O Gigante acordou. E foi andar. Com seu
tamanho, só podia mesmo dar no que deu: bloqueou as principais avenidas com
seus passos. Era só o Gigante passar para, mesmo onde o sinal estivesse verde,
os carros pararem e lhe darem a preferência. As caminhadas do gigante, em pouco
tempo, se tornaram frequentes. Como faz a maioria dos que começam a se
exercitar, sempre que ia esticar as pernas, o Gigante postava nas redes
sociais. Avisados, os motoristas passaram a deixar seus carros na garagem para
abrir caminho. Também como fazem muitos iniciantes no esporte, porém, o Gigante
não levou as caminhadas adiante. Disse que sua motivação ia além da simples
perda de medidas, mas bastou sumirem uns vinte centavos para o Gigante voltar
ao sedentarismo de sempre. Além do mais, começou a fazer muito frio, e o frio
dá uma preguiça...
Enquanto o Gigante caminhava, eu corria.
A prática, surgida no ano passado, virou hábito com o incentivo da nova
namorada – corredora de longa data – e intensificou-se com o tempo adicional
oferecido pelo desemprego. Quando o Gigante cansou e se refugiou no quentinho
do edredon, eu continuei correndo sob chuva e temperaturas próximas do zero,
sentindo-me Rocky Balboa se preparando para o confronto com Ivan Drago, na Sibéria.
Com as gotas geladas, atingia minha cabeça uma certeza: se eu corria naquela
situação, correria em qualquer outra. Se não me assustava com os termômetros no
inverno, não pararia agora, em pleno verão, quando a cama não espera o toque do
despertador para me expulsar. Perdi cerca de dez quilos, tão pesados quanto os
R$0,20 que despertaram o Gigante, mas não a vontade correr.
O Gigante voltou para casa, e os carros,
às ruas. Mas não o meu, que já estava na garagem antes mesmo dele pedir. Foi
parar lá depois que o resgatei do pátio do Detran, para onde foi levado após a
apreensão causada por minha habilitação vencida. Regularizei minha situação
como motorista, entretanto, no tempo que levei para fazê-lo, questionei essa
condição. Na época sem alternativa, fiz uso do transporte público. Hoje, mesmo
com a carta em dia, continuo passageiro convicto. Morando ao lado do metrô, não
vejo porque não. Graças ao passeio do Gigante, gasto R$6,00 por dia para ir e
voltar do trabalho, menos do que gastaria com combustível. A compensação
financeira, no entanto, não é a única. As viagens não são agradáveis,
invariavelmente feitas em pé e no aperto, mesmo assim, comparadas às que fazia
ao volante, são muito melhores. Quem dirige no trânsito paulistano está sujeito
a um dos maiores congestionamentos do mundo e a motoristas também muito muito
bem cotados no ranking da falta de educação. O tempo que se perde no trânsito
não se resume às horas que se passa parado, boiando num mar de monóxido de
carbono: é contabilizado na expectativa de vida, sem dúvida diminuída pelo
stress resultante dessas jornadas motorizadas, quando não bruscamente
interrompida pela bala disparada numa provável briga causada por uma fechada.
Não ser afetado pela democrática ignorância do tráfego, comum a peruas de
meia-idade a bordo de grotescos utilitários e apressados motoboys hidrofóbicos,
requer uma paciência monástica, que eu admito não ter. E, como mostra o
comportamento dos demais, ninguém tem. Então, se é assim, por que insistem em
dirigir nessas condições?
Em junho, muitos desses motoristas caminharam
nos passos do Gigante. Suas vozes ajudaram a compor a dele, que falava grosso
ao pedir a revogação do aumento das passagens. E o fim da corrupção, e saúde de
qualidade, e uma melhor educação, e mais segurança, e o fim da miséria etc.
Mãos no volante e na buzina, eles continuam querendo tudo isso, desde que não
lhes represente um incômodo. Em junho, postavam, orgulhosos, os registros da
sua participação dos dias de protesto. Hoje, reclamam dos corredores exclusivos
para ônibus, que, mesmo favorecendo a imensa maioria, dificultam a vida de quem
tem todo o direito de dirigir o carro que, graças a Deus e a muito suor, teve
condições de comprar.
A cada vez que caminho até a estação do
metrô, numa velocidade muito maior que a dos carros por que passo, ratifico
minha decisão de não dirigir. Se 2013 foi o ano em que me tornei um corredor e
um pedestre convicto, 2014 pode ser o ano em que trocarei meu carro por outro,
muito mais econômico, menos poluente e mais fácil de estacionar: o carro
invisível. Duvido muito que o Gigante vá aderir a esse modelo. Com exceção dos
passeios de junho, o Gigante não é muito chegado em andar.