sábado, 22 de junho de 2013

Homem de Bem

 
Quando andava apressado pelas calçadas, tentando compensar algum atraso, de vez em quando, via passar por mim – e pelos outros igualmente atrasados e apressados – alguém que corria, mas não parecia estar com nenhuma pressa. Geralmente com fones no ouvido e invariavelmente com tênis de cores berrantes, era gente se exercitando. Pelo ar alheio, pareciam exercitar, além dos músculos e dos pulmões, o senso de abstração. Não era difícil confundir essa indiferença com o arredor com arrogância, e talvez eu assim o achasse por inveja  – com tanto tempo de sobra e eu sem nenhum, não teriam esses corredores roubado o meu? De tanto invejá-los, acabei me tornando um deles.
Ao me demitir, há alguns dias, meu ex-chefe me botou para correr em mais de um sentido. Além da rescisão e do FGTS, ganhei tempo, aquele que meu passo apertado de antes jamais daria conta de alcançar. Com ele, decidi intensificar a prática que já tinha adotado há meses e a que, nos últimos, estava me dedicando mais. Quase todos os dias, ponho tênis indiscretos, fones e me ponho a correr. Sem pressa. Vou para os lados do Parque da Aclimação e vou pelo caminho mais comprido. Passo pelas calçadas cheias de apressados, como já fui, como em breve voltarei a ser. Não sei se eles me invejam, na verdade, nem sei se reparam em mim, com exceção de um ou outro em quem acidentalmente esbarro. Agora que mudei de lado, percebo as vantagens da abstração – junto com os fones e os tênis escandalosos, ela é parte integrante do Kit Corrida. Isolado do mundo, posso analisá-lo melhor. 
Correndo, passo pelas passeatas, por todas as que tomaram conta do país nos últimos dias. Empolgado com o súbito civismo geral, ouço os coros e as reivindicações dos manifestantes. Escuto os políticos mudarem de discurso. Vejo a PM mudar de conduta. A imprensa mudar de tom. Presencio depredação e saques em São Paulo e no Rio, cenas de barbárie em Brasília. Comemoro a conquista da redução do preço do transporte em várias cidades. Volto às passeatas e leio com mais atenção os cartazes. Alguns exigem o cancelamento da Copa, outros pedem o impeachment da presidente e outros, pena de morte para os corruptos. Existem pedidos até pela separação de São Paulo e pela volta da ditadura militar. Enquanto eu avanço na corrida, minha empolgação com as manifestações vai no sentido oposto. 
Vou correndo mais rápido e meus neurônios também. Se me esforço para desviar dos pedestres, minhas células cerebrais não se importam de se chocar umas com as outras. Nesses encontrões, eles alertam: “Sim, é muito bacana que as pessoas saiam às ruas e protestem contra tudo o que elas julgam – e está – errado. É importante que a classe política se sinta ameaçada, mas há limites. Destruir a prefeitura de São Paulo? Tacar fogo no Itamaraty? E essa, de querer cancelar a Copa? Por que o povão não se manifestou contra ela antes? Agora, acham que as empreiteiras responsáveis pelos estádios vão pegar o dinheiro que receberam e distribuir para os pobres? Que vão construir hospitais e escolas, para se desculpar pelo superfaturamento das obras? E o pedido de impeachment para a presidente, tem base em quê? Não que precise, né? O povo simplesmente entra lá e expulsa ela e sua corja. Aí a oposição assume e faz tudo diferente, porque eles são santos de moral ilibada. Ah, não? Então, voltam os militares, para botar ordem nessa joça. Na época deles é que era bom. Partido político é tudo farinha do mesmo saco, tudo um bando de ladrão, então para que partido? Democracia? A gente vive numa, e tá tudo uma merda, mesmo.” Eu e meus neurônios corredores concluímos que o melhor é nos afastarmos das manifestações, onde falta foco e sobra oportunismo. Meu ceticismo de antes voltou. Não vou me unir a nenhum protesto que empunhe bandeiras que não apoio, que defenda simplismos extremistas – inocentes ou belicosos, mas todos nocivos – como solução para o que quer que seja. 
No fim da corrida de sexta passada, cheguei em casa com novas opiniões e um novo personagem para uma tirinha de quadrinhos (coisa que tinha vontade de fazer há um tempão): o Homem de Bem. Temente a Deus, defensor dos valores familiares e da moral, ele tem saudade dos militares, acha que casamento só se for entre pessoas de sexos diferentes e que bandido bom é bandido morto. Uma flor de candura. Como ele, deve haver muitos entre os manifestantes. E, se não exatamente como ele, partilhando de muitos de seus pensamentos.

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