Por onde se vá, você vê gente praticando esse esporte. Raros, porém, são
os casos de talento natural – a maioria de pernas pau joga por e com paixão.
Mesmo quem não leva jeito para a coisa se vê no direito de brincar, e aí é que
está a graça da modalidade, democrática como poucas. Para participar, não é
preciso muito – nem informação, nem discernimento –, basta uma conexão de
internet. O esporte chama-se “emitir opinião” e é popular nos Estados Unidos há
muito mais tempo do que o segundo esporte mais praticado por aqui.
Se os campinhos de terra estão desaparecendo do panorama urbano, o mesmo
dificilmente acontecerá às redes sociais, que, nesse particular, funcionam de
forma cíclica. O tema da vez, não podia ser diferente, é o futebol. A Copa que
acontece por estas bandas parece ter entregado a todos, mesmo àqueles nada
afeitos ao jogo, diplomas de especialistas no assunto. Nesse capítulo, a
subdivisão “falta que tirou Neymar da Copa” está bastante em voga. Todos têm
algo a dizer sobre a “entrada criminosa” – como se diz no jargão futebolístico
–, e milhões de brasileiros – mesmo os que acabaram de ser apresentados ao
termo –, compartilham da mesma opinião. Muitas vezes, o fazem de modo literal,
reproduzindo links de matérias e atualizações de status e tweets de formadores
e (com o perdão do trocadilho) deformadores de opinião. Entre os que emitem seu
parecer sobre o caso, há aquela sub-raça hidrofóbica que é geralmente vista nos
comentários de sites noticiosos. Essa escumalha se vale do anonimato digital
para fazer ofensas racistas e ameaças de morte ao zagueiro colombiano Zúñiga e
até – puta que o pariu – dizer que a pequena filha do jogador merecia ser
estuprada. Eu, que não sou pai mas tenho sobrinha bebê, fico arrepiado só de pensar
em tamanha atrocidade.
Na noite de ontem, troquei algumas mensagens com um amigo colombiano –
pessoa que respeito e de quem gosto – sobre o tema. Abalado com as ameaças
feitas ao compatriota – das quais eu ainda não sabia –, ele, que mora por aqui,
não hesitou em taxar a todos nós, brasileiros, como uma massa de ignorantes. Daí
a responsabilizar a Dilma por isso, foi um pulo. Diante da minha constatação de
que ela não pode ser culpada por um estado de coisas que vem de muitíssimo
antes de sua gestão, ele sacou outra generalidade, dessas “opiniões” que lemos
diariamente em espaços digitais: somente um povo ignorante como o nosso para
eleger uma presidente como a que temos. Eu disse que, da mesma forma que ele
havia me explicado detalhadamente a questão das FARC, se quisesse, eu poderia
falar-lhe a respeito da política local – dando a entender que ele, em menos de
um ano no Brasil, não tinha como conhecê-la em profundidade. Sua mensagem
seguinte retribuiu minha proposta com outra, para falarmos de “violência real”,
e foi então que soube pela primeira vez da ameaça de estupro à filhinha do
jogador colombiano. Ainda tentei argumentar que esse absurdo não era suficiente
para emitir um parecer tão negativo quanto a todo um povo, mas o “vai tomar no
cu” que li em seguida acabou com
toda a conversa e, possivelmente, com a nossa amizade.
A Colômbia atravessa um momento político histórico, quando se negocia a
trégua com as facções criminosas que há décadas sitiaram o país. As últimas
eleições definiram a manutenção do presidente Juan Manuel Santos, que deu
início às negociações e elegeu o tema como bandeira. É um país em busca de uma
saída. Fora do seu país ou ao acessar as redes sociais, os colombianos têm que conviver com estereótipos
travestidos de piadas, envolvendo consumo de cocaína, assassinatos e sequestros
– e, pior do que as piadas, têm que conviver com a inspiração delas, a triste e
infeliz realidade, que tem sido remediada ao longo dos anos. Pelo contato que
tive com esse amigo colombiano, pude perceber o quanto a campanha da seleção do
país é importante para o resgate da auto estima do pessoal de lá. Tão
apaixonados por futebol quanto nós, não participavam de uma Copa desde
1998, e não estavam apenas participando desta. Tinham o artilheiro e um dos
melhores jogadores do torneio, James Rodríguez (que, ao lado de David Luiz,
protagonizou uma cena extremamente oposta à de Neymar e Zúñiga: nosso zagueiro
o vê chorando ao fim do jogo e o consola, em mais um momento – positivamente –
memorável da competição), tinham o jogador mais velho a já atuar numa partida
de Copa, o goleiro Mondragon, de 43 anos. Tinham um belo time.
De certa forma, entendo a reação excessiva do meu (ex?) amigo e a defesa
que fez de Zúñiga – que ele insistia em afirmar não ter agido de propósito –
como a defesa não apenas do zagueiro ou da seleção daquele país, mas de toda a
Colômbia. Mas não admito o “vai tomar no cu”, no meio de uma conversa que eu julgava
civilizada – ainda mais por Whatsapp, mídia que permite pensar bem e desdizer o
que se disse antes de fato dizer. Assim, meu amigo colombiano se iguala aos
outros ignorantes a quem tão duramente criticou, que, ao ver as barbaridades
escritas por eles mesmos sobre e para Zúñiga, também poderiam apagá-las antes
de postar. Falta bom senso aos comentaristas de redes sociais, sem dúvida. Mas
ter que lidar com eles praticando o esporte mais popular do país é um pequeníssimo
preço a se pagar pela democracia. Espero que a modalidade se popularize ainda
mais, mas que isso seja acompanhado também do entendimento pleno de suas
regras. A maioria dos praticantes joga o tempo todo em posição de impedimento.
Nenhum comentário:
Postar um comentário