sábado, 10 de março de 2012

“The pleasure and the privilege is mine”



A visita do príncipe Harry ao Rio de Janeiro coincidiu com a passagem da verdadeira realeza britânica pela cidade. Mais do que uma piada fácil – que provavelmente já deve ter sido feita por alguém da crônica musical – a frase que escolhi para começar o breve relato do quinto show de Morrissey a que tive o prazer e o privilégio de assistir dá a real dimensão da relevância dos dois ingleses. Enquanto o jovem farrista é o representante menos representativo de uma monarquia cujo maior poder é o de atrair turistas para Londres, o cantor prestou tamanhos serviços à cultura pop que só não foi declarado Sir porque, bem, dificilmente a tal rainha sem poder daria esse reconhecimento a alguém que gostaria de vê-la morta. Talvez o filho da Diana não soubesse da presença de um de seus súditos mais ilustres na cidade, mas esse súdito, nada orgulhoso, fez questão de mencioná-lo. E as palavras usadas, claro, foram pouco elogiosas.

Talvez Harry não gostasse de tê-lo ouvido ontem, mas Morrissey levou a platéia da Fundição Progresso, formada por centenas de pessoas sem sangue azul, à loucura – principalmente, claro, nas músicas dos Smiths. Quando Moz e sua banda tocaram “There Is A Light That Never Goes Out”, “Please, Please, Please..” e “How Soon Is Now?” o que se via poderia perfeitamente ilustrar o verbete “catarse” de qualquer enciclopédia. Por todos os lados, pessoas de olhos fechados e mãos levantadas lembravam os fieis de cultos evangélicos e faziam jus à experiência, verdadeiramente religiosa. Mas só nessas músicas. No resto do show, o que se viu – e, pior, se ouviu – foi o completo desrespeito típico das platéias brasileiras, seja de shows ou de cinema. A escumalha não cala a boca. Parece que estão tratando de assuntos como, sei lá, a liberação de um novo pacote de auxilio financeiro à Grécia ou uma intervenção militar na Síria. Só isso explicaria a impossibilidade de adiar o falatório. Em “I Know It’s Over”, Morrissey afirma que é fácil amar e odiar, mas é preciso força para ser gentil e amável. Foi justamente com a música ao fundo que eu lhe dei razão. Cansado do incessante blá-blá-blá, me virei para os boquirrotos e gritei para deixarem o papo para outra hora. A Grécia ou a Síria poderia esperar o fim do show.

Adaptando o repertório para uma platéia pouco acostumada a vê-lo, numa generosidade incomum em astros da sua envergadura, Morrissey substituiu novas (e excelentes) canções, como “Action Is My Middle Name” e “People Are The Same Everywhere”, por mais músicas dos Smiths. E quem, como eu, não foi lá só para ouvir os hits da banda extinta (não duvido que boa parte dos presentes só a tenha conhecido com o filme “500 Dias Com Ela”), além do inconveniente palavrório dos imbecis, não teve do que se queixar. Mesmo com a ênfase maior nos álbuns mais recentes, não faltaram clássicos como “Alma Matters” e “Everyday Is Like Sunday”. E de “Vauxhal And I” (1994), veio “Speedway”, em execução arrebatadora como pede a música. Por mais de um minuto, cantor e banda se silenciam, as luzes do palco se apagam, e só quem tem alguma familiaridade com o tema entende o que está acontecendo. Passada a pausa, ao som de uma motosserra, a música recomeça, e os pelos se arrepiam.

Na letra da mesma “Speedway”, o mancuniano declara sempre ter se mantido fiel a alguém. Quando ele canta, “Speedway” e todas as outras, percebemos que esse alguém é ele mesmo. Ao vê-lo interpretar sua obra, mesmo a parte mais antiga dela, o verbo distancia-se das artes cênicas. A emoção trazida em sua voz nos faz sentir o tal medo que se apossou dele no momento em que faria o pedido, mesmo depois de mais de 25 anos da composição de “There Is A Light...”. E, com a bagagem que os cinco shows me deram, garanto: Morrissey pode repetir o setlist – não que costume –, mas nunca se repete.

Cada apresentação sua é única, e em cada uma ele nos reserva uma surpresa. Algumas bizarras e hilárias, caso da banda de cuecas – exceção feita ao rotundo guitarrista e co-compositor Boz Boorer, para o qual o chefe escolheu figurino composto de peruca e vestido, esse sim repetido. Outras polêmicas, como as declarações recentes sobre as Falklands (que ele fez questão de, como os argentinos, chamar de Malvinas) e as mais antigas, referindo-se aos chineses como sub-raça. O tipo de contundência possível graças à manutenção do status “indie” – que aqui refere-se mais à independência do que ao estilo –, impensável para bandas como o contemporâneo U2, hoje convertido em trilha sonora de jogging de classe média, de espetáculos grandiosos, pirotécnicos e mecânicos.

Por isso, é com um sorriso no rosto que me lembro: amanhã vou reencontrar Morrissey mais uma vez. Vai ser a sexta, e vai ser bem diferente das outras. Mais um puta show que o pobre príncipe Harry não vai ver.

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