Esta foto, claro, não é de ontem. |
Você vai ao estádio assistir a um jogo do seu time e, por engano, acaba no setor reservado à torcida adversária. Você olha ao redor, percebe o erro, pensa em sair dali e procurar sua torcida, mas não tem jeito: o seu ingresso é para aquele espaço mesmo. Claro, não é a mesma coisa que ver o jogo com seus torcedores — afinal ninguém canta o hino do seu time, ninguém torce quando ele faz gol e você ainda corre o risco de apanhar —, mas você vai ter que se contentar.
Mesmo nunca tendo passado por essa situação, sem dúvida você me entende. Foi exatamente assim que me senti ontem, na pista comum do Citibank Hall, durante o segundo show do Morrissey em São Paulo nesta turnê. Com repertório pensado para fãs da carreira solo, especialmente os familiarizados com o último álbum, do qual ele tocou nove faixas, Moz não fez o show que a maioria do pessoal ao meu lado — que tinha ido ver “aquele cara dos Smiths” — queria. Cantou para os fãs hard-core, o pessoal do meu time, que ocupava a pista premium, onde eu também deveria estar se já não tivesse gastado uma grana para ver o show de terça-feira.
Com oito shows dele no currículo até ontem, eu sabia: cada um é único. Ao contrário dos shows milimetricamente estudados e coreografados — vide U2 — que se tornaram comuns, nos dele nem repertório nem palavras se repetem. Mas, se isso te dá a oportunidade de ver duas apresentações completamente diferentes no intervalo de poucos dias, também abre espaço para oscilação. E, fazendo referência ao título de uma faixa instrumental dos Smiths, desta vez a o oscilação foi selvagem. Que me perdoe a torcida do Morrissey Football Club, meu time de coração: o show de ontem foi bem inferior ao do Teatro Renault.
Igual ao show de terça mesmo, só as duas primeiras (“Suedehead” + “Alma Matters”) e últimas (“I’m Throwing My Arms Around Paris” + “The Queen Is Dead”) músicas. O repertório apresentado mostrou-se carente não apenas de sucessos dos Smiths (do qual só tocou as panfletárias “Meat Is Murder” e a já citada “The Queen…”, além da sensacional mas pouco popular “What She Said”), mas de hinos da carreira solo, como “Irish Blood, English Heart” e “First Of The Gang To Die”. Dava a impressão de que, por algum erro, haviam trocado o setlist do Citibank Hall pelo do Teatro Renault e vice-versa: o de ontem caberia mais num show para iniciados, como pareceu o caso da plateia da bela casa na Brigadeiro Luís Antônio.
Isso se refletia, claro, na reação da plateia, muitas vezes indiferente. De onde estava, vi várias pessoas conversando durante as músicas e de braços cruzados ao fim delas, ao invés de aplaudir. Mais que indiferença, teve humor mal educado, quando alguns fanfarrões gritaram por “picanha” e mandaram a clássica “toca Raul”. A grosseria chegou ao auge quando um sujeito gritou qualquer coisa durante a execução da intimista “Smiler With Knife”: Morrissey interrompeu a música no meio e perguntou se deveria parar de cantar. Conhecendo a fama do cantor, um João Gilberto britânico, tive medo que ele de fato encerrasse o show ali. Quando o intervalo para o bis se prolongou além do habitual, esse receio voltou.
Ontem, mais uma vez, Moz estava falante. Falou entre quase todas as músicas, falou tanto que a torcida adversária talvez tenha achado demais. Mas não estava simpático como terça, embora tenha feito novo elogio a São Paulo, ao grafite local. A plateia reagia negativamente ao repertório, Morrissey reagia negativamente à plateia.
Mas era meu nono show do Morrissey, e eu estava feliz por ver coisas novas, diferentes do que já tinha visto. E ouvir também, claro. Se terça ele tocou “Reader Meet Author”, ontem foi a vez das para mim inéditas ao vivo e lindas “Yes I’m Blind” (me transportou diretamente a 1991, ano em que me tornei fã) e “Jack The Ripper”, uma das minhas preferidas. Poder abrir os braços e cantar junto “crash into my arms, I want you” já paga o ingresso.
No fim do show, que vi com o camarada João e, em parte, com o casal Ed e Lilian, tentei encontrar outros amigos também presentes. Não consegui. Os encontros que aconteceram, porém, menos prováveis, foram muito bacanas. Um deles foi com a Camila, leitora carioca, que me mandou mensagens dias antes pedindo para eu autografar sua cópia de “Quem Vai Ficar Com Morrissey?” depois do show. Na frente do Citibank Hall, entre tantas pessoas, ela conseguiu me achar e se apresentou. Infelizmente, a Camila tinha esquecido sua cópia do livro, mas me deu a honra de autografar seu ingresso. É uma menina muito sensível, ainda estava tremendo de emoção após o show. Disse que veria o Moz novamente no Rio e, depois, para a minha surpresa, no Paraguai. Eu nem sabia que o Morrissey ia tocar lá.
Depois, mais inusitado ainda, foi encontrar a Débora, outra leitora. Se com a Camila eu tinha meio que combinado, com ela foi completamente por acaso. Estava tomando uma cerveja com o João quando ela me abordou, perguntando se eu era, bem, eu. Eu também a reconheci na hora — coisas de fotos de Facebook. Estava acompanhada do Jorge, seu filho de quinze anos, a quem ela transferiu a genética e o gosto musical. Depois me contou que o Jorge estava na sua barriga quando ela assistiu ao show do Morrissey em Porto Alegre em 2000, e tudo fez sentido. Os dois tinham chegado ao lugar às 10:00 da manhã e, como recompensa, conseguiram ver o show colocados na grade. Ela me disse que se identificou muito com “Quem Vai Ficar Com Morrissey?” porque, além de ser grande fã do cantor, já tinha vivido uma história parecida — como, aliás, a Camila também viveu. Débora me disse que se viu na Lívia e, como provam as tatuagens do Morrissey e dos Smiths que carrega no braço, ela ficou com as músicas.
Na saída do show, ouvi comentários do tipo “pô, faltou Smiths”, “Smiths é Smiths”. Por outro lado, a Camila, a Débora e o Jorge me disseram que adoraram o show. Eu, no final das contas, também gostei. Mas tenho certeza: teria gostado mais se tivesse assistido com a minha torcida.