado avançado. Só não esperava que, em poucos dias, ela realmente se curasse.

quinta-feira, 6 de março de 2008

Isso é um trabalho para o Superego



À distância, vejo o semáforo abrir, mas, quando me aproximo, ele já está vermelho. É a deixa para um “desempregado, pai de família, vendendo estas balas para sustentar meus filhos” jogar seu produto sobre o meu retrovisor, sem aviso além do texto contido no papel que acompanha os confeitos. O discurso é o mesmo de todos os dias e os doces, provavelmente também. Olho para eles com nojo, imaginando quanto tempo ficaram expostos ao sol, que é o mesmo para todos – homens, mulheres, crianças e balas. Minha análise sanitária é interrompida pelo “desempregado, pai…”, que retira o saquinho do meu retrovisor tão bruscamente quanto colocou, e pelo uníssono de buzinas, a me avisar que o farol abriu. Após mais uma ameaça de ataque cardíaco, engato a primeira e arranco.

Das irritações que me são proporcionadas pelo trânsito, sem dúvida, a buzina é a pior. Os quilômetros de congestionamento, os radares de velocidade, os motoristas barbeiros e o pessoal da CET se esforçam, mas as buzinas são imbatíveis. E não só pelo seu barulho estridente. A questão é que, ao contrário de outros fatores que tornam o tráfego urbano o conhecido inferno, as “paquerinhas” e similares estão sob o nosso controle. Você sabe, eu sei, todos sabem: buzinar não vai melhorar em nada a lentidão de nossas ruas. Mas, ainda assim, não hesitamos em meter a mão no meio do volante por qualquer motivo, indo de encontro ao que diz a legislação e o bom senso. O meu, aliás e para ser franco, também tem suas panes, porém, graças ao fato da buzina do meu carro estar quebrada e requerer força extra para ser acionada, consigo conter meus ímpetos perturbadores. Como sei que o meu bom senso continuará avariado, mantenho a buzina do mesmo jeito.

Sempre que ouço um buzinar inútil (como são todos que não tenham o objetivo de avisar algum cachorro desavisado de que você está a caminho) sinto ganas de matar o autor do atentado aos meus tímpanos. Os homicídios que imagino cometer em ocasiões assim nunca se resumem a simples tiros. Envolvem torturas requintadas, como retirar toda a pele do corpo do camarada e, amarrado a um poste, deixá-lo ao sabor do sol e dos pombos. Tais pensamentos nunca passam de pensamentos porque as panes do meu bom senso também não passam de panes, e fazer um troço desses requer total ausência de noção. Além de demandar um tempo que eu, geralmente atrasado para o trabalho, não tenho.

As restrições morais que me impedem de castigar severamente os impacientes buzinadores, no entanto, não são muito relevantes para o protagonista de uma matéria a que assisti no noticiário matutino de ontem. Imagens impróprias para o horário (para qualquer um, na verdade), que, em outros tempos, o apresentador sugeriria que se crianças e cardíacos não presenciassem. Captada pela câmera de segurança de um posto de gasolina, a cena é grotesca. Diante das insistentes buzinadas de um cliente ainda não atendido, outro freguês não teve dúvida: foi em sua direção, despejou sobre ele o conteúdo do galão de gasolina que carregava e ateou fogo. Em chamas e obviamente desesperado, o camarada correu para fora do carro e teve o seu incêndio pessoal apagado pelos funcionários. Até ontem, estava na UTI, com queimaduras de terceiro e segundo grau no rosto e no peito.

Sigmund Freud (que você conheceu no meu último texto) estabeleceu como três as etapas do processo comportamental. No “id”, pensamos toda espécie de absurdo, sem medir muito as conseqüências. Aí vem o “superego”, responsável por estabelecer os limites, a censura. O “ego” é o resultado da ação do “superego” sobre o “id”, quer dizer, o que acabamos por fazer. (Peço desculpas aos possíveis leitores terapeutas, ou que simplesmente entendam mais de psicanálise do que eu, por um eventual erro de enunciação. Não consultei o Google.) Acontece que o superego de muitos não faz jus ao sufixo “super”. São essas pessoas que invadem quadras de tênis peladas e, quando acordam com o pé esquerdo, ateiam fogo em quem buzina além da conta.

Então, aí vai o meu conselho: tire a mão da buzina. Vai que você encontra um maluco desses no caminho. Que posso ser eu mesmo, de mau humor.

sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Acenda o charuto, digo, o farol



A lista das coisas que não consigo entender é extensa. Um sem número de acontecimentos, fenômenos, leis e pessoas passam por mim sem que eu consiga ver neles além da superfície – em se tratando de mulheres voluptuosas, isso me deixa particularmente chateado.

Mas, mesmo com meus parcos recursos, no decorrer dos anos, alguns dos mistérios que me cercam foram desvendados. Sei do que são feitas as nuvens (desisti de me alistar na aeronáutica ao descobrir que não eram de algodão doce), sei quem matou a Odete Roitman (ao contrário das nuvens, essa descoberta não trouxe grandes conseqüências na minha vida), faço idéia de como o rádio funciona (se na época fiquei aliviado por saber que o povo de Liliput não era prisioneiro nos aparelhos, hoje sei que a teoria era furada: afinal, é difícil imaginar alguém confinado num cubículo com disposição para cantar. E mais: como os pequeninos dariam as notícias, se, encarcerados e sem receber visitas, não tinham como saber o que acontece no mundo lá fora?). O fato é que, comparada às coisas que me escapam, a pilha das que domino tem a altura de uma gilete.

Aquela ânsia por respostas, tão comum às crianças, que Sócrates dizia ser essencial ao filósofo, confesso, diminuiu em mim com os anos. Conformado com as coisas sendo do jeito que são por que são, não levo jeito para a filosofia – pelo menos, não até a terceira cerveja. Minha relação com boa parte dos fatos que compõe a existência não vai além dos beijinhos, e não que eu já não tenha tentado colocar a mão por baixo da blusa. Ocorre que, diante das seguidas recusas do universo em se fazer entender, eu simplesmente brochei. Não quero com isso dizer que minha curiosidade deixou de existir. Ainda procuro explicações, mas me resigno quando elas dizem que estão com dor de cabeça.

Houve, no entanto, um camarada que, apesar de velhusco, tinha muito mais tesão que eu. Você talvez já tenha ouvido falar em Sigmund Freud. Sujeitinho buliçoso, não cansava de buscar porquês para tudo, e a maioria dos que encontrava era relacionada ao sexo. Daí dele, cheio de tesão como já disse, não parar de ir atrás deles (porquês). E a libido do velho era tal que ele não perdoava nem a mãe, invariavelmente colocada no meio. Mesmo questionadas até hoje, suas teorias influenciaram não só a psiquiatria, mas todo o pensamento moderno, cristalizando-se num dos maiores clichês de que se tem notícia: o famigerado “Freud explica”.

Já que o careca, mesmo muito depois de morto, continua se oferecendo para explicar o mundo, recorrerei a ele para responder um dos raros dilemas que ainda conseguem me incomodar: por que cacete os motoristas não ligam os faróis quando entram nos túneis durante o dia? E mais: por que diabos muitos não acendem nem mesmo à noite? Para mim, que, ao mínimo sinal de penumbra, já aciono as luzes do possante, é muito difícil de compreender – como, aliás, são todas as coisas que ignoro. Nesse caso, porém, mais do que me intrigar, esse comportamento compromete minha segurança, já que aumentam as chances de acidentes (não que eu precise de ajuda externa para me acidentar no trânsito), e, por isso, recorro ao pai da psicanálise para chegar ao cerne da questão.

Não manjo quase nada (para variar) de psicanálise, mas, lançando mão do conhecimento que qualquer brasileiro médio tem sobre a vertente analítica – ou seja, quase zero -, vou tentar justificar a imbecilidade dos condutores. Como disse anteriormente, a base do pensamento freudiano é a sexualidade. “Farol aceso” é, no Brasil, uma metáfora para a excitação sexual: no populacho, costuma-se dizer de uma mulher com os mamilos enrijecidos que ela está de (faróis acesos). Assim, a relutância do brasileiro em acender os faróis no trânsito remete ao fato de essa praga urbana ser extremamente brochante. No congestionamento das grandes metrópoles, de quilômetros e quilômetros, não há quem consiga ficar “de farol aceso”. Daí, explica-se a recusa em botar as lâmpadas dos veículos para funcionar. Uma explicação bem razoável.

Mas pode ser que não seja. Afinal, o próprio Freud disse que, “às vezes um charuto é apenas um charuto”, negando qualquer relação entre a aparência fálica dos cubanos que sempre fumava e uma suposta homossexualidade. E talvez se desculpando no caso de alguma de suas teses fosse derrubada. Eu, longe da genialidade do austríaco, me antecipo aos críticos: a explicação é furada. Parafraseando o pouca telha, “às vezes um farol apagado é apenas um farol apagado”. E assim, mais um aspecto da nossa mundana existência segue sem a minha compreensão. Tudo bem, já estou acostumado.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Vira-latas jogam vídeo-game durante o carnaval


Quarta-feira de cinzas. O corpo cobrando a fatura dos dias mal dormidos e bem bebidos do carnaval carioca, eu voltava com o Sérgio e o Costela rumo à nossa realidade, nem de longe tão divertida quanto a que abandonávamos. Sentado no banco de trás, folheava o suplemento dum jornal local, quando deparei-me com o clássico “dicas para quem quer ‘pular’ o carnaval” (óbvio, era publicação anterior ao feriado). Depoimentos de gente que tem aversão à folia de momo. Mesmo estando num dos principais focos da festa, essa turma – de pele propositadamente branca, para fugir ao padrão local – adiantava que se refugiaria nos cinemas, nos shows de rock e, meu Deus, até no vídeo-game. Para esse povo, a coisa só começa a ficar boa a partir do fim do desfile das campeãs, quando já não sobrarem nem as cinzas do festerê.

Vendo a expressão de tédio dos entrevistados, aquele olhar ridículo perdido no nada, diversas vezes eu quis soca-los. E diversas eu os soquei – se é que dá para dizer que, socando o jornal, eu os socava. Acabava de passar meu primeiro carnaval no Rio e, mesmo decorrido tão pouco tempo, já o classificava como o melhor de sempre. Assim, como aquele pessoal, de idade e gostos tão próximos aos meus (odeio admitir isso), poderia não curtir aquela bagunça genial? Talvez você também não seja fã de carnaval, eu entendo, mas, antes de resumir o meu ponto de vista à questão de gosto, deixa eu terminar de falar, mal educado.

Se me permite chover no molhado (engraçado: alguém que diz que vai chover no molhado, já o está fazendo antes mesmo de começar), o carnaval é um estado de exceção, é uma licença poética para se fazer o que bem entender. É mais ou menos como uma guerra civil: só que, ao invés de quebrar vitrines e violentar mulheres indefesas, as pessoas só quebram protocolos, e as mulheres, longe de serem indefesas, só se deixam “violentar” por quem quiserem. Homens vestem-se de mulher e, bem, mulheres se vestem de mulher mesmo. É diversão garantida ou seu dinheiro de volta – a menos que você, bêbado, o tenha perdido em meio à balburdia.

Nunca li Darcy Ribeiro ou Sérgio Buarque de Holanda, mas aposto que, em suas obras, fundamentais para o entendimento do “ser brasileiro”, eles referem-se ao carnaval como a expressão máxima da alma nacional. (Se não se referem, poderiam colocar essa minha frase em alguma das revisões dos livros. Juro que não cobraria créditos.) Tanto é assim, que muitos dos lugares-comuns associados ao nosso povo são, de alguma forma, relacionados à essa festa: a mulata, o samba, a alegria, a irreverência, a sensualidade, o requebrado. É verdade também que nem todos os brasileiros correspondem a esse estereótipo – é por isso que tem esse nome, amiguinho. (Eu, por exemplo, manchei a reputação do país toda vez que dancei no exterior.) É uma caricatura da nossa gente, e, como nas ilustrações do tipo, os traços mais marcantes são exagerados – pode não corresponder exatamente à realidade, mas também não se pode ignorar.

Arrisco-me a dizer que a aversão ao carnaval é, de certa forma, aversão ao “ser brasileiro”, e não só ao que isso representa de ruim. Gostar de um país é como gostar de qualquer pessoa: não dá separar só o que interessa. Você convive com os defeitos porque sabe que as virtudes são maiores – ou manda passear porque acha a equação desigual demais. Não gostar do carnaval é assumir o rótulo de “nação de vira-latas” que nos foi conferido há mais de cinqüenta anos por Nelson Rodrigues, outro profundo conhecedor (e crítico) da natureza verde-amarela.

Talvez eu tenha exagerado um pouco nesse meu tratado sociológico. Lendo o que acabei de escrever, achei meio pueril. Talvez você, que não gosta de carnaval, tenha razão. Deve ser questão de gosto. Mas, se é questão de gosto mesmo, você deve ser um chato.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Paulista, Bizarra Paulista


Dia desses, andava pela Paulista na companhia de duas amigas, quando começou a chover. Corremos até a toldo mais próximo, que não era bem um toldo, mas o vão livre do MASP. Se o cartão postal nos protegeu da chuva (assim que acabei de escrever isso, imaginei alguém correndo debaixo de chuva com um cartão postal de verdade sobre a cabeça; acho que não adiantaria muito), não deu conta do vento (é um vão livre, afinal) e muito menos da bizarrice. Na avenida mais famosa do país, não há abrigo contra isso.

Ali, o volume de bizarrice é incomparavelmente maior que o de carros ou de decibéis, os outros principais concorrentes. É como se o endereço fosse uma zona livre de censuras e restrições e, portanto, toda espécie de absurdo fosse permitida. Mais do que isso: parece que, na Paulista, as pessoas se sentem na obrigação de serem esquisitas. Ao dar de cara com um casal homossexual completamente tatuado, com “body modifications” (tipo aqueles chifres implantados sob a pele) e cabelos verdes, tenho certeza de que, no bairro de onde vêm, eles são completamente diferentes – sem cabelos coloridos, tatuagens ou auto-mutilações e, sim, sem pederastia. E, quando penso nisso, vem a dúvida: o tempo que eles gastam para se arrumar é maior que o tempo que levam criando coragem para se beijar?

Voltando ao vão livre do MASP, estávamos os três tentando escapar das rajadas de chuva que teimavam em ir para baixo da estrutura, quando mais uma vez a Paulista cumpriu sua vocação para circo de horrores. Aproximou-se de nós um rapaz de vestes, trejeitos e fala hippie. Mas não um hippie qualquer: um hippie à moda da Paulista. Ou seja, bizarro (ouvi alguém dizer que todos os hippies são bizarros?). Cabelos bem curtos, óculos arredondados, uma barbicha comprida avermelhada, camisa, bermuda e tênis multicoloridos. Antes que ele abrisse a boca, conclui que nada que pudesse sair dela me interessaria. Vi que carregava uma sacola plástica e conclui que, bem, nada que pudesse sair dela também me interessaria. Nunca na minha vida estive certo duas vezes com tão pouco espaço de tempo entre uma e outra.

Enfiou a mão dentro da sacola e dela tirou “caixinhas feitas com cartões postais publicitários” (desses que imaginei serem inúteis para se proteger da chuva), confeccionadas por ele mesmo, para custear seus estudos. Ele as ofereceu, sugerindo-as como porta-jóias ou mesmo presente para alguém, mas não senti muita firmeza em suas palavras. Provavelmente porque, enquanto falava, ele se dava conta da improbabilidade de alguém colocar jóias, um negócio teoricamente caro, numa caixinha mequetrefe como aquelas. Também deve ter concluído que, para servir de presente, elas teriam de vir acompanhadas dum cartão “estive na Grécia e me lembrei de você”. A sua voz sumia antes do fim das frases, e o rapaz resolveu fazer o mesmo. Ele afastou-se, e o comentário foi um só: se o camarada quer pagar a faculdade, por que, ao invés de perder tempo com essa porcaria que ninguém quer comprar, ele não vai procurar emprego? Bom, vai ver o cara não está muito a fim de estudar e só quer poder falar para os pais: “Viu? Eu tentei...”

O hippie, no entanto, era apenas a primeira parte do programa daquela tarde. A atração principal começaria em instantes, mas não haveria tempo suficiente para quem quisesse ir ao banheiro ou tomar um café. Ainda estarrecidos com a poesia do trabalho artesanal do barbicha, fomos abordados por um mendigo. Nele, o absurdo não estava na aparência: era um mendigo clássico até, com cabelo comprido e barba, ensebados e desgrenhados como manda o figurino do gênero. Também não foi incomum sua primeira frase, uma variação de “me dá um trocado”. A coisa ficou estranha depois que eu neguei. “Pô, pra mim comprar uma maconha...”, disse, em tom bêbado-choroso. Como o hipongo, o sem-teto também não insistiu muito. Sumiu antes que, tocados por seu apelo, pudéssemos mudar nosso veredicto, acrescentando o conselho: “Mas é para comprar maconha mesmo, hein? Não quero ver você com um misto-quente na mão.”

Depois daquilo, fiquei pensando que o mundo seria muito mais interessante se adotasse a lógica de argumentação do pedinte. O pai nega o empréstimo do carro ao filho, mas basta ele dizer que só pretende tirar uns rachas para o coroa lhe dar as chaves, feliz. O sujeito paquera uma garota no bar, ela o manda passear, porém tasca-lhe uma beijoca assim que ele assume que só quer trepar. Ou, então, após ser reprovada numa entrevista de emprego, a candidata sensibiliza o selecionador quando confessa que passaria o dia todo no MSN com as amigas. Se a sociedade seguisse a filosofia do sem-teto, a honestidade de princípios seria premiada. A honestidade de princípios, não a honestidade em si: os políticos, por exemplo, seriam eleitos discursando sobre como desviaram verbas e super-faturariam obras. Nenhuma empresa faria propaganda enganosa -- se o produto fosse uma porcaria, anunciariam em letras garrafais que ele quebraria em um mês. Seria o fim do Procon: afinal, sabendo o que estavam levando para casa, que direito teriam as pessoas de reclamar? E o melhor: não haveria mais aquelas matérias chatas testando a qualidade dos produtos.

Uma lógica assim, infelizmente, só funciona na cabeça libertária, alternativa, de um morador de rua alcoolizado – e, com sorte, emaconhado. Uma pena. Mas talvez pudesse ser adotada em toda a Avenida Paulista. No meio de tanta bizarrice, essa certamente passaria despercebida.

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Gene Kelly, São Paulo e yada-yada-yada


Se morasse em São Paulo, duvido que Gene Kelly ia achar tanta graça na chuva. Dançar entre os pingos, então, fora de cogitação. (Esta, aliás, é das coisas que mais me incomodam nos musicais. Na vida real, ninguém começa a dançar sem motivo aparente. E, se começasse, jamais seria acompanhado por quem estivesse passando. Que o diga o “doidinho”, figura recorrente em toda cidade do interior, não à toa chamado de “doidinho”. Começar a cantar no meio de uma conversa também é estranho, mas, adepto da prática, não tenho muita moral para criticá-la.) São Paulo vira o inferno quando chove.

Diferentemente dos sertanejos de quem descendo, não considero a chuva uma “benção dos céus”. Que ela vem do céu é certo, que Deus tem alguma coisa a ver com ela é provável, já que é bem-vinda é discutível. Não que a lembrança dos anos em que vivi no Agreste, onde as nuvens negras estão longe de significar mau agouro, tenha se apagado. Acontece que, como fez com meus namoricos da época, a volta para São Paulo acabou também com essa paixão. Igualzinho ao telefonema de uma namorada de quem você não quer mais saber, que sua mãe atende e você manda dizer que não está, os trovões e relâmpagos me enchem o saco. Pena que os avisos de chegada das tempestades não passem de formalidade: elas vêm, queira você ou não.

Não discuto a importância da chuva para o ciclo da vida, desde a irrigação de lavouras e abastecimentos de mananciais a yada-yada-yada. Em São Paulo, a chuva também tem seu lado positivo, mas, imaginando o cenário pluviométrico da cidade como um pastel de vento, ele corresponderia ao recheio, enquanto a parte chata equivaleria à massa. (Não estou falando mal da massa, eu até gosto dela. A questão é de simples proporcionalidade.) Se reduzem os riscos de racionamento, de água e energia, as chuvaradas de verão deixam milhares de desabrigados, causam congestionamentos e, a maior das sacanagens, acabam com os churrascos e viagens à praia nos fins de semana. Não é muita massa para pouco recheio?

Em tese, continuo achando a chuva poética, romântica, bucólica e, por que não dizer, yada-yada-yada. É gostoso dormir com o sonzinho dos pingos tamborilando na janela ou “ler um bom livro” tendo a mesma trilha sonora. Mas é só ter de sair de casa que a coisa (ou a chuva) engrossa. Pegar o carro debaixo d’água significa, além de ter de encarar o trânsito anabolizado de que já falei, redobrar a atenção e, se possível, a paciência. Não raro, o babaca do carro de trás se distrai e bate no seu – culpa também dos freios, invariavelmente gastos, que ficam mais ainda mais deficientes. Não raro, devido a acidentes como esse, o congestionamento fica ainda pior.

A chuva também é impiedosa com quem não dirige. Além de atrasar ônibus e tornar impossível qualquer tentativa de pegar táxi – que, segundo uma lei universal bizarra e incontestável, nunca aparecem quando chove –, submete os pobres pedestres a seguidos banhos. Não bastasse ser alvo das gotas vindas de cima, os transeuntes também são atingidos pela água das poças por onde passam os carros. Andando pelas ruas de São Paulo, além de correr esse risco, você vê uma enorme quantidade de buracos e depressões, potenciais reservatórios daquela água preta nojenta, e descobre porque na cidade há uma lavanderia a cada rua. Seus donos, por sinal, devem ser os únicos que gostam de chuva por aqui.

Hoje de manhã, mais uma vez a chuva pôs à prova minha paciência. Trânsito e motoristas comportavam-se como sempre fazem em dias de tempo ruim – e o tempo, como tudo que é ruim, sempre pode piorar. Não tendo paciência monástica (não tendo nada monástico, aliás), eu começava a ficar puto. Mas aí, talvez atraído pela chuva que tanto anseia, o Nordeste que deixei para trás veio em meu auxílio. Moraes Moreira cantava sobre ser confundido com Alceu Valença na divertida “Pernambuco É Brasil”. Aí entendi porque Gene Kelly gostava tanto da chuva: com música, fica fácil. Mas nem por isso, desci do carro e comecei a dançar. Isso eu ainda não consegui entender.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Perfect Day

Ele acordou, coincidentemente, ao mesmo tempo em que ela. Ainda como que sincronizados, olharam pela janela e, ao perceber o céu azul que todos os sábados deveriam ter, pensaram a mesma coisa. “Vamos levar as crianças ao zoológico?” disseram, em coro não ensaiado.

Filhos no carro, ela disse que não estava a fim de dirigir. Ele não se importava de guiar, mas, já que seria o motorista, fez questão de escolher a rádio. Ouviram a música em silêncio, embora fosse a preferida de ambos. A canção lhes trazia lembranças de outras pessoas, mas, por ser uma dessas melodias impossíveis de não gostar, os dois decidiram não mexer na sintonia. Daria muito na cara.

No zôo, passearam de mão dadas. As memórias das quais a música tirara a poeira, colocadas novamente na gaveta – pelo menos, assim se esforçaram parecer. Para disfarçar seu desconforto, ele se ofereceu para comprar pipoca, que ela aceitou alegremente, para disfarçar o próprio. Pipoca doce cor de rosa do jeito que ela sempre gostou. Ele dava na boca dela, e ela comia sem parar e sem perguntar se ele queria. Os risos que vieram em seguida serviram para pôr de fato as recordações no arquivo morto.

Viam os pequenos maravilhados com os elefantes, parecidos estátuas móveis, incólumes pousadas de pássaros. O sol radiante do sábado, cintilante, mas não muito forte, brilhava sobre os paquidermes realçando sua monstruosa beleza. O sol brilhava sobre eles também. Revelava o castanho dos olhos dele, muitas vezes tidos como pretos. Dava à pele morena dela tonalidades douradas. Ele pensava que nunca tinha sido tão feliz. Ela, para variar, pensava o mesmo. Uma felicidade que parecia impossível.

Foi então que se encontraram. Ele, com mulher e dois filhos pequenos; ela também casada, também com duas crianças. “Oi, tudo bem?” Cinco anos sem se ver, tanto para se falar e “oi, tudo bem?”. Não seria àquele dia que se falariam tudo o que queriam. Nem àquele dia, nem em nenhum outro.

- Quem era?
- Ninguém.

As mesmas perguntas, as mesmas respostas. A mesma certeza: a felicidade de fato era impossível.

(Inspirado em “Five Years Time”, Noah And The Whale)

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

A ética por um fio. De macarrão


A ética. É o assunto do momento, inclusive das redações escolares, que começam exatamente assim. Até as crianças que escrevem os tais textos, ainda que não conheçam o vocábulo, sabem bem do que se trata. Afinal, mesmo colando nas provas ou passando cola industrial na cadeira da professora (é, amigo, bons tempos em que só se colocavam tachinhas), elas têm a noção de não deveriam fazer isso. (Se é que dá para dizer que alguém que passa cola industrial na cadeira da professora tem alguma noção.)

Por ser a pauta da vez, é difícil passar um dia sem ler matéria referente – como já foi dito aqui anteriormente, a moçada das redações não é muito chegada à criatividade. Até porque, políticos, polícia, clero e, eventualmente, cidadãos de bem não param de fornecer material. Apesar das páginas de jornais e revistas serem déjà vu numerado, sempre conseguem surpreender, seja pela idade do namoradinho de algum bispo, cada vez mais tenra, seja por onde os corruptos de Brasília escondem seu espólio. Depois da cueca, não me espantará se descobrirem um deputado com dinheiro no mesmo lugar onde o Batman costuma guardar o escudo.

Mesmo assim, sempre há um ângulo novo para se analisar qualquer assunto, e com este não é diferente. Eu, por exemplo, recentemente encarei a questão da ética por um outro ponto de vista: o do buraco de um pene, um desses macarrõezinhos, sabe? (Se você pensou outra coisa, aposto que está pensando em passar cola na cadeira da tia.) Ah, sim, o pene é um canudinho, não um fio. E por que o “fio” no título? Ah, até parece que eu ia perder essa possibilidade de trocadilho.

Outro dia, não tendo o que comer em casa, passei a mão num pacote de macarrão de preparo rápido – não miojo, era um mais sofisticado, “pasta aos quatro queijos” – da casa de uns amigos, deixando um deles sem jantar. Quando dei por conta disso, voltei e depositei no lugar o dinheiro que eu imaginava ser suficiente para comprar outro daquele. (Depois, soube que deveria ter deixado dois mangos a mais.) Historinha prosaica, prima do episódio do Yakult, sobre o qual já escrevi, mas cujo desfecho foi bem diferente. O Vini, dono do macarrão, apesar de ter passado todo o caminho até sua casa fantasiando sobre o instantâneo, achou graça ao encontrar as moedas e saber da história (sem ressentimentos, né, Vini?). Já a assessora de imprensa, proprietária do Yakult que peguei na geladeira coletiva, quase mobilizou os outros funcionários da minha antiga agência a fim de me linchar – e olha que ela só soube que tinha sido eu o autor do empréstimo porque deixei um bilhete avisando.

O “caso Yakult” é o clássica situação “sujeito ligeiramente atrapalhado que tenta agir do jeito certo e se fode”, mas não leva o meu troféu nesse quesito. Ah, a concorrência é grande. Hoje mesmo, depois de já ter começado a escrever este texto, fui almoçar com um amigo e deixei o carro na rua, numa “área de estacionamento rotativo e pago”. Corri à lotérica mais próxima e comprei dois cupons da Zona Azul. O tempo passado lá foi o suficiente para um fiscal de trânsito justificar a cor predominante de seu uniforme: quando cheguei, a merda já estava feita. Tentei me explicar, disse que tinha parado havia cinco minutos, só o tempo de comprar os cupons, mas não teve jeito. O marronzinho continuou preenchendo a multa com a maior desfaçatez, como quem está acostumado a ouvir desculpas furadas diariamente – categoria, aliás, na qual a minha não se classificava. Disse para ele perguntar aos pedreiros sentados na calçada, pelos quais passei ao chegar, que eles confirmariam minha história. Ele: “Olha, sem querer colocar o senhor contra eles, sabe o que eles disseram quando cheguei ao seu carro? ‘Mete a caneta mesmo’”. Mesmo “sem querer colocar o senhor contra eles” foi bem isso o que fez o fiscal. Olhei para aquele bando de sujeitos que poderiam tranquilamente me dar uma surra e disse “obrigado por avisar que eu tinha ido comprar a porra da Zona Azul”, momentaneamente esquecido que eles poderiam tranquilamente me dar uma surra. Por sorte, o “sujeito ligeiramente atrapalhado que tenta agir do jeito” não se fodeu ainda mais.

Ainda há pouco, só para confirmar o que venho dizendo sobre a ética ser o assunto da vez e também sobre a originalidade das pautas, foi noticiado mais um caso de “cara pobre que acha uma quantidade considerável de dinheiro e entrega para o dono sem tocar num centavo”. Desta vez, foi um caminhoneiro que encontrou uma pochete com dezessete mil reais (me pergunto como coube tanto dinheiro numa pochete) num posto de gasolina e devolveu para o dono. Quando eu já imaginava o que alguém fazia com dezessete milhas em dinheiro vivo, o parágrafo abaixo informou se tratar de um fazendeiro que ia comprar gado. Será que esse pessoal que negocia nelores, zebus e afins nunca ouviu falar de cheque ou cartão de crédito?

Voltando ao camarada que achou a bufunfa, acho muito louvável o gesto, mas não sei se o faria. Do jeito que tenho sorte, perigava eu tomar uma multa quando fosse à casa do fazendeiro entregar a grana. E duvido que ele se ofereceria para pagá-la. Ao contrário de mim, do Vini e desse caminheiro, no geral, as pessoas não são legais.