domingo, 1 de março de 2015

Literatura ferroviária

Ando de transporte coletivo com certa frequência. (Com quase igual regularidade, faço menção a este hábito nos meus textos, mas isso não vem ao caso.) O que leio durante essas viagens não são apenas os livros, revistas e ocasionais mensagens de texto no celular. Reparo bastante nas pessoas com quem divido os vagões, em como se vestem, se portam, no que falam e como falam. Olho para os outros tentando enxergam a literatura que há dentro de cada um. Algumas histórias estão ali, acontecendo na minha frente, caso de uma discussão de casal. Outras ficam por conta da imaginação, que se encarrega de criá-las com base nos elementos apresentados.

“O olhar inquieto e o suor que lhe escorria pela testa entregavam sua tensão. A razão do nervosismo, porém, era menos evidente. Luiz estava prestes a cometer seu primeiro crime. Não fora uma decisão fácil. Ele se confortava com o pensamento de que não havia sido sequer tomada por ele. A culpa era, sim, da sociedade. Tivesse ela lhe dado um emprego, ele não veria seus filhos passando fome, não precisaria chegar àquele extremo.”

A motivação do meu personagem não era a mais original, reconheço, mas foi esse clichê o que vi nos seus olhos ontem, na volta para casa, quando entrou no vagão carregando uma mochila. (Como ele, muitos portavam mochilas, mas, talvez justamente pelo olhar, um tanto inquieto, o escolhi para protagonizar o meu enredo.) Seria a exclusão social o que o faria abrir o zíper da bolsa e dela puxar uma arma. Com a mão trêmula dos criminosos iniciantes, a empunharia, ordenando a todos que lhe passassem carteiras e celulares. Trem lotado, haveria pânico. Os gritos o fariam perder o pouco controle. O dedo trêmulo inevitavelmente apertaria o gatilho, a bala atingiria uma criança no colo do pai, e sua curta vida terminaria antes mesmo de começar. O assassino incidental ficaria desnorteado por um momento, incapaz de nada além de se arrepender por ter matado um menino que parecia um dos seus próprios, o caçula. Algum herói (também incidental) se aproveitaria da estupefação do pobre-diabo e o renderia. Desarmado e ainda desnorteado, não oferecia resistência ao clamor da turba por justiça. Iniciaria-se o linchamento e, quando por fim a multidão estivesse saciada, o quase-ladrão estaria morto. O trem seria parado em caráter emergencial, para a retirada do corpo do pai que deixaria órfãos três filhos — inclusive aquele muito parecido com garotinho que assassinara. Nenhuma responsabilidade seria apurada legalmente, embora alguns sociólogos e jornalistas esquerdistas identificassem no crime de que Luiz fora vítima a mesma mandante daquele que o próprio havia cometido. Para eles, Luiz era o que ele mesmo acreditava ser, mais uma vítima da sociedade.

Quando o sujeito de fato abriu a mochila e enfiou a mão dentro dela, um arrepio me subiu o pescoço. Não, não podia ser verdade. Minha imaginação não tinha todo aquele poder. Algo que escrevi já deve ter influenciado alguém, mas não àquele ponto, não sem sequer ter sido escrito, sem ter ao menos saído da minha cabeça. Era um poder transcendental que eu não tinha, do qual eu não queria me descobrir possuidor. Não ali, não naquela situação.

“Olha o chocolate Batom! O mais puro chocolate ao leite! Três por dois!”


Foi o que ele gritou, ameaçando no máximo meu sossego. O massacre dos meus tímpanos, no entanto, era nada comparado ao imaginado por mim. Fiquei feliz por minha história não ter se tornado realidade. Não é o tipo de coisa que gosto de escrever. Muito lugar-comum, muito mundo cão.  

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