sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Garçom

O nome. Se alguém perguntasse o que gostaria de mudar em si mesmo se pudesse, esta seria a resposta de Reginaldo. Tendo sido batizado em homenagem ao avô, sempre que maldizia seu vocativo, ouvia do pai: “Você devia era ter orgulho de ter o mesmo nome que um homem tão bom.” A única vantagem nisso, pensava ele, era poder ser chamado de Neto. Assim o faziam amigos e família, assim ele se apresentava, assim era conhecido no meio artístico, assim estava acostumado a ser tratado desde sempre – exceto por uns moleques da escola, que o provocavam. Ao ouvir seu primeiro nome, não raro não o associava a si mesmo e, por isso, mesmo já tendo sido chamado, ficava irritado pela demora para ser atendido em consultórios. Reginaldo era outro. Era o falecido avô, era o canastrão Faria. Mas hoje, excepcionalmente hoje, Reginaldo também era ele mesmo. Era o dia para o qual havia sido batizado, quando enfim seu nome fez sentido.

Ainda não tinha chegado ao bar quando, inspirado pelos acontecimentos prévios, esboçou a tese. Sinapses já lubrificadas pelo álcool, definiu o que seria o “Determinismo Batismal”: o nome que recebemos nos sentencia a ser alguém, mesmo que isso não seja evidente de cara, mesmo que a revelação dessa identidade leve décadas. No caso dele, foram quase quatro. Hoje, enfim, soube: estava destinado a ser o personagem da música mais famosa de Reginaldo Rossi: “Garçom”, clássico do cancioneiro brega, hit em radinhos de pilha de porteiros e faxineiras. Se os fatos do dia fizeram a música, vinda desse mundo tão distante, invadir o seu, achou questão de justiça poética retribuir a invasão. O boteco pé sujo nos arredores do Largo da Batata, frequentado por porteiros e faxineiras, seria o cenário perfeito para o artista plástico Neto – em dia de Reginaldo – cumprir seu carma.

Horas antes, Neto desceu a escada que separa seu apartamento/ateliê, na sobreloja, da porta que dá para a rua, para pegar a correspondência que o carteiro passara por debaixo dela. Abaixou-se para recolher a pilha de envelopes, composta pelas contas e malas-diretas de sempre. Passou os papeis de uma mão para a outra, passou os olhos sobre eles da forma desatenta como sempre o fazia. Mas só até ver entre eles uma carta pessoal, dessas que, desde a internet, mal recebia. Devia ser de uma das tias do interior, suas únicas correspondentes à moda antiga. A caligrafia que desenhava seu nome como destinatário, porém, desmentiu a suposição. Já tinha lido aquela letra tantas vezes, em bilhetes presos sob imãs na geladeira e em listas de compra de supermercado. Virou o envelope e não viu o nome ou endereço do remetente. Da remetente. Aliás, não via a própria havia meses, desde a separação. Também desde então, não tinha notícias dela, por isso apressou-se em subir a escada. Não precisava abrir a carta para saber que o melhor seria sentar-se antes de lê-la.  

Escritas a mão, com letra caprichada e palavras carinhosas, as duas folhas de caderno universitário não poderiam ser mais cruéis. Lágrimas brotavam dos olhos de Reginaldo a cada linha, e ele então compreendeu o que Roberta Flack cantava: com delicadeza, Andrea tinha enfiado um punhal em seu peito e o estava matando suavemente, com a consideração que seu passado em comum cobrava. Ela lamentava muito, muito mesmo, ter que dizer o que estava para dizer, mas sabia que seria melhor ele ficar sabendo por meio dela. Como ela iria dizer aquilo? Tinha conhecido outro e... iam se casar em alguns meses. Sabia que parecia repentino, mas ela tinha se apaixonado, e essas coisas a gente não controla. Sabia também que seria difícil, mas esperava que ele entendesse, que não a odiasse muito. Desejava tudo de bom para ele, uma pessoa que ela jamais esquecerá, que sempre ocupará um lugar especial nas suas memórias e no seu coração. 

“Coração”. Reginaldo lia a palavra e imaginava que o escrito era o único que Andrea devia ter. Como ela poderia deixar para trás tudo o que viveram assim, tão de repente, com um sujeito que ela mal conhecia? A não ser que os dois já fossem amantes desde quando ainda... Não, não podia ser. Ele saberia. Ou melhor, ele nunca saberia. O que ele sabia era o motivo da atitude tão inusitada, de lhe dar a notícia por meio de uma singela e ultrapassada carta de papel, escrita a mão e enviada pelo correio. Devia-se ao tal carinho que ela dizia sentir por ele e, sem dúvida, ao fato dela confundir esse sentimento com sadismo. Mais tarde, já desenvolvida a teoria do Determinismo Batismal, acrescentou aos motivos a participação que Andrea deveria exercer para que ele, finalmente, realizasse sua vocação quase inata.

O bar vazio na tarde de quarta-feira,  exceção de um ou outro pedreiro que tomava uma cachaça e saía em seguida, o balconista ocioso assistindo à televisão. Já bêbado, Reginaldo não resistiu:

“Garçom”, chamou.
“Mais uma Serramalte, amigo?”, respondeu o dono do bar, já abrindo a geladeira.
“Você já cansou de escutar centenas de casos de amor...”, continuou.
“Vixe, patrão, já ouvi cada uma...”, abriu a cerveja e serviu o copo.
“No bar, todo mundo é igual, meu caso é mais um, é banal, mas preste atenção, por favor”, olhou para o balconista, dramático e suplicante.
“É como diz aquele programa dos crente: ‘fala que eu te escuto’”, sorriu o atarracado senhor nordestino, puxando uma cadeira.
“Saiba que o meu grande amor hoje vai se casar, e mandou uma carta pra me avisar! Deixou em pedaços o meu coração!”
“Eita. Peraí, que eu vou pegar um negócio mais forte pra você...” 

E Reginaldo bebeu. Bebeu, falou e chorou. Quando a noite caiu e o bar começou a encher, o dono não pôde continuar a lhe dar atenção. Mas ficou de olho nele, que contou sua história a todos que chegavam, a maioria nem um pouco interessada. Veio a hora em que seguiu o script que a certidão de nascimento e a canção haviam traçado. Dormiu. Quem pareceu não conhecer bem seu papel foi o garçom, que não o deitou no chão. Após fechar o bar, acomodou o cliente no Fusca, conseguiu arrancar dele seu endereço e o levou até lá. Ao acordar em casa, Reginaldo não se lembrava muito bem do que tinha acontecido. Mas decidiu que, a partir de então, brigaria com quem o chamasse de Neto.


(Escrevi este conto há alguns meses, como parte da série de histórias inspiradas por músicas. Não tinha postado ainda e até hoje não sabia bem porquê. Acho que esperava, inconscientemente, uma ocasião especial para fazê-lo. Ela chegou hoje, com a triste notícia da morte de Reginaldo Rossi. Fica como pequena homenagem a este grande cantor popular, de carisma incontestável e canções inesquecíveis.)

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