quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Sonhos de Penha de França


Ao descer comigo as velhas escadas de madeira do pequeno prédio, o Fábio proclamou: “você vai levar uma vida de escritor”. A frase de impacto, previsão do que seriam os próximos meses, deve ter-se baseado na relativamente charmosa decadência do lugar para onde acabara de me mudar, parente distante do hotel onde vivia Arturo Bandini, romancista em começo de carreira, nos romances do John Fante. Coincidentemente localizada num morro (o que, em se tratando de Lisboa, não é tanta coincidência), a Penha de França não era nenhuma Bunker Hill, mas demonstrava ser promissora: se havia inspirado a bela frase ao meu visitante, com quantas não me haveria de presentear?

Encarei a declaração do Fabião como uma promessa feita em meu nome, e, mesmo sem ter-lhe dado nenhuma procuração para falar por mim (mesmo que fosse para mim mesmo), não me incomodei em assumir o compromisso. Estava decidido “a levar uma vida de escritor” enquanto estivesse sozinho em Lisboa. Tão logo recebesse meu primeiro ordenado, iria à Fnac comprar um notebook e escreveria, escreveria, escreveria. Uma teoria diz que, batendo à máquina por tempo indefinido, existe a possibilidade de um chimpanzé transcrever as obras completas de Shakespeare. Eu, com menos pêlo e um pouco adiante na escala evolutiva, deveria ter alguma chance de escrever algo decente. E as minhas pretensões eram bem mais modestas que as do macaco.

Comecei a trabalhar, me pagaram. Gastei com o aluguel, gastei com comida. Bandini era um exemplo, mas até certo ponto: não pretendia viver a fugir da senhoria e a alimentar-me apenas de laranjas como ele. Não sobrou para o notebook; nem meu salário integral chegaria. Recebi de novo e, mesmo juntando os rendimentos, o notebook continuava caro. Parecia que, para comprar a máquina, só se aderisse às táticas de fuga e à dieta riquíssima em Vitamina C do alter ego de Fante. Meus joelhos não são mais os mesmos, meu gosto por frutas cítricas não chega a tanto, desisti. Do computador, não de um notebook: adquiri um Moleskine, caderninho metido à besta que traz, na capa de couro, um aviso dizendo ter sido o preferido de gente como Picasso e Hemmingway. Intimidado, até hoje não tive coragem de tirar o plástico da caderneta. Marketing sádico esse. Um aspirante (a escritor ou a qualquer coisa) já é suficientemente inseguro sem saber que as páginas onde pretende rabiscar descendem daquelas em que foi escrito “O Velho E O Mar”.

Mesmo não tendo comprado um notebook nem tocado o outro, escrevi algumas coisas, como atestam este blog e o Morfina, o outro site onde colaboro. A quantidade de material repetido nos dois endereços mostra que não produzi o quanto gostaria: pretendia ter uns sessenta textos até a volta ao Brasil, e não cheguei a um terço. Querendo atingir o objetivo, tenho pouco mais de quinze dias. O diabo é que, se terei mais tempo livre por não trabalhar nesse período, não terei um computador à mão pelo mesmo motivo. Cumprindo a meta ou não, minha “vida de escritor” acaba antes da estadia em Portugal. Daqui a uma semana, deixo o quarto na Penha de França e volto a incomodar meus amigos até a data do vôo.

Sentirei falta do lugar, apesar das baratas – que, aliás, ajudam a compor a atmosfera. Mas, principalmente, vou sentir saudade de chegar lá, sentar ao computador e escrever até a manhã do dia seguinte. Só faltou isso para a Penha de França se tornar Bunker Hill.

Nenhum comentário: