Ando de transporte coletivo com certa
frequência. (Com quase igual regularidade, faço menção a este hábito nos meus
textos, mas isso não vem ao caso.) O que leio durante essas viagens não são
apenas os livros, revistas e ocasionais mensagens de texto no celular. Reparo
bastante nas pessoas com quem divido os vagões, em como se vestem, se portam,
no que falam e como falam. Olho para os outros tentando enxergam a literatura
que há dentro de cada um. Algumas histórias estão ali, acontecendo na minha
frente, caso de uma discussão de casal. Outras ficam por conta da imaginação,
que se encarrega de criá-las com base nos elementos apresentados.
“O olhar inquieto e o suor que lhe
escorria pela testa entregavam sua tensão. A razão do nervosismo, porém, era
menos evidente. Luiz estava prestes a cometer seu primeiro crime. Não fora uma
decisão fácil. Ele se confortava com o pensamento de que não havia sido sequer
tomada por ele. A culpa era, sim, da sociedade. Tivesse ela lhe dado um emprego,
ele não veria seus filhos passando fome, não precisaria chegar àquele extremo.”
A motivação do meu personagem não era a
mais original, reconheço, mas foi esse clichê o que vi nos seus olhos ontem, na
volta para casa, quando entrou no vagão carregando uma mochila. (Como ele,
muitos portavam mochilas, mas, talvez justamente pelo olhar, um tanto inquieto,
o escolhi para protagonizar o meu enredo.) Seria a exclusão social o que o
faria abrir o zíper da bolsa e dela puxar uma arma. Com a mão trêmula dos
criminosos iniciantes, a empunharia, ordenando a todos que lhe passassem
carteiras e celulares. Trem lotado, haveria pânico. Os gritos o fariam perder o
pouco controle. O dedo trêmulo inevitavelmente apertaria o gatilho, a bala
atingiria uma criança no colo do pai, e sua curta vida terminaria antes mesmo
de começar. O assassino incidental ficaria desnorteado por um momento, incapaz
de nada além de se arrepender por ter matado um menino que parecia um dos seus
próprios, o caçula. Algum herói (também incidental) se aproveitaria da
estupefação do pobre-diabo e o renderia. Desarmado e ainda desnorteado, não
oferecia resistência ao clamor da turba por justiça. Iniciaria-se o linchamento
e, quando por fim a multidão estivesse saciada, o quase-ladrão estaria morto. O
trem seria parado em caráter emergencial, para a retirada do corpo do pai que
deixaria órfãos três filhos — inclusive aquele muito parecido com garotinho que
assassinara. Nenhuma responsabilidade seria apurada legalmente, embora alguns
sociólogos e jornalistas esquerdistas identificassem no crime de que Luiz fora
vítima a mesma mandante daquele que o próprio havia cometido. Para eles, Luiz era
o que ele mesmo acreditava ser, mais uma vítima da sociedade.
Quando o sujeito de fato abriu a mochila e
enfiou a mão dentro dela, um arrepio me subiu o pescoço. Não, não podia ser
verdade. Minha imaginação não tinha todo aquele poder. Algo que escrevi já deve
ter influenciado alguém, mas não àquele ponto, não sem sequer ter sido escrito,
sem ter ao menos saído da minha cabeça. Era um poder transcendental que eu não
tinha, do qual eu não queria me descobrir possuidor. Não ali, não naquela
situação.
“Olha o chocolate Batom! O mais puro
chocolate ao leite! Três por dois!”
Foi o que ele gritou, ameaçando no máximo
meu sossego. O massacre dos meus tímpanos, no entanto, era nada comparado ao
imaginado por mim. Fiquei feliz por minha história não ter se tornado
realidade. Não é o tipo de coisa que gosto de escrever. Muito lugar-comum,
muito mundo cão.
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