“Mas eu conheço muito bem a minha sorte, e eu provavelmente nunca mais vou te ver novamente.” Apesar da tradução comprometer bastante a poesia original, é isso o que dizem os desiludidos versos finais de “Hand in Glove”, dos Smiths. A voz de Morrissey, acompanhada pela lastimosa gaita, fez-se ouvir na minha cabeça quando, sem dar muito crédito, li os primeiros boatos sobre uma nova vinda do cantor ao Brasil. Primeiro, falou-se em show gratuito em algum parque, depois, a notícia mais apurada, fiquei sabendo que as apresentações seriam nos moldes tradicionais – que eu, diga-se, prefiro. Por fim, confirmaram os shows. Não sei dizer por que, mantive o pé atrás, a pulga atrás da orelha. Mas nenhum chavão seria capaz de me impedir de aproveitar a possibilidade de rever meu cantor preferido: comprei ingressos para os shows de São Paulo e do Rio, mesmo suspeitando da sua validade futura.
Veio a notícia da intoxicação alimentar no Peru
e a conseqüente ameaça ao tour pela América do Sul. Minha desconfiança se
reforçava, mas, ingressos já recebidos, torci para estar errado. Logo em
seguida, meus temores foram enterrados por um médico de Los Angeles e seu
prognóstico de que seu paciente famoso estaria bem em tempo das datas
brasileiras. Finalmente empolgado, já programava o esquenta antes do show de
São Paulo, estimulava outros amigos a irem comigo ao Rio. Aí, veio o sábado,
trazendo mais uma dor de cabeça além da ressaca comum a este dia. Em nota
publicada no fan-site oficioso “True To You”, com a falta de objetividade e
drama peculiares, Morrissey pede perdão aos fãs e avisa: “É, Leandro, você
estava certo.” Era Morrissey em pessoa (e palavras meticulosamente escolhidas)
quem dizia, mas eu não quis acreditar. Precisei da grande imprensa e de suas
palavras sem graça para me convencer – afinal, a nota de sábado podia ser
apenas mais uma das excentricidades do cantor, que depois diria que não era bem
assim. Mas era. Já era.
Minha incredulidade sobre a terceira vinda de
Morrissey ao Brasil não se baseava em pressentimento, mas na memória. Lembrava
da turnê norte-americana adiada no começo do ano, lembrava da entrevista em que
ele levantou a possibilidade de uma aposentadoria para breve, os dois fatos
motivados pela saúde fragilizada. Lembrava, também, do desencanto de Morrissey
com a indústria musical, incapaz de lhe oferecer um contrato para o lançamento
de um novo disco – já pronto, mas que ele, orgulhoso, se recusa a lançar nos
independentes moldes digitais. Foram, de certa forma, esses os motivos alegados
por ele na confusa nota, em que começa falando sobre falta de fundos para
transportar a banda (apesar das boas vendas de ingressos) e termina dizendo
estar cansado de pedir desculpas, vendo como a única solução “a arte de nada
fazer”, outras palavras para encerrar a carreira.
Também grande fã, a Vanessa creditou a
desistência à definitiva loucura, à mania de perseguição. Suspeito que a turnê
tenha sido cancelada por algum desacordo entre Morrissey e os produtores. Ao
que o Rodrigo, outro fanzaço, acrescentou: “Convenhamos, ele deve ser um chato
do caralho para negociar.” Concordo com ela, concordo com ele. Morrissey não é
fácil. Nunca foi, na verdade, mas tem se superado. Decepcionado como todos meus
amigos, prefiro tentar ver o lado positivo: ao cancelar a vinda à América
Latina, Morrissey escapa da banalização. Evita ser como os conterrâneos Deep
Purple e Iron Maiden, que tocam aqui com mais freqüência do que no Reino Unido,
cujos anúncios das novas turnês brasileiras são tão irrelevantes quanto os do
Holliday On Ice.
Mas a quem eu quero enganar? Para mim – como
para os fãs de Deep Purple e Iron, as bandas –, Morrissey é imune à
banalização. Já vi seis shows dele e veria mais os dois que comprei feliz da
vida. Veria, aliás, muitos outros. Mas eu conheço muito bem a minha sorte.