sexta-feira, 9 de junho de 2017

Mais uma vítima do atentado


É um sentimento adolescente, mas que, como as espinhas, acompanha muitos para além dos anos prensados entre a infância e a idade adulta. Aquilo que sentimos quando, de repente, todos passam a gostar de algo que antes (parecia que) só você gostava. Sei que falei, numa crônica recente, sobre o direito que todos têm de gostar da banda que bem entenderem – inclusive da sua –, mas aquele texto foi escrito pelo meu lado adulto.
O Leandro adolescente de 40 anos, além de eventuais espinhas, carrega o mesmo egoísmo com relação aos seus artistas preferidos. Lembro, há mais de 20 anos, de como fiquei irritado quando o Kurt Cobain começou a aparecer nas capas de todas as revistas, até naquelas voltadas às meninas, com a Capricho. De repente, o Nirvana tinha deixado de ser uma banda suja e barulhenta para se tornar uma banda suja e barulhenta de que gente que nunca tinha gostado de bandas sujas e barulhentas gostava. Ou dizia que gostava.
Isso tudo me ocorreu esses dias, depois do atentado ocorrido em Manchester, durante o show da cantora Ariana Grande – até então, uma ilustre desconhecida para mim. Seu público é formado pelo que, na minha época, seriam as tais leitoras da Capricho. No concerto, além nas meninas, estavam seus pais e familiares. Com a explosão da bomba, houve várias mortes e um número maior de feridos. Atribuído a terroristas islâmicos, o atentado causou comoção geral, para além dos limites da cidade e do país. Numa coincidência sem significado, a tragédia aconteceu no mesmo dia do aniversário de um dos maiores ídolos nascidos ali, Morrissey. Se quisesse estabelecer alguma relação entre os fatos, para efeito do texto, poderia dizer que Ariana representa tudo aquilo que o ex-líder dos Smiths abomina artisticamente: música descartável produzida por um artista idem, vendida em escala mundial, consumida por milhões de forma absolutamente irrefletida. Mas nem Morrissey, em suas declarações mais controversas, diria que isso é o suficiente para tornar artistas e fãs merecedores da tragédia. O pronunciamento de Moz sobre o assunto gerou, sim, reações indignadas, mas por seu tom xenofóbico.
Aconteceu durante uma vigília de luto pelas vítimas. Foi captado por uma câmera – onde não há uma hoje em dia? –, postado nos principais sites e replicado nas redes sociais. Em meio à multidão sorumbática, ouve-se uma voz, solitária, porém confiante: “Don’t look back in anger, I heard you say…” Naquele momento, naquela voz, o antigo sucesso do Oasis assumia um novo significado. Era como se quem o cantasse tentasse consolar os conterrâneos e aconselhá-los a não odiar os terroristas. A mensagem deve ter sido entendida exatamente assim pelos outros presentes, que imediatamente passaram a engrossar o coro. Outras vozes se uniram àquelas ao longo dos dias, em outras cidades do país e do mundo. Logo, “Don’t Look Back In Anger” voltou aos primeiros lugares das paradas. Quase como há mais de 20 antos, quando, no auge do Britpop, eu e tantos jovens compramos “What’s The Story (Morning Glory)”, álbum que trazia a faixa.
Então, como antes com o Nirvana, gente que nunca tinha gostado do Oasis passou a amar a música. Menos pelo passou a representar do que pelo espírito gregário, que leva ao comportamento quase instintivo: se todos estão fazendo, por que não? O Courteeners, mais uma das tantas bandas surgidas em Manchester, durante um show na cidade agendado antes do atentado, aproveitou a oportunidade para tocar o hino. Foram acompanhados por toda a plateia, emocionada. Depois, num concerto organizado em prol das famílias das vítimas, o Coldplay – no mesmo show que teve participação especial do ex-Oasis Liam Gallagher – fez uma versão da canção. No palco, ao lado do vocalista Chris Martin, Ariana Grande arriscou um verso ou outro da canção – que, como a imensa maioria dos presentes da plateia, não fazia parte nem do seu repertório nem dos seus gostos particulares. Uma cena que me inspirou o comentário maldoso: “‘Don’t Look Back In Anger’ foi mais uma das vítimas do atentado de Manchester”.
Noel, o compositor do hit – e quem primeiro o cantou –, não participou do evento. Foi duramente criticado pelo irmão Liam, cujas palavras e palavrões foram minimizados pelo líder do Coldplay, que agradeceu ao Gallagher mais velho por ter lhes cedido suas músicas. (Como é bonzinho esse Chris Martin.) A desculpa de Noel para sua ausência foi estar fora do país em viagem com a família, programada antes do atentado e, consequentemente, do concerto.
Quem ainda criticava Noel talvez tenha mudado de ideia ao saber que, sem alardear, ele, detentor dos direitos autorais de “Don’t Look Back In Anger”, os cedeu em favor das famílias das vítimas. Concordou que assassinarem sua música, só não quis estar por perto para ver. É compreensível.

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