terça-feira, 8 de setembro de 2015

Dúvida

Não importa quantos livros você já tenha lido: o número é bem menor do que o daqueles que você ainda não leu. Falo por mim mesmo. Embora venha lendo muito ao longo de mais de trinta anos, tenho enormes falhas no meu currículo literário. “Guerra & Paz”? Não li. “Irmãos Karamazov”? Também não. E não pense que minhas ausências se limitam aos grandes autores russos — citei esses dois porque foram os que primeiro me vieram à cabeça. Fato é que a vida é curta demais para se ler tudo o que se precisa ou que se quer; inclusive para quem dedica a isso todos os seus dias, abrindo mão de coisas de menor importância, como o convívio social, a prática de atividades a céu aberto ou mesmo de sexo.

O que nos leva à pergunta: com tantos livros indispensáveis ainda não lidos, por que ainda se escrevem outros? Todos os assuntos relevantes já foram abordados de todos os pontos de vista possíveis, nos mais diferentes gêneros e estilos. Apreciadores da alta literatura se verão tão bem contemplados quanto os que lêem só para passar o tempo, e sem precisarem abrir nenhuma publicação com menos de trinta anos — para ficar mais ou menos no período que compreende minha vida de leitor. Então, repito, por que alguém escreve um livro hoje em dia? Por que eu tinha que ser um desses idiotas?

A dúvida me acompanhou a cada letra digitada no processo de escrita do meu primeiro livro. Me fez jogar fora sua primeira versão — com mais de sessenta páginas —, mas não foi capaz de me impedir de recomeçar do zero e ir até o fim. Me fez ler o produto final e torcer nariz para ele, me fez dar alguns tapas no texto, em busca de melhorá-lo, mas não me impediu de procurar uma editora. Quando, por fim, encontrei interessados em levar “Quem Vai Ficar Com Morrissey?” às livrarias, a dúvida, mais uma vez, me fez hesitar antes de concordar com a publicação. Porém falhou em impedir minha mão trêmula de rabiscar meu nome no contrato.

Depois de publicado, “Quem Vai Ficar Com Morrissey?” ainda não era à prova da minha dúvida.  Pensava nas pessoas a lê-lo achando-o uma merda, e me preparava para o massacre da crítica — ao menos da pequena parte dela que se interessasse pelo livro. A atenção despertada pela minha estreia literária, como esperado, não foi tanta. As resenhas, todavia, eram em sua maioria elogiosas.  Mais animadoras ainda que elas foram as mensagens dos leitores, falando sobre como gostaram e se identificaram com o livro, como foi importante para eles. Esses contatos fizeram a dúvida dar um tempo. Todos aqueles livros muito mais importantes continuavam não lidos, mas o meu, pequeno e despretensioso, talvez não fosse assim, tão inútil.

Em seguida, a dúvida se transformou em certeza. Não de que o meu livro seja imprescindível, ao contrário. A certeza é de que “Quem Vai Ficar Com Morrissey?” tem falhas, de que não é o melhor que eu posso escrever. Até em função disso, evito relê-lo. Outra certeza é de que, bom ou ruim, sua primeira edição já está praticamente esgotada; quase duas mil pessoas já o leram, e não tenho mais o que fazer com relação a ele. Meu único poder é sobre minha obra futura. Escrevendo meu segundo livro, aliás, novamente a dúvida: para que fazê-lo? Estaria eu querendo me desculpar por ter escrito um livro duvidoso? E se o novo fosse igualmente questionável? Na dúvida, vou escrevendo. Ou ia. 

Hoje, como ocasionalmente, fiz uma busca por resenhas de “Quem Vai Ficar Com Morrissey?” no Google. Sem muita esperança de encontrar algo, me surpreendi ao ver uma crítica postada recentemente, em julho, num blog literário. Seu autor mostrou estar longe de ser meu fã. Num texto um pouco menor do que este, ressaltou a banalidade da minha história, a pobreza do meu estilo, a falta de personalidade do meu protagonista, a heresia, enfim, de ter usado o santo nome de Morrissey em vão. Alegando já ter passado da página 200, o sujeito não julgou necessário terminar a leitura do livro para condená-lo. 

Disse que me preparei para as críticas, mas isso foi em outro momento. Tanto tempo após o lançamento do livro, a guarda já baixa, o blogueiro me atingiu em cheio. Principalmente porque muitas das coisas ditas por ele, com as quais concordo, reativaram todos os meus questionamentos. Prova disso é que, ao invés de avançar no livro que atualmente escrevo, dedico este tempo a discorrer sobre a validade de prosseguir. 

Mas já adianto: a interrupção é só por hoje. Em alguns meses, espero, lançarei mais um livro absolutamente dispensável. Por mais que hoje domine melhor a estrutura narrativa e esteja atento para não repetir as falhas que identifico em “Quem Vai Ficar Com Morrissey?”, não posso garantir que este meu segundo livro será irrepreensível. Se posso assegurar algo, é que o responsável por essa resenha dificilmente vai gostar. Mais provável é que nem leia. 

E por que, mesmo assim, escrevo? Porque não tenho escolha. Não escrevo para mudar a história da literatura. Não escrevo para agradar os leitores. Não escrevo para calar a boca dos críticos. Não escrevo em busca de fama, nem de sucesso. Escrevo porque as palavras dentro de mim exigem, e, diante do poder delas, as dúvidas são muito pequenas. 

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