"Con Air".
Aquele clássico subestimado, com o Nicolas Cage no papel principal, um
presidiário bonzinho voando rumo à liberdade, que tem o azar de ir no
mesmo avião que a maior escória prisional, em transferência para outra
cadeia. Liderados por John Malkovitch, os presos do mal sequestram o
avião, e cabe a Cage, no auge da canastrice, debelar o motim. Épico. Sublime.
Eu já tinha visto umas mil vezes, o Rodrigo também.
Mas, suficientemente
informado sobre os quebra-paus que sitiavam Londres naquele fim de semana
e já tendo terminado de ler o livro que eu lhe emprestara ("O Grande
Gatsby"), meu amigo havia resolvido deixar naquele canal mesmo. A
violência da ficção ajudaria, inclusive, a esquecer a real por uns momentos. A
mim, para ser franco, pouco me importava o que estivesse passando na TV.
Naquela noite de sábado, o notebook no colo, eu estava concentrado em escrever, e aquele quarto de
hotel na capital inglesa se convertera em meu escritório – pelo
menos, a minha cama. A véspera do show do Morrissey que veríamos em Londres
ficaria marcada para mim como o dia em que concluí meu primeiro livro, que leva
o nome do cantor: "Quem Vai Ficar Com Morrissey?"
Resgato essa passagem
para comprovar algo que talvez nem precisasse: diante de um evento
marcante, tendemos a lembrar de todas as circunstâncias em torno do tal
acontecimento. Você, provavelmente, tem bem vivas as lembranças do seu primeiro
beijo. O mesmo para o seu primeiro dia na escola ou quando seu filho nasceu. A
noite em que sua mulher pediu o divórcio ou a manhã em que sua mãe morreu
também sempre serão recordadas com desagradável riqueza de detalhes.
O inesquecível tem o condão de sublinhar tudo com tinta fluorescente.
Ontem, por volta deste mesmo horário, também
estava escrevendo. Como já se tornou um hábito cotidiano, eu o fazia no
celular, com um dedo só. Adotei o costume para continuar produzindo apesar da
falta de tempo. Se esperasse as condições ideais – o computador
confortavelmente repousado sobre a mesa, na solidão e no silêncio da minha casa
– não teria escrito um terço do que venho escrevendo. Desde que aderi à prática
pouco romântica de escrever no celular – que hoje se chama smartphone, tem uma
tela grande e ótimos editores de texto – meu escritório é em qualquer lugar.
Até na praia.
Mas, ontem, eu não estava de frente ao
mar, nem de longe. Nem o peixe que eu comia, o Saint Peter, era de água salgada.
Tendo ido almoçar tarde, consegui uma boa mesa no andar de cima de um
restaurante self-service já quase vazio. Não estava em casa, não estava diante
do computador, fazia algum barulho, mas não chegava a incomodar. Entre garfadas
e olhadelas para a TV que passava o Globo Esporte, eu usava o dedão direito para
transformar em frases minhas ideias para o desfecho do meu segundo romance. A
garçonete já tinha trazido a mousse de limão, sobremesa a que o buffet dava
direito, quando ele, por fim, deu as caras: o ponto final, o último. A primeira
versão de “Olho Roxo” estava concluída. Precisaria de uns tapas, de um trabalho
de edição, mas estava pronta.
Desci as escadas e, ao ver a garçonete
que me atendeu, agradeci, sorridente. Arrumando os cabelos em frente ao
espelho, ela nem se deu ao trabalho de olhar para o lado. Podia colocar a
desculpa do “de nada” sem vontade, quase inaudível, nos grampos de cabelo mordidos
entre os dentes. Não me incomodei. Depois de pagar no caixa, fui andando até o
trabalho, passando pelas ruas tomadas por obras e carros que desrespeitam
pedestres. Também não me incomodaram. Nada me incomodaria. Eu tinha acabado de
escrever o meu livro.
A situação em que finalizei meu segundo
romance não tem nenhum glamour. Ao contrário do episódio da conclusão de “Quem
Vai Ficar Com Morrissey?”, não tem um contexto histórico ou geográfico
interessante, não rende uma boa história para contar em eventuais entrevistas. Mas,
por isso mesmo, acho que tem bastante a ver com meu segundo romance. Como nas
ruas da Vila Olímpia, nele também há bem pouca beleza.
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