terça-feira, 13 de novembro de 2007

Quem vai ficar com Morrissey?




Os livros, cada um levou os seus: era fácil saber o que era de quem, e não só pelos nomes escritos na primeira página -- Isabel tinha um gosto secreto por "Sabrina" que Luiz Carlos, embora entendesse ("ok, todos têm seu lado gentalha"), jamais compartilharia. Os móveis, concordaram que ela ficaria com todos: afinal, na casa da mãe, onde ficaria por um tempo, ele não precisaria de nada -- o fato de ter sido ela quem comprara todos era só um detalhe. A samambaia também podia ficar com ela: o único verde que lhe interessava era o do Parque Antártica. Enfim, a divisão das coisas, estatisticamente a maior fonte de brigas entre ex-casais, parecia que ia deixar este na menor fatia dos gráficos pizza. Pelos menos, assim pensava Isabel até atender a campainha naquela tarde de sábado.

"Quem vai ficar com o Morrissey?", disse com tom grave o Luiz, vestindo a camiseta do "Meat Is Murder". (E não que estivesse especialmente vestido para a ocasião; aquele soldado da capa do disco estava para ele como a marca na cabeça para o Gorbachev -- os amigos quase não o reconheciam sem ele.) Tentando ignorar as cervejas a mais que pareciam ter trazido o rapaz até sua casa, Isabel articulou uma resposta à altura da pergunta do ex: "Hein?" Como a estampa da sua camiseta sugeria, ele estava pronto para a guerra."Vim discutir numa boa, mas saiba que estou disposto a envolver meu advogado." Por "meu advogado", ela entendia o Peçanha, um bebum que, junto com o Luiz, a forçava a sair de casa toda vez que passava jogo do Palmeiras na TV, incapaz de defender sequer a teoria de que a Terra é redonda.

"Você ficou com o Morrissey, Luiz. Você levou todos os seus discos, lembra?" -- a palavra "discos" dita com o desprezo de quem não entendia como alguém, em tempos de iPod, podia ainda comprar LPs. Que levasse aquela tralha: todas as bandas de que também gostava, Smiths e Morrissey solo incluídos, ela já tinha baixado na internet há tempos. "Não vem dar uma de espertinha, Isabel. Você sabe bem o que quero dizer.", mantendo o tom grave que só os bêbados sabem ter. "Se você insistir, posso chamar o meu advogado para ver o que ele tem a dizer". Ele sabia que botões apertar: o medo de ter o inconveniente Peçanha mexendo na sua geladeira à procura de cerveja a fez (fingir) levar a sério aquelas baboseiras. "Entra, vai".

Luiz Carlos entrou, sentou e encarou Isabel de modo tão sério que alguém que ali entrasse e soubesse que tinham se separando imaginaria que ele ia pedir a guarda do filho (que eles não tinham). Mas, para ele, era bem mais importante que isso. Levar uma criança tonta ao zoológico nem se comparava a escutar o Bardo de Manchester.

- O quê? Você não quer que eu escute mais o Morrissey?
- Não apenas o Morrissey solo. Smiths também.
- Mas isso é um absurdo!
- Absurdo seria os dois continuarem escutando. Já pensou eu lá, escutando "Well I Wonder" na maior dor de cotovelo, imaginando que você, no mesmo momento, poderia estar ouvindo a mesma música abraçadinha com algum babaca? Sem chance. Ou, então, eu, numa baita deprê ao som de "Suedehead", enquanto você dança e cantarola "I'm soooo sorry"? (Não entendia como as pessoas dançavam aquela canção, que, a despeito da melodia animada, ele achava triste pacas.)
- Mas... mas...
- Olha, pra você não dizer que eu tô sendo injusto, vamos fazer assim; eu te faço duas perguntinhas básicas sobre o Morrissey. Se você responder corretamente, eu abro mão de escutar meu cantor e minha banda preferidos. Fechado?

Ao terminar de propor o desafio, um ponta de arrependimento espetou Luiz, como o espinho que incomodava o garoto numa das faixas mais famosa do "The Queen Is Dead" ("The Boy With The Thorn In His Side", burrão). Mas, em seguida, acalmou-se: a Isabel jamais saberia que peça de teatro obscura tinha inspirado os versos de "Reel Around The Fountain", ou então qual é a banda preferida do topetudo ("e olha que essa é nível iniciante"). E a Isabel, de fato, não soube responder as perguntas. Derrotada, ela apagou todos os MP3s do computador, sob o olhar atento do ex-namorado, que a obrigou a assinar um termo se comprometendo a não baixa-los novamente.

- Pô, Luiz, depois de tanto tempo junto, você me vem com uma dessas?
- Pára de reclamar. Você aceitou o desafio. Além do mais, eu deixei você ficar com os móveis, esqueceu?
- Eu já tinha eles quando a gente se conheceu, "esqueceu"? (Na verdade, ele tinha se esquecido mesmo, e se achava magnânimo por tê-la deixado ficar com os móveis que ela mesma tinha comprado.)
- Pois então, eu também já tinha o Morrissey quando a gente se conheceu. Aliás, eu tenho o Morrissey há muito mais tempo. Enquanto você comprava a trilha sonora de "Top Model" -- que, aliás, até que tem seu valor; "Stay", do Oingo Boingo, é bem decente --, eu já tinha o vinil do "Viva Hate".
- Nhé.

Vitorioso, e ainda bêbado, Luiz saiu em direção à casa do Peçanha. Precisava saber se aquele pedaço de papel-toalha assinado pela Isabel teria alguma validade legal. Podiam discutir isso no intervalo do jogo do Verdão.

8 comentários:

Nat disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Excelente texto, Leandra! Mandou muito bem!

Buchabick disse...

Muito bom, Le.

Anônimo disse...

muito bom mesmo, lê!

Costela disse...

Também gostei, Gegê. Boa

Leandro Leal disse...

Brigados, amigos.
Viram como o blog tá mais bonitinho, com todas essas imagenzinhas batutas que eu coloquei? (O que não é o desemprego, hein?)

ju leal disse...

hey, ócio! veha para mais uma rodade de domingo até às 2h da madruga! e traga o Morrissey, ok?

ju leal disse...

ah, mais um detalhe.... e essas figurinhas tão ilustrativas, pra mim o Leôncio (?) foi o melhor, só falta pegar emprestado os caninos de vampiro com o Cezinha que vixe.... uhauhaua