terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Gene Kelly, São Paulo e yada-yada-yada


Se morasse em São Paulo, duvido que Gene Kelly ia achar tanta graça na chuva. Dançar entre os pingos, então, fora de cogitação. (Esta, aliás, é das coisas que mais me incomodam nos musicais. Na vida real, ninguém começa a dançar sem motivo aparente. E, se começasse, jamais seria acompanhado por quem estivesse passando. Que o diga o “doidinho”, figura recorrente em toda cidade do interior, não à toa chamado de “doidinho”. Começar a cantar no meio de uma conversa também é estranho, mas, adepto da prática, não tenho muita moral para criticá-la.) São Paulo vira o inferno quando chove.

Diferentemente dos sertanejos de quem descendo, não considero a chuva uma “benção dos céus”. Que ela vem do céu é certo, que Deus tem alguma coisa a ver com ela é provável, já que é bem-vinda é discutível. Não que a lembrança dos anos em que vivi no Agreste, onde as nuvens negras estão longe de significar mau agouro, tenha se apagado. Acontece que, como fez com meus namoricos da época, a volta para São Paulo acabou também com essa paixão. Igualzinho ao telefonema de uma namorada de quem você não quer mais saber, que sua mãe atende e você manda dizer que não está, os trovões e relâmpagos me enchem o saco. Pena que os avisos de chegada das tempestades não passem de formalidade: elas vêm, queira você ou não.

Não discuto a importância da chuva para o ciclo da vida, desde a irrigação de lavouras e abastecimentos de mananciais a yada-yada-yada. Em São Paulo, a chuva também tem seu lado positivo, mas, imaginando o cenário pluviométrico da cidade como um pastel de vento, ele corresponderia ao recheio, enquanto a parte chata equivaleria à massa. (Não estou falando mal da massa, eu até gosto dela. A questão é de simples proporcionalidade.) Se reduzem os riscos de racionamento, de água e energia, as chuvaradas de verão deixam milhares de desabrigados, causam congestionamentos e, a maior das sacanagens, acabam com os churrascos e viagens à praia nos fins de semana. Não é muita massa para pouco recheio?

Em tese, continuo achando a chuva poética, romântica, bucólica e, por que não dizer, yada-yada-yada. É gostoso dormir com o sonzinho dos pingos tamborilando na janela ou “ler um bom livro” tendo a mesma trilha sonora. Mas é só ter de sair de casa que a coisa (ou a chuva) engrossa. Pegar o carro debaixo d’água significa, além de ter de encarar o trânsito anabolizado de que já falei, redobrar a atenção e, se possível, a paciência. Não raro, o babaca do carro de trás se distrai e bate no seu – culpa também dos freios, invariavelmente gastos, que ficam mais ainda mais deficientes. Não raro, devido a acidentes como esse, o congestionamento fica ainda pior.

A chuva também é impiedosa com quem não dirige. Além de atrasar ônibus e tornar impossível qualquer tentativa de pegar táxi – que, segundo uma lei universal bizarra e incontestável, nunca aparecem quando chove –, submete os pobres pedestres a seguidos banhos. Não bastasse ser alvo das gotas vindas de cima, os transeuntes também são atingidos pela água das poças por onde passam os carros. Andando pelas ruas de São Paulo, além de correr esse risco, você vê uma enorme quantidade de buracos e depressões, potenciais reservatórios daquela água preta nojenta, e descobre porque na cidade há uma lavanderia a cada rua. Seus donos, por sinal, devem ser os únicos que gostam de chuva por aqui.

Hoje de manhã, mais uma vez a chuva pôs à prova minha paciência. Trânsito e motoristas comportavam-se como sempre fazem em dias de tempo ruim – e o tempo, como tudo que é ruim, sempre pode piorar. Não tendo paciência monástica (não tendo nada monástico, aliás), eu começava a ficar puto. Mas aí, talvez atraído pela chuva que tanto anseia, o Nordeste que deixei para trás veio em meu auxílio. Moraes Moreira cantava sobre ser confundido com Alceu Valença na divertida “Pernambuco É Brasil”. Aí entendi porque Gene Kelly gostava tanto da chuva: com música, fica fácil. Mas nem por isso, desci do carro e comecei a dançar. Isso eu ainda não consegui entender.

4 comentários:

Cris disse...

Até gostei da inversão,tadinha da chuva, ue as vezes é tão pouca pra tanto consumo de água!Bem disse, para ohomem do campo ela ésanta etambém para o dançarino, já que no contexto, na dança, na paixão, até vale se molhar na chuva. Agora, você bem disse, nacidade tudo é excesso e aí a chuvanão é abençoada. Excesso decarros,execesso de compromissos com o relógio, excessos que nos deixam meio que cegos pra poesia, do ciclo da vida.Enfim tudo agora émeio inversão, quando se deve chover, faz um sol danado, quando deve ter sol, chove que é uma beleza...

Leandro Leal disse...

Cris: Não sei se você mora em São Paulo. Se mora, sabe como esta cidade é. Além de ter um tempo imprevisível e mau-humorado, que todo mundo (até quem não é daqui) conhece, a cidade tem problemas infra-estruturais que só agravam os efeitos das chuvas, até as nem tão fortes. Começa a chover e já se veêm na televisão imagens de inundações (com a recorrente cena do cara ilhado em cima do carro), de gente chorando, porque perdeu tudo em casa... Isso, sem contar o fato de sempre ter que carregar um guarda-chuva (não que eu carregue). Ainda assim, não me ceguei à poesia deste lugarejo (no fim, é o que toda cidade, grande ou pequena, é: um lugarejo). Gosto de São Paulo e fico meio puto com quem vive metendo o pau nela. O problema é que ela, com frequência, parece nos dizer para desencanar dela. Mas ainda não desistí.

Cris disse...

Pois é, sou da qui sim,amo essa cidade, mas tenho consciência do tanto que ela está se inchando, de gente, de carros, sofre com a falta de transporte público adequado e as nossas ruas se enchendo de tanto carro. Mas é que seu texto me deu a impressão que a culpada dos transtorno é somente a chuvinha. Aqui ainda tem coisa boa pra gente desistir dessa cidade,

ju leal disse...

just dancing and singing in the rain, man!