segunda-feira, 21 de agosto de 2017

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Estava na cara que eu vinha. Na sua cara. Eu me anunciei primeiro com discrição, da qual fui abrindo mão na medida em que os fios brancos se avolumavam no cabelo que perdia o volume. Nas rugas tímidas mas contundentes em torno dos seus olhos e nos próprios, que voltaram a ser míopes anos depois de operados. Tudo o que você viu, aliás, também era um prenúncio da minha chegada. Tanta gente, tanta história, tantos lugares, tantas coisas inimagináveis. Como, se não com os anos, para se acumular essa experiência? 

Esse, aliás, outro nome que se dá à idade. Gosto de ser chamada assim, mas não quando é como eufemismo. Eufemismo é para coisas que não se assumem, e eu, ao menos em você, gosto de ser o que sou. Você também, mais e mais, tem se apreciado. Tem buscado se aproximar da sua essência, abraçar sua estranheza. Isso tem a ver comigo. Aprofundar-se em si mesmo, mas sem se isolar. Procurar entender o outro, mesmo quando não parece haver o que entender. Conceder o benefício da dúvida, eu lhe ensinei, pode ser mais benéfico a você do que a quem o recebe. 

Conforme me aproximei, os impactos se suavizaram, mesmo os maiores se diluíram. Você aprendeu que, dentre esses, não há nenhum capaz de decretar o fim. Quando vier o derradeiro, vai ser inédito e inevitável, isso você também aprendeu. E, por ter aprendido, deixou de temer. Mas você não quer esse fim para tão logo. Eu também não. 


Nossa relação há de se intensificar. Quero me fazer sentir em você, no cinismo, na ironia, nas limitações físicas que lhe empurram mais e mais para o abismo. Porque o abismo é tão profundo e interessante quanto você for. E é essa a expedição que você deve empreender até o último fôlego.

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