A cerveja que eu tinha nas mãos não
era a primeira daquele dia. No ambiente abafado do simpático Espaço Antena
Zero, as seguidas Heinekens me eram entregues com eficiência pelo editor
Marcelo Viegas numa tentativa de amenizar o calor, acentuado pelas luzes sob as
quais eu estava sentado, ao lado da vitrine. Mais que o calor, o que me levava
a beber então era o nervosismo da situação inédita: nunca havia lançado um
livro antes e muito menos distribuído autógrafos. Naquele momento, eu
aproveitava a breve folga entre as múltiplas canetadas tomando a cerveja e
algum ar do lado de fora da loja. Perto de mim, um sujeito olhava com
curiosidade o banner com uma enorme reprodução da capa de “Quem Vai Ficar Com
Morrissey?”, vendo nela uma ilustração que bem podia ser o retrato de uma
versão mais clara e mais jovem dele mesmo. Topete e costeletas, características
comuns a muitos fãs de Moz – que inclusive eu carrego –, o sósia era, sem dúvida, um. Só depois, quando já tinha voltado aos autógrafos, descobri que ele era
mais que isso. Com um livro nas mãos e a namorada ao lado, ele me abordou: a
voz que se apresentava como Roberto costumava entoar as canções que salvam vidas numa
banda cover dos Smiths no Rio de Janeiro. Bastante simpático, posou para fotos
comigo, que achei graça na inusitada aparição do “próprio” Morrissey no evento.
Não demorou para nos adicionarmos no Facebook e, a partir dele, mantermos
contato.
Não falei para o Roberto, nem na
ocasião nem depois, mas tenho uma opinião não muito favorável sobe bandas cover.
Fico constrangido com a tentativa – na maioria das vezes, pateticamente
frustrada – de reproduzir a aparência e o som da banda original. No caso do
Roberto, que guarda uma considerável semelhança com Morrissey, até pelos cabelos
grisalhos como os dele estão hoje, o visual estaria assegurado, mas tinha
dúvidas quanto à perfo rmance. Será? A qualidade do áudio dos registros da banda
que encontrei não me permitia julgar os méritos vocais do meu novo amigo, mas
pude ver que ele se aplicava para imitar o gestual do cantor, com a sua
conhecida dramaticidade. Por ir com a cara do Roberto, torcia para ser
surpreendido. “Lord knows it would be the first time”. Os outros covers do
autor deste verso a que assisti eram de doer. Um deles, cujo show eu vi na Fun
House há anos e acabou se tornando uma passagem do livro, era impressionantemente
parecido – mais até que o Roberto –, porém as semelhanças se limitavam ao
físico: nem as letras o cara, que cantava num inglês macarrônico, sabia.
Quando nos conhecemos, o Roberto me
disse que, dali a um mês, viria para Santo André se apresentar com uma banda
local numa festa cuja principal atração seria a discotecagem do ex-smith Andy
Rourke. Mesmo tendo prometido comparecer, no dia, as cervejas que tomei num
evento familiar e os quilômetros que me separavam da cidade do ABC me impediram
de cumprir o combinado. Dois meses depois, porém, ele voltaria ao estado de São
Paulo, dessa vez acompanhado da sua própria banda, para tocar na capital – na
rua Augusta, a quatro estações de metrô da minha casa. Não hesitei em mais uma
vez confirmar minha presença, imaginando que, agora, não teria problemas em dar
as caras por lá. Só havia esquecido de um detalhe, o mesmo que esqueci quando
me inscrevi para minha primeira meia-maratona, em agosto: a Copa do Mundo,
amigo! Da mesma forma que os jogos e o
álcool que os acompanha vão comprometer meu treinos para a corrida, poderiam
muito bem impossibilitar novamente minha ida ao show. Competindo com os Smiths
cariocas, Uruguai x Costa Rica (16:00), Itália x Inglaterra (19:00) e Japão x
Costa do Marfim (22:00). Já na metade do primeiro, me conformei: mais uma vez,
daria um furo com meu novo amigo.
Passado o jogo do Japão, inúmeros
chopes e doses de Jagermeister depois, imbuído do espírito do bêbado que honra
a palavra empenhada na sobriedade, resolvi me abalar da Vila Madalena para a
Augusta. O Zé Ricardo, amigo que assistia aos jogos comigo na Vila, me
acompanhou na empreitada – um pouco a contragosto, mas acompanhou. O táxi nos
deixou a algumas dezenas de metros do Inferno – nome do clube que receberia o
show –, onde, como Morrissey nos lembra, há lugar para ele e seus amigos.
Subindo a rua, os habitués mostraram que o “Baixo” que nomeia aquela região não
é gratuito. Fomos interpelados e abraçados por um jovem travesti, que fazia
questão de dizer que era mulher, e por uma prostituta gorda, igualmente jovem e
diferentemente mulher de fato – pelo menos, me pareceu. O raciocínio
desacelerado pelo álcool, só me dei conta de que pudesse se tratar de um
assalto depois de algum tempo, quando então me afastei do abraço das “primas”. A
gordinha se fez de ofendida e, para mostrar boa fé, apontou minha carteira
caída no chão. Peguei-a e, depois de já ter abraçado o capeta, finalmente entramos
no Inferno.
Depois de uma rápida passada no
balcão para a infalível cerveja, me dirigi ao palco, onde a banda estava a
toda. Cumprimentei o Roberto e voltei ao balcão, e lá estava o Zé de papo com
uma meninota. De lá, ouvi a dedicatória do vocalista: “Esta música vai para o
amigo Leandro Leal, escritor do excelente livro ‘Quem Vai Ficar Com
Morrissey?’” (Não me pergunte a música. Seria exigir demais dos meus então combalidos
neurônios.) Fiquei emocionado, óbvio. Ficaria ainda mais logo em seguida,
quando uma turma de três amigos, ao perceber minha reação, vieram confirmar se
eu era o Leandro. “Nossa, eu li o seu livro. Muito bom!” O rapaz elogiou demais
o texto, a história, as referências e, como se tornou um costume, mostrou-se
muito identificado com tudo. (Era a típica situação em que uma bebida me seria
oferecida, mas não foi. Se bem que, com o bar já encerrado, nem se o cara quisesse
poderia. E eu, bêbado como estava, definitivamente não precisava de mais
nenhuma, embora não negasse, se me fosse oferecida. Educação é algo que levo a
sério.) Pedi licença para o pessoal e voltei ao gargarejo, a fim de,
finalmente, comprovar os predicados do Roberto Morrissey.
Então, estava eu, camisa da Seleção
recém comprada, bermuda e cerveja na mão, diante de Morrissey. Trajes sem
dúvida inadequados para se entrar na igreja – onde, tamanha a excelência da
personificação do Roberto, eu parecia estar. Emocionado, acompanhei a belíssima
execução de “I Know It’s Over” (de “The Queen Is Dead”, disco que hoje completa
28 anos e que escuto enquanto escrevo este texto). Em seguida, a banda mandou uma sequência de três canções da carreira solo do bardo: “Hairdresser On Fire”,
“Everyday Is Like Sunday” e... putz, a terceira vou ficar devendo. Mais algumas
músicas e, show acabado, eu tinha certeza: a tal “first time” tinha realmente
acontecido. Que bela banda cover dos Smiths, meu amigo.
Colocar as minhas impressões quanto
à apresentação na conta das cervejas – e do Jagermeister – ou mesmo na simpatia
que nutro pelo Roberto seria injusto. Ele canta como quem sabe da importância
daquelas palavras, daquelas melodias. Sabe que são canções que salvam vidas e
se esforça para fazer jus a elas. Quando, depois da apresentação, estava no
backstage conversando com ele e outros membros da banda, fiz questão de lhe
dizer isso, com a ênfase e a repetitividade dos bêbados chatos. Ele, educado
como sempre, em nenhum momento se mostrou incomodado pelo meu estado, apenas
repetindo os elogios que já fizera ao meu livro. Nós nos identificamos como os
fãs que somos, cada um fazendo uma homenagem à sua forma.
Já era quase manhã quando, há muito
sem sinal do Zé Ricardo, peguei o táxi a caminho de casa. Chegando em frente ao
meu prédio, puxei a carteira para, com a nota de R$ 50,00 que havia sacado,
pagar a corrida. Onde estava ela? Sinapses ainda em marcha lenta, levei um
pouco para atinar: deveria estar entre os seios gordos da prostituta “gente
boa” que me abraçara na Augusta – supondo que ela guardasse seus rendimentos
nesse lugar-comum. Sem máquina de cartão de crédito, restou ao taxista me levar
ao posto de gasolina mais próximo, onde abasteceu o carro com o valor
equivalente à corrida, obviamente por minha conta.
Paguei achando graça, sem lamentar o
destino inusitado da minha nota de R$ 50,00. Que ficasse com aquela garota de
programa, sem dúvida “bigger than others”. Minha noite já havia terminado e,
grana perdida ou não, o saldo estava extremamente positivo.
PS: A segunda foto que ilustra este post me envelhece uns 20 anos, prova
o quanto a bebida amassou minha cara. Mas é o registro mais fiel dessa
aventura. Foda-se a vaidade.