quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Consciência Bronzeada


Muitas pessoas têm a falsa impressão de que, quando se está desempregado, todo dia é feriado. Os disponíveis no mercado, os entre-empregos, os que estão analisando propostas, os (coloque aqui seu eufemismo preferido) sem dúvida têm mais folgas que a média. Porém, com as contas ignorando o fato de que não há mais salário para pagá-las, os dias sem trabalho não são exatamente datas comemorativas. Mas nem por isso nós, pessoas à procura de novos horizontes, deixamos de festejar os feriados de fato, fugazes momentos de igualdade em que todos são vagabundos, e os leitores dos classificados de emprego podem deixar de lado a culpa por, temporariamente, não contribuir para o progresso da nossa Gloriosa Nação. Cujos governantes, ao que parece, devem ter se dado conta desse fato. Já se perguntou por que, no Brasil, onde os feriados não são poucos, a cada dia surge um novo? Diante da impossibilidade de gerar vagas suficientes para os milhares que disputam subempregos à tapa (não, ainda não estou entre eles), o Estado resolveu ajuda-los a esquecer sua incomoda condição, momentaneamente que seja. Panis et circenses repaginado, nessas datas, não faltam grandiosos shows, na Paulista, no centro, nas periferias. Não tenha dúvida: nas platéias, nós somos a maioria -- o "nós" aqui é puramente solidário; Grupo Revelação, KLB ou Jeito Moleque não fazem parte das minhas preferências.

Uma boa técnica para disfarçar as reais intenções por trás dos novos feriados é escolher algo nobre para celebrar. Pode ser uma batalha antiga em que se defenderam interesses vitais para a construção do nosso Grande País. O que é enforcar um diazinho de trabalho em memória dos que morreram por nós? Aqui o governo pode utilizar de uma incompetência para maquiar outra: como ninguém estudou a Revolução de 1932, nem sabe do que se trata, não vai se espantar se, de repente, surgir um feriado dedicado a ela, como aconteceu há poucos anos aqui em São Paulo. Como o Brasil (felizmente) não tem muitas guerras no currículo, a fonte é escassa. Novamente se aproveitando da precariedade do ensino, poderiam tranquilamente inventar mais um remoto conflito que pouca gente chiaria, mas não é necessário queimar esse cartucho. Perdendo terreno em todo o mundo, o Vaticano está doido para manter sua superioridade no país, e não tarda a canonizar uns quinze santos brasileiros; todos, claro, passíveis de feriado. Ainda assim, o processo de canonização, mesmo feito de forma "express", pode levar anos. Mas isso também não chega a ser um problema: para a sorte dos manda-chuvas, tá assim de causas pelas quais vale passar o dia tomando cerveja, todas insuspeitas. O novíssimo Dia da Consciência Negra (desde já forte concorrente ao título de feriado com o nome mais pomposo) é um excelente exemplo.

Quem questiona as injustiças a que o povo negro foi submetido ao longo dos anos? No maior país escravista da história e, consequentemente, um dos maiores países negros do mundo, os pretos (desculpem, amigos, acho essa coisa de "afro-descentes" muito babaca) sempre foram, a partir da sua libertação, cidadãos de segunda classe, competindo em desigualdade por tudo: emprego, escola, respeito. Leis são criadas e alteradas a cada dia para coibir abusos discriminatórios, mas eles ainda são frequentes. (Prepare-se: vai ser a milionésima vez que você vai ouvir ler a próxima frase.) No Brasil, o preconceito racial é velado. Uma cretinice incrustada de tal forma no inconsciente coletivo nacional que não é difícil notar preconceito inclusive de negros para consigo mesmo, encerrado, por exemplo, na auto-definição de alguém negro como "moreno". Também é comum ouvir pessoas mestiças (leia-se quase todo mundo por aqui) refutarem uma ascendência que, como diz o samba, o cabelo não nega. Acho interessante a preocupação da atual administração em fazer justiça à população negra -- como já foi dito, um gigantesco percentual da massa brasileira --, mas acho que, como quase todos os assuntos, não tratam este da forma adequada. As quotas universitárias, se levassem em consideração a pobreza ao invés da etnia, seriam logicamente mais justas, favorecendo a todos os que delas de fato necessitassem, brancos, negros, índios, mamelucos, cafuzos e pardos. Ou só existem pobres negros? Claro, o incremento no já criticado ensino público de base traria resultados mais efetivos nesse caso, mas... Há também um ministério (ou uma secretaria, ou um ministério que deveria ser uma secretaria) teoricamente criado para promover a igualdade racial. Pois bem, entregaram a pasta para uma racista descontrolada, cujas declarações, ridículas se vindas de alguém num boteco, são absolutamente inaceitáveis para uma ministra de Estado. Faz tempo que não ouço falar da moça, cujo caso deve ter sido abafado. (Não seriam loucos de demiti-la: imagina o processo.)

Apesar de ter algumas restrições quanto à criação excessiva de feriados, acho importante termos datas em que determinados temas recebam maior atenção -- obviamente, o preconceito racial não pode ser dabatido e combatido somente no Dia da Consciência Negra. Seguindo a mesma linha de manifestação da auto-estima de uma minoria, não ficarei espantado se o Dia do Orgulho Gay for, em breve, um desses numerozinhos em vermelho (ou, quem sabe, até em pink) no calendário. A aprovação desse feriado no congresso vai ser um pouco mais polêmica, mas não duvido que aconteça. E, quando acontecer, que aprovem uma data próxima a outro feriado, como é o caso deste e o clássico 15 de Novembro. Assim, com as pontes, quem está fora do mercado de trabalho e quem está dentro dele podem passar mais dias em feliz comunhão. E eu, seja em qual dos dois grupos estiver, poderei ficar mais tempo na praia, como fiz agora. Aliás, esse feriado serviu para tornar-me ainda mais solidário à causa negra. Nunca estive tão negão.

2 comentários:

Cléu Sampaio disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Leandro Leal disse...

Pois é. E, como os fãs de Los Hermanos, eles também são uns tremendos chatos.

Beijo