quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Jornalistas filhos da puta, pautas e a ameaça não cumprida de um trocadilho

"Jornalista é tudo filho da puta", disse o taxista, sem saber que os passageiros, meus amigos, eram todos justamente representantes dessa classe. "Menos jornalista esportivo, né?", o Costela tentava salvar pelo menos a reputação do seu caderno. "Principalmente jornalista esportivo", sublinhou o tiozinho, para não deixar dúvidas quanto ao seu ponto de vista. O silêncio que se seguiu não foi quebrado nem pelo contumaz agradecimento ao fim da corrida. Curiosamente, também não rolou gorjeta.

Mesmo tendo muitos periodistas no meu ciclo de amizades, concordo com o motorista -- algum engraçadinho dirá que é exatamente por isso. A minha opinião nada tem a ver com o fato da imprensa, no geral, ser tendenciosa e servir a interesses corporativos e políticos, em detrimento da verdade. (Até porque, que moral teria eu, publicitário, para falar de profissionais vendidos?) A razão por que assino em baixo da contundente declaração do chofer é outra. É que a criatividade não parece ser pré-requisito para se trabalhar com jornalismo -- aquele mesmo engraçadinho dirá que nem com publicidade. É ridícula a quantidade de reedições das mesmas matérias a que somos submetidos sistematicamente. A escassez de pautas é uma calamidade pública. Causa gastrites, causa trânsito e, o mais grave, causa um tédio do caralho.

Chega o fim do ano e eu, caminhando para o décimo aniversário da minha formatura, ainda morro de medo do vestibular. Serei forçado a ver milhões de matérias referentes ao tema, em todos os canais de televisão e na maioria dos jornais e revistas. Como um remake de "Laranja Mecânica", vou ser torturado por uma infindável sequência de depoimentos chatos de adolescentes idem, falando sobre o nervosismo que antecede o teste -- tudo num português sofrível, matéria que deveria reprovar todos. Na sequência, especialistas também não muito brilhantes darão conselhos óbvios, rigorosamente os mesmos do tempo em que eu era vestibulando. Pedem calma e tranquilidade aos jovens, e eu, já deixando de ser um deles, não consigo seguir a recomendação e quase quebro a TV.

E o recheio do sanduíche de mortadela do Mercado Municipal? Qualquer um que possua uma televisão ou já tenha passado em frente a uma vitrine das Casas Bahia sabe que ele é mais generoso que a Madre Teresa de Calcutá -- até porque há quem diga que ela nem era tão generosa assim. Não entendo a necessidade de, semanalmente, algum veículo fazer uma matéria sobre as delícias do Mercadão. Domingo desses, tá lá você folheando o recém-comprado jornal quando é surpreendido ("surpreendido" é boa) por uma página inteira sobre a atração turística, ilustrada por apetitosas fotos do sanduba ou do pastel, outro best-seller do local, famoso por conter mais bacalhau do que todo o mar da Noruega. Os clichês que recheiam esses textos têm sua tradução visual na expressão de deleite do repórter televisivo após uma mordida em um dos colesterentos acepipes. De boca cheia, ele diz não ter palavras para falar do sabor. Eu também, para descrever o meu saco, mais recheado que o sanduíche e o pastel, juntos.

Saco cheio, aliás, lembra Papai Noel, que lembra os enfeites de natal nas ruas, cuja cobertura anual pelos canais de televisão me faz voltar ao início da frase. Nas semanas que antecedem o nascimento do Menino, somos premiados por seguidas reportagens mostrando fachadas de casas e prédios comerciais, cheias de luzes e cafonice. Prefeituras, empresas e pessoas comuns não medem esforços para embelezar a cidade. Mas, não importa o quanto se esforcem, não conseguem gerar declarações originais dos cidadãos que saem de casa só para ver os adornos: "Muito lindo, né?" "Ô", respondo eu.

Tem também as matérias sobre a Antártida, figurinhas fáceis dos globos-repórteres da vida, sempre mostrando as mesmas paisagens de quilômetros de neve e tédio. Alternam-se com especiais a respeito dos mecanismos da paixão no cérebro ("como e por que nos apaixonamos") e reportagens sobre os riscos da cirurgia de redução do estômago -- como o sério risco de não conseguir mais comer feijoada. Esses, ao lado de mais meia dúzia de outros temas, ocupam toda a imprensa que não se refira às notícias propriamente ditas. As notícias, por sinal, também não fazem jus ao seu sinônimo: definitivamente, não dá para dizer que a explosão de carros-bomba na Faixa de Gaza ou escândalos de corrupção no governo são "novas". Mas da falta de originalidade da vida, tudo bem, eu isento os jornalistas.

Nesse momento, no meio de tantas vozes imaginárias, ouço protestos de jornalistas. Dizem não ter culpa se o vestibular e o natal se repetem anualmente. Eu digo que têm. Para começar, o vestibular já se mostrou um método de triagem ultrapassado, e já se propuseram inúmeras alternativas a ele, como a avaliação do histórico do aluno. Assim, se o teste continua a ser aplicado, só pode ser por influência das poderosas corporações de comunicação: sem vestibular, o que elas vão colocar no lugar das reportagens sobre o assunto, já previstas nos cronogramas de todos os anos? Quanto ao natal, certo, a culpa por ele propriamente dito não é da imprensa -- um é um pouco mais antigo que a outra --, mas os enfeites pentelhos são. Sem câmeras por perto, duvido que os moradores gastariam tanto dinheiro e tempo para decorar suas casas -- afinal, a gentalha só faz isso para aparecer na TV. Se a mídia não divulgasse essa decoração, não se formariam filas de imbecis em frente às casas e prédios, e o trânsito, já fodido nessa época do ano, seria menos ruim.

E o Mercado Municipal e a Antártida, hein, vozes de jornalistas imaginários? Vão dizer que os pingüins e os sanduíches de mortadela também requerem cobertura assídua? Se não tivesse tanto bafafá em torno do Mercadão, certamente ele não viveria tão cheio de turistas, e eu já teria ido lá -- a maioria das pessoas que me disseram já ter ido lá não mora em São Paulo. Quanto ao continente gelado, deixem os pingüins em paz. O único que conheço que gosta de aparecer na TV é o Pingolino, da Turma do Pica-Pau.

Os jornalistas imaginários não se dão por vencidos. Agora, estão me dizendo que a culpa das pautas é dos editores, não deles, meros subalternos. Alegam que, chegando ao poder, vão sugerir coisas novas. A-ham. Era o que os editores de hoje diziam, quando, como focas, arrotavam sanduíches de mortadela e pastéis de bacalhau. Vai ver, no meio do caminho, o desejo de inovar se transformou em revanchismo, e eles resolveram fazer as novas gerações passarem pelo mesmo, fazendo as mesmas reportagens nauseantes (não só pelo excesso de mortadela e bacalhau).

Junto com as novas levas de periodistas, sofrem também as novas gerações de telespectadores e leitores. E mais ainda as antigas: a tortura se intensifica ano a ano, com a repetição das mesmíssimas matérias. Agora, imaginando que o taxista do começo do texto tivesse uns sessenta, "jornalista é tudo filho da puta", vindo dele, é quase um elogio.

8 comentários:

Anônimo disse...

é muito chato mesmo essa mesmice de notícias. a única coisa que repete toda hora que eu acho legal são as entrevistas que a tammy gretchen faz no programa da Luciana Gimenes. eu nunca consigo mudar de canal quando vejo ela lá.

Leandro Leal disse...

Flávia: Eu mudo rapidinho. Tenho medo da Tammy. Ela é muito mais homem que eu.

Cris disse...

De mesmice a mesmice vai sendo a vida, parece até que morreu a criatividade, mas sei lá, as vezes parece que estamos no "Admirável Mundo Novo"

Leandro Leal disse...

Cris: Se a criatividade não morreu, não tem ido trabalhar faz tempo. Eu, que trabalho com a dita, só vejo um paletó na cadeira dela, há anos.

ju leal disse...

daqui a pouco a criatividade jornalistica que esta desempregada estara tao morena quanto vc! alias, ela ja deve estar zulu...

e me perdoe Sr Dicionario, a falta de acentos e� causada por um virus, e nao pela discrimina�ao com as minhoquinhas e chapeuzinhos em cima de palavras....

beijos

Leandro Leal disse...

Ju: Pelo que eu saiba, a criatividade não frequenta o Chico Mendes. Não nos mesmo horários que eu, pelo menos.Quantos aos acentos, relaxa. Assim é mais legal, mais criativo. (Ei, quem disse que a criatividade tinha morrido?)

Cléu Sampaio disse...

Leandro, sabe que esta semana, cansada da trinca temática de final de ano vestibular-decoração natalina-povo indo às compras eu tava pensando exatamente nisso; outro dia ouvi alguém dizer que não existe piada velha, mas gente velha que já conhece as piadas. E notei como meu sobrinho de 8 anos se divertia com "o elefante caiu na lama". Então já tava "desistida" do jornalismo achando que a culpa era da minha idade. Continuo "desistida", mas agora você ajudou a dividir as responsabilidades :-)
Beijo

Leandro Leal disse...

Cleu: É isso mesmo. Se alguém nunca ouviu uma piada, para essa pessoa, ela é totalmente nova. O mesmo vale para todo o resto, como os livros, os filmes e essas reportagens maletas. Mas será que tudo precisava ser tão repetitivo?
A moral da história é: Se Deus nos criou à sua imagem e semelhança, ele não é muito criativo.